
Por Rogério Piva
Quando jovem, nunca pude imaginar que o mundo fosse tão extenso. Lembro a primeira vez que visitei o centro de São Paulo, aos catorze anos de idade, e tive um choque ao ver biótipos de pessoas que não eram tão comuns no lugar de onde vinha. Meu bairro, pelos fundões desta imensa cidade, foi formado por retirantes nordestinos, resistentes e sobreviventes de um Brasil de fronteiras. Eu começava a ter consciência da primeira fronteira dentro da minha cidade e que, de alguma forma, estar no centro me fazia pensar estar em um filme de Hollywood. Quando fazia malabarismo pelas faixas de pedestre da avenida Brasil, avenida Nove de Julho, rua Groenlândia, cada carro, cada rosto, cada gesto era de um mundo que eu não conhecia e com o qual minha arte, nos primeiros passos que eu dava com ela, me colocava de frente. Carregando minha mochila com materiais de malabarismo feitos com garrafas e cabos de vassoura, trapos de figurinos de Carnaval, eu circulava por pontos da cidade, experimentando os semáforos, visitando os repentistas da Praça da Sé, o Homem da Cobra no Largo São Bento, pintores e cantores. A arte feita por pessoas com que eu me identificava, que se pareciam com meus vizinhos e que ali eu tinha como referências desse mundo novo.
Um jovem da periferia, com catorze anos de idade, desbravava o centro de São Paulo através da sua arte, que aprendeu em um projeto social. “Quantas fronteiras mais poderiam existir neste mundo?” Na minha cabeça, eu sabia que as fronteiras poderiam ser infinitas, mas que a grandeza da ousadia de um artista em formação, cheio de curiosidade, com seus instrumentos, seria a ferramenta necessária para essa cruzada.
Vinte e três anos depois daquele momento em que atravessei a fronteira entre o bairro periférico e o centro de São Paulo, eu já havia passado por 47 países. A arte me possibilitou cruzar diversas fronteiras espalhadas por este mundo. Mas, caro leitor, quero deixar claro aqui que as fronteiras às quais me refiro estão muito além das fronteiras geográficas.
Ao me tornar um artista reconhecido, passei a fazer parte de diversas companhias no mundo, trabalhei em grandes espetáculos, grandes circos, hotéis e eventos. O sentimento de artista bem-sucedido e reconhecido elevou minha autoestima e, claro, o ego também. Cruzar uma fronteira já não era um problema, pois eu era quase sempre convidado e o que eu fazia era o bilhete para qualquer lugar. É gostoso ser atração, estar em um grande palco, cheio de iluminação, com uma plateia lotada de um público que pagou caro para assisti-lo. Ainda assim, a origem de uma pessoa pode ser sempre uma grande barreira. A arte me fez transpassar cada uma delas.
Lembro que, certa vez, ao entrar na Suécia, fui barrado pelo agente de imigração, levado a uma sala e submetido a uma série de perguntas. Bastou que eles olhassem na internet o anúncio da minha participação no espetáculo de gala onde eu estaria e logo as perguntas cessaram e vi um sorriso de encantamento na minha direção. Outro momento: ao tirar um visto de trabalho para os Estados Unidos, o agente me deu aprovação assim que viu o meu portfólio artístico e a foto do show que fiz para o Papa Francisco no Vaticano. Ele olhou pra mim, me fitou de cima a baixo e perguntou se era realmente eu nas fotos. Um pouco pasmo, não fez mais nenhum questionamento e aprovou o meu visto. Quando no Timor Leste, ao ser convidado pelo presidente José Ramos-Horta para me apresentar no Palácio Presidencial, disse que minha condição era que a apresentação fosse aberta ao povo, e o pedido foi concedido.
Ainda assim, mesmo sendo um artista reconhecido continuo sendo latino, e isso também foi motivo para ser desacreditado ou classificado em muitos lugares como mão de obra barata, pois em muitas ocasiões definiam meu cachê pela minha origem étnica, como aconteceu com alguns circos na Europa. Também em um evento realizado por uma grande potência estrangeira nas ilhas Fiji, me disseram que não poderiam me pagar mas que aquela seria uma oportunidade de ser visto. Apenas respondi aos organizadores que a colonização já havia acabado. Não raro, ser um artista periférico define a atenção que se recebe, o recurso que se acessa e o cachê que lhe oferecem.
Acho que, até hoje, a fronteira mais divisora de águas com que me deparei foi quando, em um grande circo em que trabalhei, avistei uma família com 4 crianças que chegou à portaria do circo e teve de voltar para casa porque não tinha dinheiro suficiente para o valor dos ingressos. Naquele momento, me culpei por não ter feito nada, mas a maior reflexão foi lembrar que, quando eu era criança, meu pai também não teria dinheiro para pagar o ingresso desses espetáculos em que eu trabalhava. Ali, entendi que eu também havia me tornado uma mercadoria para quem pudesse pagar.
O aprendizado não foi apenas o de fazer o malabarismo, mas o entendimento do que eu poderia fazer com isso. Compreender o meu próprio contexto social foi uma das mais importantes fronteiras que precisei cruzar para poder tomar decisões cada vez mais conscientes junto da arte que fazia. Também percebi que não precisava estar somente dentro de grandes produções, pois eu era formado pela arte popular, pelo povo, pelos terreiros, pelas ruas, e passei a perceber o aprendizado naqueles circos mambembes que resistem bravamente como a bagagem mais importante. Foi com esse pensamento que os grandes palcos deixaram de ser prioridade e passei a recusar convites para os circos famosíssimos para seguir meu caminho cruzando as mais diversas fronteiras pelos territórios periféricos do mundo. Queria que minha arte fosse cada vez mais livre, acessada por aqueles sem privilégio financeiro e geográfico, onde pouco se chega. Assim, me lancei para territórios rurais e periféricos na América Latina, África, Ásia, Oceania e, claro, neste imenso Brasil, onde cheguei em centenas de comunidades a que os espetáculos de circo nunca haviam chegado. Ali, a fronteira mais segregadora, mais excludente se rompia: a fronteira da bilheteria. Sendo o chapéu a minha bilheteria, ele se adequa à condição do povo, que colabora como pode, consciente da continuidade do artista, tendo ainda a dignidade de também poder pagar um ingresso.
Tantas terras por que andei, as famílias com que compartilhei, os amigos, sabores e amores: uma companhia gigantesca jamais me levaria a esses encontros. A forma como sigo minhas andanças não é nova e nem revolucionária, ela é o que os artistas populares e os circos mambembes sempre fizeram em toda a sua história, falando o idioma do povo. Mas nestes tempos modernos, a mercantilização e a indústria cultural têm reforçado essas fronteiras em um jogo perverso de ganância, competição e apropriação. Como artista popular, meu imenso conflito é não me deixar seduzir por essa maquinaria milionária de produções. Mesmo marginalizado, continuo nos meus caminhos, na tentativa de seguir minimizando as barreiras da ignorância, do abandono e da exclusão, vivendo a poesia de um saltimbanco que tem, na arte popular, o passaporte para todo tipo de fronteira.
Rogério Piva é artista circense de São Paulo, autor de livros e acredita na arte popular como ferramenta de transformação social.
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