Obra de Isaura Botelho ganha edição atualizada em um momento em que a política cultural reconquista espaço e relevância nas ações governamentais, após período de profunda negligência e sucateamento
Por Paulo Miguez*
Entre fins de 2002 e início de 2003, eu me preparava para integrar a equipe de Gilberto Gil, que acabara de aceitar o convite do presidente Lula para assumir a pasta da Cultura. Procurei levantar alguma bibliografia sobre políticas culturais no Brasil e sobre o Ministério da Cultura, quando descobri que havia pouca coisa publicada sobre o tema que pudesse de fato atender ao que eu buscava.
Da pequena bibliografia encontrada, dei com o livro Romance de formação: Funarte e política cultural (1976-1990), de Isaura Botelho, publicado pouco tempo antes, em 2001, pela Fundação Casa de Rui Barbosa, instituição vinculada ao MinC. Fruto de sua tese de doutoramento em ação cultural concluído em 1996 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), cobre década e meia de relações entre o Estado brasileiro e o campo da cultura – a maior parte desse tempo em plena vigência da ditadura civil-militar instalada em 1964, uma parte menor, a partir de 1985, dando conta dos primeiros anos da redemocratização do país.
Servidora pública da Funarte desde 1978, com sólida formação intelectual e acadêmica, Isaura combina em seu livro, com maestria e em doses certas, rigor e entusiasmo, distanciamento e paixão. Daí resulta uma análise que, ancorada em informações, dados e conhecimento próprios de quem é da casa, ilumina questões da maior relevância para as políticas culturais no Brasil, seja do ponto de vista do necessário registro histórico do que e de como aconteceu, seja também, e muito especialmente, pelo fato de que muitos dos pontos analisados continuam a exigir atenção e enfrentamento dos atores que militam no campo da cultura.
Neste livro, agora em edição revista e atualizada, encontramos as tensões e disputas entre a perspectiva de atendimento por meio de programas, projetos e ações diversas dedicadas às atividades artístico-culturais, missão para a qual foi criada a Funarte, e a compreensão exclusivamente preservacionista – um preservacionismo, registre-se, absolutamente excludente, pois dedicado apenas aos exemplares da cultura dominante.
Portanto, uma noção de patrimônio que desprezava a cultura popular, sua rica produção, seus diversos atores. Uma compreensão decorrente da dimensão de patrimônio histórico com que a cultura era então concebida desde a criação do Iphan, nos anos 1930, tornando-se o marco fundador das políticas culturais no Brasil. Isaura transforma em coautores os técnicos e servidores da Funarte quando, debruçada sobre o período que considera o de “amadurecimento” da instituição, analisa e defende as ações e os arranjos diversos desenvolvidos pelo corpo técnico que garantiam à classe artística, aos muitos corpos artísticos estáveis Brasil afora – como bandas e orquestras, e a instituições, como as universidades – os recursos necessários para a mobilização de infraestrutura de produção indispensável ao trabalho artístico e a outras ações, como difusão, divulgação e promoção.
Pois bem. A contribuição precisa e preciosa que me trouxe a leitura do Romance… já seria de todo suficiente para me garantir uma chegada bem-informada ao MinC, em 2003. Mas tive mais, pois pude contar com a companhia e a cumplicidade de Isaura Botelho na condução da Secretaria de Políticas Culturais do MinC, entre 2003 e 2005, primeiros ricos anos da gestão de Gilberto Gil à frente da Pasta.
Pude experimentar, então, no trabalho cotidiano que desenvolvemos juntos na Secretaria, o mesmo rigor, o mesmo entusiasmo e a mesma paixão com que Isaura, a servidora pública, soube enfrentar os desafios do campo cultural, e com que a intelectual se obrigou ao exercício de um registro com a qualidade de Romance de formação.
*Paulo Miguez é reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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