Empatando cordas e rebuscando acervos afetivos: a Mina de ouro do circo brasileiro 

23/07/2025

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Por Marco A. C. Bortoleto

Quando as gêmeas nasceram seu destino estava traçado: brilhar no espetáculo de circo da família Silva. No entanto, nem mesmo constituindo a tradição da quarta geração de uma família de circo itinerante foi suficiente para impedir uma mudança radical nesse destino. E, assim, Erminia Silva foi, já moça direcionada por sua família a não ser artista circense, vindo a fixar residência, estudar e construir a vida na cidade de São Paulo.  

Por anos dedicou ao trabalho numa instituição bancária, embora, o seu desejo de retornar às suas raízes a levou a realizar mais uma radical mudança: a de tornar-se historiadora e, simultaneamente, pesquisadora do circo. Assim, a mulher com serragem nas veias se tornou mestre e doutora em História Social e da Cultura pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), produzindo umas das obras mais prestigiadas da história do circo brasileiro: Respeitável Público… o circo em cena. Nos anos seguintes, edificou uma sólida e respeitadíssima carreira, transitando entre artistas, famílias circenses, organizações que construíam a reconhecida prática do circo social e também pelas universidades. Para ela, Mina, todos/as deviam ser considerados pesquisadores/as, de modo que ela sempre manteve sua sensibilidade e atenção abertas para qualquer pessoa que desejasse estudar o circo. Aliás, nunca discriminou as diferentes áreas do conhecimento e sua vinculação ou não à universidade, tendo até mesmo promovido um forte diálogo entre o circo e seus saberes com a área da saúde, juntamente com Emerson Merhy, seu companheiro de vida; o que importava – como me ajudou a lembrar seu discípulo mais próximo, Daniel de Carvalho Lopes – era o desejo de desvelar e transmitir os saberes e as histórias do circo.  

Após contribuir para a construção da hemeroteca digital PindoramaCircus – Notícias do Circo Brasileiro, numa parceria com Verônica Tamaoki (recém reconhecida como Doutora Notório Saber pela UFBA), fundou o maior e mais completo repositório digital de circo em português, o Circonteúdo, desta vez em parceria com Daniel Lopes (Circus/Unicamp) e Giane Daniela Carneiro.  

E, numa parceria cheia de cumplicidade e respeito, fundou comigo em 2006 o Grupo de Pesquisa em Circo (Circus), formalizado pela Faculdade de Educação Física da Unicamp junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coletivo que se converteu em uma das principais referências latino-americanas no campo da pesquisa do circo.  

Erminia nunca se aquietou. Passou alguns anos como professora associada no Programa de Pós-graduação em Artes da Unesp de São Paulo e atuou em muitas outras instituições, como a Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha (Enclo) e a Escola Livre de Palhaço (Eslipa). Levou ao pé da letra seu lema de dialogar com todas as formas de conhecimento e fazia questão de dizer, referindo-se ao poeta Manoel de Barros: “Repetir, repetir, até fazer diferente”. Foi, ademais, coorganizadora do grupo Psircos e recebeu inúmeros prêmios e homenagens, incluindo, em 2012, o Prêmio Governador do Estado de São Paulo para a Cultura, na categoria Circo. Desta forma, Mina foi e sempre será parte de grande coletivo de pessoas que vivem o circo! 

É preciso lembrar, ainda, que ela nos presenteou com uma das mais densas e relevantes obras da história do circo brasileiro, Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, aclamada produção, que em 2022 recebeu uma segunda edição revisada e ampliada, que destaca o palhaço Benjamim como um dos mais importantes multiartistas nacionais. Ainda que tenha conseguido tratar da sua própria família, como sempre desejou, ela não concluiu esse processo, deixando para todos nós uma tarefa que precisaremos retomar. Aliás, ela nos deixou muito legados, dentre eles um desejo incansável de falar do circo, da sua história, das suas pessoas, de suas contradições e realizações. 

Orientando inúmeros trabalhos acadêmicos, impulsando o pensamento crítico e profundo sobre o circo, Erminia consolidou um prestígio incomum e uma admiração incondicional da comunidade circense nacional e internacional. De fato, a pandemia reforçou que Erminia era uma gigante, pois os convites para participar de ações online eram diários e ela se tornou uma celebridade do circo virtual! E não podia ser diferente: Erminia e seus “cabelos vermelhos ou azuis” voando na internet e chacoalhando qualquer pré-conceito sobre o circo!  

É certo dizer que Erminia formou inúmeros/as outros/as pesquisadores/as por meio da formalidade e dos ritos universitários e a partir de seus poderosos escritos. Contudo, foi na oralidade – no bate-papo, na prosa séria quase sempre regada a risadas – que Mina formou novas gerações de artistas, pesquisadores/as, entusiastas e pessoas que melhor compreendem o fenômeno complexo e secular que é o circo. De fato, ela formou uma enorme família itinerante de alunos/as, discípulos/as e admiradores/as, oferecendo ao circo tudo o que ele deu a ela: família, paixão, arte e inspiração.  

Viva a MINA de ouro do circo brasileiro! 

Marco A. C. Bortoleto é professor doutor da Unicamp e coordenador do Grupo de Pesquisa em Circo (Circus).  

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