“É uma tomada, uma reapropriação ou uma restituição da palavra? Há muito tempo que as mulheres pretas se calam. Não é tempo de elas (re)descobrirem sua voz, de tomarem ou retomarem a palavra, mesmo que seja apenas para dizer que existem, que são seres humanos — o que nem sempre é evidente — e que, como tais, têm direito à liberdade, ao respeito, à dignidade?”
Para a antropóloga e ativista senegalesa Awa Thiam, nunca uma mulher é violentada, discriminada, caluniada no mundo sem que também outras sejam feridas e humilhadas. Porém o reconhecimento de uma condição em comum e a consequente afirmação de laços de solidariedade se esvaem quando as vítimas são mulheres africanas, diante de sua brutal objetificação, inclusive na própria África, e dos efeitos do colonialismo.
Uma das vozes pioneiras do continente no combate à violência de gênero, Thiam fez de sua obra um manifesto em defesa da libertação das “irmãs negro-africanas”. No entanto, diferentemente de feministas do norte global que julgam etnias inteiras como incivilizadas e buscam falar pelas vítimas, ela ouve as pretas e, junto com e a partir delas, faz uma crítica radical à subjugação feminina em África. Nesse processo, confronta ritos de mutilação genital e a instituição da poligamia como formas de violência e dominação das mulheres.
Marcado por um gesto ético de escuta e cuidado, Com a palavra, as pretas, publicado em 1978, criou uma roda em que africanas puderam enfim romper o silêncio e se insurgir contra os papéis e usos a que são submetidas. Com depoimentos pungentes e corajosos de mulheres do Mali, do Congo, do Senegal e da Guiné, o que está em jogo não é julgar ritos tradicionais, mas escutar o que elas sentem e pensam, em primeiro lugar, encorajando-as a denunciar em alto e bom som práticas que elas mesmas consideram “verdadeiras torturas”. É, principalmente, entender que cabe às pretas dizerem quem elas são e estabelecerem a sua própria verdade.
Ao dar a palavra a Yacine, Médina, Mouna e tantas outras, Awa Thiam vai muito além de uma defesa liberal do direito à autonomia do corpo. Destacando o enfrentamento cotidiano das chagas do colonialismo, do patriarcado e do capitalismo, ela nos faz pensar que, no dia em que as mulheres africanas se libertarem, todas as mulheres serão livres.
Texto publicado originalmente na orelha do livro.
Veja também:
:: trecho do livro
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