Livro escrito por Pedro Guimarães e Sandro de Oliveira convida o leitor a conhecer a trajetória dessa atriz-autora que tem sua marca calcada na liberdade permanecer ou romper com os cânones
Por Karla Bessa*
Ao percorrermos as páginas que seguem, entendemos que não é da musa que se trata, mas da Helena Ignez que foi e ainda é invenção constante, ou seja, uma “atriz experimental”, que se reinventou também atrás das câmeras.
Há vários modos de ler este livro. Fiz um primeiro percurso com as lentes de fã. Helena Ignez foi uma das mulheres atrizes que despertou o potencial transgressor da produção de personagens para além do script . Assim, ao ler sua petulante autodeclaração ao Pasquim, em 1970, de que era uma “atriz maravilhosa”, nunca ousei duvidar. Tanta assertividade, em momento tão tenso e duvidoso, só poderia vir de uma subjetividade insubmissa. O livro traça as dimensões espaçotemporais que evidenciam as ranhuras, linhas curvas e uma sucessão de encontros e desencontros, afetos e amores que teceram as relações entre vida, formação e carreira da atriz.
O segundo filtro foi o de pesquisadora feminista atrás de pistas de como um comportamento artístico-estético potencializa novas tecnologias de gênero, quebrando hierarquias, remexendo moralidades conservadoras que afetam o modus operandi de um mundo encantado (ao menos nas representações) do ser mulher. No argumento dos autores, vislumbramos uma Helena Ignez que, com gestos, entonações e uma corporeidade não afeita aos ditames da beleza coroada em telas românticas hollywoodianas, não só subverteu padrões estética e moralmente, mas ao fazer isso através do corpo atoral deu vida a desejos e buscas, em plena sintonia com o feminismo libertário que sacudiu as fronteiras do que se percebia ser a “modernidade dos costumes” e das linguagens.
Pedro e Sandro descentralizam a figura do diretor/realizador e, assim, abrem espaço para uma compreensão mais complexa dos jogos de encenação na constituição do discurso fílmico como um todo. A partir da leitura, percebemos o quanto Helena Ignez mobilizou do kitsch, do cafona e do camp em suas atuações, produzindo um efeito político feminista de grande extensão para a época e para os dias atuais, na medida em que desnaturaliza o gesto, o enunciado e a própria enunciação da feminilidade.
Os modos de produção de uma subjetividade generificada, constituída pela e constituinte da Helena atriz-autora, podem ser lidos como tecnologias de subversão do gênero, uma vez que não reforçam nem imitam a construção de uma essência feminina; ao contrário, expõem, a partir do burlesco, o caráter paródico do ser/parecer mulher. Não bastasse esse importante deslocamento estético, a atriz dá sua contribuição fundamental para a consolidação de um cinema de sotaque próprio nos trópicos. Uma análise de sua trajetória desemboca em uma reescrita dos modos de narrar e pensar o cinema nacional. Ou seja, requer uma nova historiografia. Parte desse novo esboço você encontra aqui, nesta densa e instigante reflexão sobre a atuação autoral e experimental de Helena Ignez.
*Karla Bessa é pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.
:: Trecho do livro
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