O funk na batida: baile, rua e parlamento

25/05/2022

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Pensado pela ótica da criminologia, livro do pesquisador Danilo Cymrot mostra como a construção do funk como gênero musical, cultural e político dá um nó sociológico no Brasil contemporâneo

Por Gustavo Ranieri*

Quando se conclui a leitura de O funk na batida: baile, rua e parlamento, escrito pelo pesquisador cultural, mestre e doutor em Direito pela USP, Danilo Cymrot, a melhor coisa a fazer é começar a lê-lo novamente. Não por qualquer dificuldade que o texto exerça, mas pelo fato de que, somente aos poucos, seja possível compreender a complexidade do nó causado pelas inúmeras contradições do país, de alguma maneira associado à existência do funk não só como criação cultural e artística, mas também como identidade assumida para fins políticos e mercadológicos.

Justamente por isso, também, talvez a melhor definição para o livro esteja nas primeiras linhas do texto de orelha, assinado pelo antropólogo, pesquisador musical e roteirista Hermano Vianna: “Aviso importante: este não é um livro sobre funk. É um livro sobre o Brasil, sua história recente, seus problemas mais centrais do final dos anos 1980 para cá, sua resistência cultural criativa.”

Pensado pela ótica da criminologia, O funk na batida tem sua base na dissertação defendida por Cymrot, em 2011, na Faculdade de Direito da USP. Mas, obviamente, concentra boa parte de seu conteúdo naquilo que aconteceu durante os últimos dez anos, quando o gênero musical alcançou patamares nunca antes vistos. Como destaca o autor, em 2019 a funkeira Anitta se tornou a artista latina mais ouvida no mundo na plataforma Spotify; e o canal de funk KondZilla alcançou 50 milhões de inscritos no YouTube, tornando-se o quinto maior do mundo e único brasileiro a ter um vídeo que bateu um bilhão de visualizações. Por outro lado, no mesmo ano de 2019 foram realizadas 7.500 batidas policiais em bailes funk apenas no estado de São Paulo; no Rio de Janeiro, o DJ Rennan da Penha foi preso por associação ao tráfico de drogas; e nove jovens morreram pisoteados no Baile da Dz7, na favela de Paraisópolis, após uma ação policial.

“A pluralidade de espaços pelos quais o funk transita, por sua vez – bocas de fumo, Grammy Latino, série da Netflix, bailes em favelas, prova de ginástica artística nas Olimpíadas de Tóquio de 2020, programas da Rede Globo, clubes de subúrbio, festas universitárias, YouTube –, reflete-se na variedade de públicos e no tipo de letra e batida apresentados. Há funks que duraram apenas um verão e outros que, contrariando o discurso sobre a suposta descartabilidade do gênero, marcaram gerações”, escreve o autor.

Dividido em três partes,o livro dedica a primeira delas a analisar a relação do funk com o espaço público; na segunda parte, o pesquisador se concentra em esmiuçar a relação do funk com a violência; na terceira e última, são estudados os bailes de comunidade do Rio de Janeiro, a relação dos funkeiros com traficantes, o funk “proibidão” e as razões de seu sucesso, tanto quanto os projetos de lei para coibir a apologia de crime nas músicas, a prisão de MCs, machismo e as acusações de corrupção de menores.

Trecho do livro

Assim, o leitor encontrará nas mais de 350 páginas de O funk na batida: baile, rua e parlamento uma análise profunda do Brasil por meio do funk, e como são inúmeras as tentativas de criminalizar esse gênero musical. Para saber um pouco mais sobre a publicação,  conferira a entrevista a seguir feita com Danilo Cymrot.

Como foi escrever essa obra? Em algum momento esse mesmo nó que pode surgir no leitor foi dado em você?
Essa obra tem origem na minha dissertação de mestrado, defendida em 2011 na Faculdade de Direito da USP. O tempo que levei para publicar esse livro foi bom não só para atualizar e ampliar o que eu já havia escrito, mas, principalmente, para maturar algumas ideias e complexificá-las melhor, lendo outros autores e verificando episódios que ocorreram no Brasil na última década. Quando o assunto é funk, temos a tendência de cair em uma polarização, como se tudo fosse uma questão de ser “contra” ou “a favor” de uma “criminalização” do estilo. Ocorre que o próprio conceito de “criminalização” deve ser problematizado para evitar sua banalização e não se deve tratar o funk como algo homogêneo. Todas as vezes em que sentia que estava envolvido em um nó, paradoxalmente sentia que estava indo no caminho correto, pois o funk tem uma série de contradições e conflitos internos, assim como o Estado e a sociedade civil. Um diagnóstico simples, maniqueísta, sem esses nós, poderia ser mais palatável ao leitor ávido por respostas, mas não corresponde à realidade rica que busquei analisar.

Mais de uma década depois da sua defesa de mestrado e com o funk ocupando um espaço midiático de alcance internacional, as formas/tentativas de criminalização que se notam são iguais às de antes?
Dizem que a história se repete, na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa. Eu não havia analisado o funk de São Paulo na minha dissertação. Essa análise posterior foi fundamental para verificar como os discursos e técnicas de criminalização do funk são assustadoramente parecidos, ainda que o contexto do funk do Rio de Janeiro dos anos 1990 seja tão diferente do contexto do funk de São Paulo dos anos 2010. Se em 1992 as brigas de galeras nas praias da Zona Sul foram associadas a arrastões e causaram pânico entre as classes média e alta, em 2013 os rolezinhos nos shoppings de São Paulo tiveram o mesmo efeito e as mesmas respostas, sejam positivas sejam negativas. Da mesma forma, as reclamações sobre o barulho dos bailes de comunidade do Rio de Janeiro da década de 1990 estão presentes na era dos “pancadões” de São Paulo, na década de 2010. A legislação de direito administrativo que buscou reprimir os bailes no Rio de Janeiro segue um padrão, tanto antes quanto depois das UPPs: impõe uma série de requisitos burocráticos difíceis de cumprir e condiciona a realização do baile à decisão discricionária da Polícia Militar.

Isso mesmo com toda a repercussão do gênero em esfera internacional?
Mesmo com o sucesso internacional da Anitta, MCs continuam sendo presos pelos motivos que já eram na década de 1990: acusados de associação ao tráfico de drogas, seja por cantarem “proibidões”, seja pelos bailes serem supostamente financiados pelo tráfico de drogas. Por outro lado, desde o início dos anos 1990 o Poder Público busca se aproximar dos funkeiros também de uma forma não repressiva, organizando bailes oficiais, fornecendo infraestrutura e espaços adequados, organizando seminários e oficinas, etc.


Danilo Cymrot | Foto: Paulo Rapoport 

E as tentativas de criminalização estão restritas apenas aos bailes funk frequentados pelas classes menos favorecidas, por exemplo, ou também nos “bailes” glamourizados em bairros nobres
Desde o começo dos anos 1990 o funk ouvido e dançado em espaços frequentados pelas classes média e alta não é reprimido, evidenciando a permanência de uma seletividade na ação policial que atinge principalmente jovens negros e pobres de periferias e favelas, e que transcende o funk, mas também porque as classes mais favorecidas muitas vezes têm condições melhores de realizar seus bailes em ambientes com infraestrutura adequada, além de preferirem ouvir e dançar uma vertente de funk não associada diretamente às facções.

De tudo o que o funk representa, seja instrumento político, social, cultural, mas também com uma imagem atrelada à violência e ao tráfico de drogas, como se alcançar um equilíbrio? É possível?
Nada no funk é estanque. O mesmo MC que obtém legitimidade como “cria da favela” cantando “proibidões”, com um pé na “marginalidade”, pode cantar suas músicas em versões light, permitidas, trocando alguns versos, e assim alcançar um público mais amplo, sendo incorporado pela indústria cultural. A glamourização e a criminalização muitas vezes são os dois lados da mesma moeda. Além disso, nem sempre é fácil distinguir o que é crítica social e o que é apologia de crime, havendo uma zona cinzenta imensa. A origem social dos MCs é determinante para que sejam vistos como artistas politizados ou como cantores a serviço do tráfico. Um cantor de funk “proibidão” pode encontrar no funk uma alternativa à vida no crime, ainda que sua música seja acusada de fazer apologia a ele. O gênero possui uma enorme variedade de subgêneros (melody, gospel, “putaria”, ostentação, consciente, de facção) e um mesmo MC pode transitar entre todos eles. O discurso religioso pode ser conciliado com o discurso de exaltação da facção criminosa, assim como a exaltação de produtos de luxo, característica do funk ostentação, pode estar presente em um funk de exaltação à facção e vice-versa. De certa forma, o cantor de funk tem que andar nessa corda bamba e pode moldar o seu discurso conforme o público. Por outro lado, o contexto social e político pode favorecer a hegemonia de um ou outro subgênero de funk em determinado momento.

Gustavo Ranieri é jornalista e escritor.

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