
Por Alê Primo
Era 2015, e o Tihany, um dos últimos grandes circos a fazer turnês mundiais, se apresentava pelo Brasil. O espetáculo tinha o título de AbraKdabra, que já indicava o destaque para a mágica. A imprensa alardeava que o circo trazia a grandiosidade dos shows de mágica de Las Vegas. Fui assistir ao espetáculo em 3 cidades da região Sul. O ponto alto da noite era o aparecimento de um helicóptero por detrás de um grande pano branco. A plateia, que em sua maioria filmava a grande ilusão, não conseguia conter a emoção quando as longas hélices tomaram o palco, vindas do vazio. Palmas e gritos confundiam-se com o som do helicóptero e da música majestosa. Nas três vezes em que assisti ao espetáculo, por três vezes meu encantamento foi omesmo. Ainda que eu conhecesse o segredo, o profissionalismo dos artistas, da coreografia, da iluminação e da trilha fazia da ilusão um desafio à racionalidade. O aparecimento surpresa de um grande e pesado sólido no palco iluminado com fortes luzes brancas causava um deleite que lembrava à plateia, que chegara das aulas e do trabalho, que a magia ainda traz encanto e alívio à vida.
O Tihany foi embora do Brasil e eu ainda aguardo seu retorno triunfal. Temo, no entanto, que, com as mudanças nas formas de entretenimento da contemporaneidade, o Tihany tenha o mesmo fim de outros grandes circos itinerantes. Da mesma forma, podemos questionar qual é o futuro das artes mágicas diante do consumo febril de vídeos curtos no TikTok e do desinteresse por ilusões presenciais em tempos de efeitos digitais 3D e inteligência artificial.
A mágica, diferente de outras expressões artísticas, depende do segredo. Claro, o mágico não é mero operador de um dispositivo automático a cujo funcionamento secreto apenas ele teve acesso. O que há de arte é tudo o que extravasa ao dispositivo manipulado (em inglês, prop).
A questão que emerge é: como podem as artes mágicas se desenvolverem, como novas mágicas e mágicos pode se formar, quando tal comunidade se esconde no sigilo? Clubes e sociedades secretas não permitem a participação de não mágicos. Novos membros precisam fazer seus cursos ou provar domínio da técnica. Com essa dinâmica, é preocupante observar que muitas associações de mágicos têm poucos jovens. Os associados estão envelhecendo.
Lembro-me de um debate online entre mágicos, no qual um participante da velha guarda praguejou, após compartilhar o vídeo de um artista de rua executando (muito bem, diga-se de passagem) efeitos clássicos: “Quem é este vagabundo fazendo mágicas?”. Quando se questiona quem tem o mérito de conhecer os segredos de uma arte de domínio de poucos, a própria arte perde seu sentido. Arte é para ser livre. A arte liberta. A mágica é para o público, não para os mágicos. O ancião também esquecia que a mágica não nasceu nos palcos de teatros glamurosos (onde aquele artista de rua certamente sonharia em se apresentar e teria todas as condições para tanto). Os mágicos nem sempre usaram fraque e cartola. Aliás, a street magic (que deve muito a David Blaine) é um gênero importantíssimo. Será que só se pode aprender mágica de rua dentro das quatro paredes de uma sociedade secreta? Que curioso paradoxo!
A mágica não tem como preocupação crescer. É uma arte para poucos. É uma prática seleta. Cogita-se que quanto mais pessoas conhecerem os segredos, menos interesse haverá nos shows. Curiosamente, as mídias sociais não têm esse prurido. Vídeos curtos de números sendo performados e logo desvelados correm pela internet.
Não há dúvida de que o segredo da ilusão é fundamental para o deleite. Mas é preciso refletir com prudência. Vamos discutir como a mágica realiza o impossível e a importância do segredo. Permita-me filosofar um pouco.
O potencial é aquilo que pode acontecer, mas ainda lhe falta o acontecimento. Já o impossível não pode jamais acontecer, pois a ele lhe faltam a possibilidade, as condições de realização. As artes mágicas subvertem os limites do que é factível. O assombro e o encantamento com a mágica emergem quando o impossível se realiza diante de nossos olhos ou até mesmo em nossas mãos. O maravilhamento é tal que a plateia não raro grita, se levanta, se movimenta de forma abrupta, aplaude efusivamente. Minha hipótese é que, como vivemos no registro do potencial, atuando nos limites estreitos do possível — cumprindo tarefas, buscando atingir metas, pagando contas, seguindo a rotina previsível do dia a dia —, quando o impossível se revela possível o deslumbramento vem à tona como alívio, como esperança, como deleite e fôlego em um mundo repetitivo. A surpresa do efeito mágico causa espanto e satisfação em um real no qual as surpresas costumam ser reveses.
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