Como funciona o trabalho e a formação de novos talentos da dublagem brasileira que emprestam as cordas vocais para personagens do cinema e da TV
Por Diego Olivares
Leia a edição de FEVEREIRO/25 da Revista E na íntegra
Quem vê o dublador Celso Vasconcellos em um de seus passeios pela região serrana do Rio de Janeiro, local em que passa boa parte do seu tempo quando está no Brasil, não imagina que aquele senhor alto e grisalho carrega centenas de vozes em seu currículo. O tom grave e pronunciado de sua voz, além da dicção apurada, proporcionou ao público brasileiro a interpretação de falas de astros internacionais, como Elvis Presley (1935-1977), Sidney Poitier (1927-2022), Warren Beatty e Peter Falk (1927-2011).
Vasconcellos é um dos dubladores mais longevos do país, tendo emprestado sua voz para filmes, seriados e desenhos animados entre 1969 e 2001, período em que atuou em estúdios como Herbert Richers, Rio Som e AIC São Paulo. A dublagem surgiu por acaso na vida dele, em uma época em que a profissão ganhou força no cenário nacional por conta de um decreto do então presidente Jânio Quadros (1917-1992), que determinou, em 1962, que todas as produções estrangeiras exibidas nos canais de TV nacionais fossem faladas em português. A decisão criou um hábito que permanece até hoje na preferência do público, como aponta uma pesquisa do site Ingresso.com divulgada em 2021, mostrando que 73% dos ingressos de cinema comprados no portal foram para filmes dublados.
Seis décadas atrás, quando esse mercado começou a se consolidar por aqui, os dubladores costumavam vir das radionovelas. Vasconcellos não foi exceção. “Um dia o Sérgio Cardoso [ator de teatro, cinema e TV (1925-1972)] estava dublando um filme e faltou um ator. Então, ele foi me buscar, os diretores gostaram de mim e meio que me adotaram”. Começava ali uma carreira que, de forma indireta, se cruzou com a de estrelas de Hollywood, além de passar pela produção japonesa Ultraseven (1967-1968), a animação Aquaman (2018) e a franquia de cinema Transformers (2007-2024) – que confessa não serem seus trabalhos favoritos. “Eu sempre preferi dublar gente”, afirma, acrescentando que muito da sua técnica vinha de estudar o ator original, desde a pronúncia até os trejeitos físicos, para então chegar ao timbre mais parecido possível.
Celso Vasconcellos é de uma geração cujo trabalho de dublagem era feito em grupo, como numa peça de teatro interpretada pelos dubladores que contracenavam entre si enquanto refaziam os diálogos da versão original. Hoje em dia, o mercado não apenas ficou mais profissionalizado, como ganhou um componente solitário, em que cada ator dubla separadamente a parte que lhe cabe. Em muitas ocasiões, uma fala mais longa pode ser dividida em partes menores, e mesmo assim tem de soar fluida aos ouvidos do espectador. Para quem estava acostumado com o calor da troca com os colegas de cena, foi preciso certa adaptação.
Recentemente, a atriz de musicais Myra Ruiz viveu a experiência da dublagem na pele (e na voz). Responsável pelo papel principal da versão brasileira para os palcos da produção estadunidense Wicked (que ganhou montagens em 2016, 2023 e 2025), ela foi escalada para repetir sua participação como a bruxa Elphaba na dublagem do filme, que chegou aos cinemas em novembro do ano passado. “A troca que eu normalmente tenho com os outros atores e com o público, eu busquei na interpretação das atrizes do original”, compara.
Na versão de Hollywood, Elphaba foi interpretada por Cynthia Erivo, que vem ganhando destaque na temporada 2025 de premiações do cinema. E, como se trata de uma produção musical, o trabalho da atriz brasileira foi além do ato de replicar as falas da personagem nos diálogos, exigindo também uma adequação às canções. “Dentro do alcance da minha voz, tive que mudar um pouco meu timbre para chegar mais próximo ao dela, e eu tentei trazer isso para a minha interpretação, não no sentido de imitar, mas para honrar o que a Cynthia fez”, conta Ruiz.
A tarefa fez a atriz voltar à essência de uma personagem com quem já convive há quase uma década nos palcos. “Depois de tantos anos, foi interessante colocar emoção na Elphaba só com a voz, sem usar os movimentos do corpo ou o figurino que o teatro proporciona. Foi um exercício de poder focar no que há de mais essencial na personagem”, revela.
Acompanhar de perto e deixar sua marca em produções da cultura pop é certamente um grande atrativo para os interessados em iniciar uma carreira no mundo da dublagem. Mas quem trabalha na área há muito tempo adverte: os momentos de glamour são raros. “É um ofício em que a pessoa precisa ralar muito, um trabalho de formiguinha”, define Lino Reis, professor do curso de dublagem no Senac São Paulo. “Nós somos operários da arte, estamos aqui para servi-la”, acrescenta.
Segundo Márcia De Mônaco, dubladora há 32 anos, 15 deles também atuando como professora, trata-se de uma área em franca ascensão. “Quando comecei, o mercado brasileiro se resumia a 280 dubladores, todos concentrados no Rio e em São Paulo”, lembra. “Hoje estimamos dubladores nos 27 estados do país, totalizando entre 6 mil e 6,5 mil profissionais.”
Márcia e Lino são responsáveis por formar cerca de 100 dubladores por ano na unidade Lapa Scipião do Senac, na capital paulista. A carga horária é intensa: aulas de quatro horas, três vezes por semana, durante três meses. Para participar, o aluno precisa ter DRT, o registro profissional de ator, documento obrigatório para exercer a dublagem profissionalmente. Os encontros começam com a introdução à teoria e aos termos técnicos do ofício, passando por exercícios de interpretação até colocar a voz em cena nos mais variados gêneros.
No meio do caminho, os pupilos aprendem uma diversidade de macetes, incluindo adaptações que podem ser feitas num texto para abrasileirar a fala. O professor Lino não se esquece de quando, durante uma cena, viu um de seus colegas substituir “it’s amazing!”, da fala original, por “amei isso”. O leitor que fizer o teste em frente ao espelho vai comprovar que a exclamação, de fato, soa melhor do que a tradução literal da expressão em inglês (algo como: “é maravilhoso”).
A cena, por sinal, fazia parte de um reality show, formato responsável por boa parte da demanda por dubladores atualmente. Fazer a voz de uma pessoa real, e não de um personagem ou animação, requer uma abordagem ainda mais minuciosa, de acordo com os professores do Senac. “A matéria–prima de um reality são cenas do cotidiano, e por isso você tem que colocar palavras na boca dessas pessoas de forma natural”, explica De Mônaco. “Aí está a maior dificuldade: atuar sobre a fala de alguém que não está atuando.” É necessário ajustar o ritmo da fala, e até mesmo eventuais gaguejadas e hesitações. Tudo para fazer com que a voz daquele cidadão estrangeiro soe bem em português. “Quando as pessoas esquecem que aquele programa é dublado, é porque o trabalho foi bem-feito. Nosso intuito é ser o mais invisível possível”, complementa Reis.
O crescimento dos reality shows também ajudou a equilibrar um pouco mais a balança entre os gêneros dos profissionais atuantes nos últimos anos. Até pouco tempo, contava-se nos dedos a presença feminina nas dublagens. A saída para elas, que costumavam ficar restritas a menos de 30% do número de personagens, foi desenvolver timbres que pudessem se encaixar na voz de crianças e adolescentes do sexo masculino. “A gente foi adquirindo muito mais técnicas para conseguir entrar num universo no qual, eventualmente, não poderiam identificar se a minha voz é feminina ou não”, relata De Mônaco, citando desenhos como Naruto (2002-2017), herói dublado por Úrsula Bezerra [que também faz o Goku, da série Dragon Ball Z (1989-1996)], e A Turma da Mônica (1976-2022), em que a voz do Cebolinha foi feita por Angélica Santos.
Quando o trabalho parte de uma criação brasileira, como é o caso da turminha inventada por Maurício de Sousa, não se trata de uma dublagem, já que não há uma voz original a ser traduzida e adaptada. É necessária a criação de uma voz original por parte dos atores: primeiro vem a concepção do roteiro, depois a gravação dos diálogos e, somente aí, os animadores finalizam a criação, fazendo com que os movimentos das bocas das personagens se encaixem nas falas, e não o contrário.
É assim que acontece, por exemplo, em Irmão do Jorel (2015-2024), a mais bem-sucedida animação feita no Brasil neste século 21. Premiada com o Emmy, a atração, atualmente em sua quinta temporada, é famosa pelo humor irônico e as histórias fantásticas, muitas vezes criadas a partir de improvisos durante a escrita dos episódios. Com o elenco reunido para essas leituras, resgata-se o clima de grupo que caracterizava a rotina dos profissionais da voz de décadas atrás.
Foi justamente com esse espírito aberto a qualquer coisa que fuja do script que Juliano Enrico, idealizador e autor da série, encontrou a voz de seu protagonista. Andrei Duarte trabalhava como ilustrador de cenários para as animações do Copa Studio (berço de Irmão do Jorel) e costumava tirar sarro do toque de celular de um dos colegas, imitando o timbre agudo e repetitivo que vinha várias vezes por dia do aparelho. Aquele som entrou de maneira insistente na mente de Enrico, que decidiu experimentar a voz de Duarte como guia enquanto trabalhava no episódio piloto da animação. Ele conduziu testes com uma porção de atores mais experientes, mas já era tarde. Ninguém lhe tirou a convicção de que o mais indicado para o papel era o ilustrador, cuja vida profissional ganharia um novo rumo a partir dali, com direito ao registro oficial de ator para poder trabalhar legalmente na área.
“No começo, eu não tinha certeza do que eu estava fazendo, mas eu sabia que tinha condições de fazer”, disse Duarte, hoje com a bagagem de dez anos da série nas costas. O sucesso de Irmão do Jorel atravessou fronteiras, e atualmente a animação é exibida em outros países da América Latina, onde, aí sim, acontece o processo de dublagem tradicional. “Fico feliz pra caramba de ver que a minha voz, de certa forma, está inspirando um ator mexicano a tentar fazer algo parecido para o personagem”, orgulha-se Andrei Duarte.
Com o avanço das tecnologias de inteligência artificial, o intercâmbio de vozes e referências culturais na prática da dublagem pode enfrentar uma ameaça no futuro. Em junho do ano passado, uma empresa do mercado financeiro lançou uma propaganda em que o ator Will Smith falava em português, graças a um programa capaz de imitar sua voz e traduzi-la para o nosso idioma. Em resposta, a campanha Dublagem Viva, lançada por diversos profissionais da área, busca colocar limites ao uso desse recurso. “Nosso interesse não é proibir nenhuma evolução tecnológica, queremos apenas garantir que o que é apenas uma ferramenta de criação não passe a ser entendida como criadora”, diz o manifesto publicado no site da iniciativa.
“Os profissionais precisam ter seus espaços garantidos”, defende Juliano Enrico. “Nós sabemos o valor que esse trabalho tem, o trabalho que dá e o quanto isso faz diferença na hora de assistir a uma obra. Não dá nem para imaginar um desenho como Irmão do Jorel dublado por uma inteligência artificial”, argumenta.
Descoberto por acaso por Juliano Enrico, criador de Irmão do Jorel, o ilustrador Andrei Duarte não imaginou que dublaria um dos personagens mais populares da animação brasileira. Foto: Cartoon Network/Max
A professora Márcia Del Mônaco defende uma regulamentação mais rígida frente ao assunto, inclusive para defender os direitos autorais do dublador. “Eu não sei até que ponto a IA vai alcançar o que a dublagem brasileira alcança, de trazer essas sutilezas para a nossa linguagem, para o nosso cotidiano, para o nosso jeitinho, com as nossas emoções, com o nosso calor humano. Nós temos uma coisa que é a naturalidade, e não acredito que a inteligência artificial consiga, por mais que evolua, chegar neste patamar”, finaliza.
Filmes dublados e produções brasileiras são exibidos no projeto Cine Clubinho, no CineSesc, enquanto Centro de Pesquisa e Formação realiza oficina de introdução ao ofício de dublador
O CineSesc exibe uma diversificada programação de filmes infantojuvenis em cópias dubladas, nas tardes de domingo. As sessões garantem a diversão de crianças e adultos, e ainda contam com apresentações artísticas e lúdicas antes de cada exibição, num espaço com brinquedos educativos.
E para quem ficou com vontade de testar seus talentos como dublador, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc oferece, no próximo mês de abril, uma oficina de introdução ao ofício. Comandados pelo premiado músico Beto Strada, compositor de trilhas sonoras para 34 filmes brasileiros, os encontros trabalham as técnicas e o uso da voz para construir a sonoridade de uma obra.
CINESESC
Cine Clubinho
Todos os domingos, às 15h. Informações sobre venda ou retirada de ingressos:
CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Oficina de introdução à arte da dublagem
Com o compositor, maestro e professor de cinema Beto Strada.
Dias 8, 9, 10 e 11/4, das 14h às 18h.
Inscrições: sescsp.org.br/cpf
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