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Qual a origem da palavra coragem? E como as reflexões sobre essa virtude podem transformar a vida em sociedade? Na obra Mutações: sobre a coragem e outras virtudes (Edições Sesc São Paulo, 2024), intelectuais de diferentes áreas do saber se debruçam sobre o assunto, considerando os desafios da convivência contemporânea. Resultado de um ciclo de conferências realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, essa coletânea de ensaios é organizada por Adauto Novaes e joga luz sobre diferentes olhares para esse sentimento que só existe em ação, e que pode transformar o ser e seu lugar no mundo.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, “a coragem só existe porque existe o medo”. Essa primeira experiência é sentida pelo recém-nascido, que passa do conforto do ventre da mãe para o mundo extrauterino, completamente distinto de tudo que conhecera. O temor, no entanto, logo é sanado pelos cuidados maternos: o colo, o leite, o calor do corpo da mãe. Esse acolhimento gera confiança no bebê, e precisará ser reforçada ao longo de seu crescimento. Os pais também precisam se armar de coragem para deixar seus filhos correrem alguns riscos – riscos que não ameacem suas vidas, evidentemente, mas que lhes possibilitem crescer e enfrentar a vida com alguma coragem, descreve Kehl.
Se o nascedouro da coragem está na experiência corpórea de todo indivíduo, é na sua ausência, em multidões virtuais capazes de difamar e espalhar fake news, por exemplo, que a covardia ganha forma, como defende e jornalista e pesquisador Eugênio Bucci. “Os discursos de ódio que se alastram no bojo das notícias fraudulentas vão se espalhando por meio de milícias virtuais clandestinas e dispersas, acobertadas por numerosos véus de camuflagem. Caluniadores não se deixam ver. Não dão a cara a tapa. E então? Se o corpo não está mais aí, estará a coragem?”, reflete Bucci.
Neste Em Pauta, trechos dos ensaios escritos por Bucci e Kehl para o livro Mutações: sobre a coragem e outras virtudes traçam cartografias rumo ao sentido dessa virtude.
Por Eugênio Bucci
O adjetivo “presencial” consta dos dicionários, eu bem sei, mas ando implicando com ele. De tanto bater na pedra da prosa do idioma, o trambolhão vem se infiltrando em tudo, fominha, pervasivo, epidêmico e por demais espaçoso, pesado. “Presencial” vem da forma latina presentialis e está conosco desde muito tempo. Nunca incomodou. Agora, porém, ele e o respectivo advérbio, “presencialmente”, entraram na moda, para minha tormentosa infelicidade. Dou um exemplo: dizem que este ciclo do Mutações é um ciclo “presencial”, ou seja, estamos aqui “presencialmente”.
Soa estranho. À primeira escuta, parece uma prosa redundante: afinal, se estamos aqui, de fato, é lógico que só pode ser “presencialmente”. Mas acontece que não. Também poderíamos estar aqui na nossa “atividade cultural” – outra expressão em voga –, mas não “presencialmente”. Isso é um dado novíssimo. Graças aos padrões recentes da telemática, há palestras que não são “presenciais”, daí ser necessário avisar com antecedência quando um compromisso vai ser mesmo “presencial”. Ser presencial ou não: isso muda tudo. Mudou tudo. (…)
Aqui chegamos ao meu ponto: o corpo não precisa estar lá. Considerando o tema do Ciclo neste ano, “A coragem e outras virtudes”, eu me vejo na obrigação de indagar: pode haver um ato de coragem se o corpo não está lá? Existe coragem “não presencial”? Se nossa mísera existência foi tragada pelo “não presencial”, mas “não presencial” mesmo, “não presencial” como jamais houve, de que maneira a gente pode pensar essa virtude aqui e agora?
Na sinopse de sua conferência neste ciclo, Jorge Coli conta que, no Laques, de Platão (428/427 a.C.-348/347 a.C.), a coragem aparece como “a virtude do soldado”. Boa síntese. De fato, nas primeiras falas do célebre diálogo, os interlocutores buscam entender o valor do combatente que enfrenta o inimigo e não foge. A virtude se apresenta, ao menos no início, como um trunfo vinculado não à razão, mas ao caráter resoluto de quem não vacila quando chega a hora de matar e morrer. No princípio, é o corpo.
E não só no princípio. A palavra que dá título ao nosso ciclo deste ano tem seus parentescos etimológicos, como bem se sabe, com a palavra “coração”, donde dizermos que o indivíduo destemido “tem peito”. Coração e peito constituem nada menos que o centro do corpo. Estamos aqui tratando de uma virtude que exige do cidadão que se apresente em ato.
Mas como se apresentar em ato se o corpo caiu em desprestígio e perdeu relevância? Onde foi morar a velha virtude depois que o presencial se esvaneceu? Tudo aconteceu muito rápido, quase que sem registro. Essas alterações não eram sequer perceptíveis antes da segunda metade do século 20, mas que o corpo perdeu relevância é fato. Primeiro, as presenças físicas deram lugar às telepresenças de que tanto nos falou Paul Virilio (1932-2018). Em seguida, as telepresenças se esfumaçaram em semipresenças difusas ou, mais ainda, em tramas diferidas nas quais as identidades pessoais, além dos corpos, ficaram mais aéreas.
A sistemática ausência física dos sujeitos nos enredou em tramas de indefinição e invisibilidade: já não dá para ver com nitidez quem faz o quê, de que modo e com quais instrumentos. Estamos atados a bestialidades cujos autores não conseguimos divisar. Agentes sem nome e sem origem dominam as arenas públicas em conflagração. Horrores nos chegam de muitas partes, perpetrados por atos que não são presenciais nem mesmo telepresenciais.
Até assassinatos ganharam variantes remotas. Robôs voadores que disparam mísseis, com pontaria milimétrica, substituem com inúmeros ganhos mecânicos o soldado mais diligente. Os drones matam e não temem ser alvejados pelo inimigo – nem se quisessem poderiam temer coisa alguma, pois drones não têm coração, não têm peito, não sentem nada. Drones tornam mais desumanos os atos desumanos.
Nas redes sociais, as campanhas massivas de desinformação contam com o engajamento de milhões de seres supostamente racionais e providencialmente anônimos. Desde o advento das grandes cidades modernas, as multidões têm servido para diluir os indivíduos, rebaixando seus travos morais. Misturados nas turbas, cidadãos bem-educados se sentem autorizados a agir como bichos. Pois agora as multidões virtuais parecem ser ainda mais potentes em matéria de borrar identidades: onde ninguém se sente identificável, onde ninguém se sente tangível, ninguém é responsável.
Os discursos de ódio que se alastram no bojo das notícias fraudulentas vão se espalhando por meio de milícias virtuais clandestinas e dispersas, acobertadas por numerosos véus de camuflagem. Caluniadores não se deixam ver. Não dão a cara a tapa. E então? Se o corpo não está mais aí, estará a coragem?
É claro que nem toda forma de anonimato é pusilânime. O filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado um dos pais do liberalismo, escreveu ao menos duas de suas Cartas sobre a tolerância sob pseudônimo. Os inconfidentes da Conjuração Mineira, em Vila Rica, no século 18, agiam na surdina. Os membros da Resistência Francesa que desafiaram a ocupação nazista na Segunda Guerra não se apresentavam publicamente. Os militantes da luta armada contra a ditadura militar no Brasil, durante as décadas de 1960 e 1970, atacavam às escondidas e usavam codinomes. Em tais circunstâncias, a clandestinidade é virtuosa: o sujeito assume riscos para partir ao ato político em defesa da liberdade. Como alguém já disse: sob uma ditadura, quem tem peito mente.
O anonimato da desinformação nas redes sociais é o oposto. Em primeiro lugar, não traz riscos; ajuda a reduzi-los. Em segundo lugar, não serve para conduzir à ação política, mas para sabotar todo o tecido da política. O anonimato da desinformação instaura o banditismo no simbólico, mina as instituições da democracia, conspira contra a liberdade dos demais, confunde a opinião pública, viola direitos e alimenta projetos autoritários. O anonimato ilegítimo, que semeia a ignorância e idolatra líderes violentos para vitimar os mais desprotegidos, é filho da covardia. Como alguém já disse, também: na democracia, quem esconde a verdade é covarde. (…)
A onda reacionária que varre o planeta, com o propósito de nos arrancar ainda mais o domínio do corpo, veio como extensão da mesma covardia. A coragem é o oposto: rende seus préstimos à vida coletiva e ao direito ao corpo. É verdade que ela é, sim, “um jeito de corpo”, não de caraminholagens, mas seu sentido ético só se consuma na razão e na firmeza de espírito. A coragem, tornada virtude, é virtude política. O que ela quer de nós é pensamento.
No ser pensante, a coragem honra o desejo porque não profana a justiça: imprime honra ao desejo e não o trai jamais. Somente por ela o espírito nos devolve o corpo livre. Somente por ela o corpo nos conduz ao espírito livre. Sem isso, não vale a vida. Ainda que a tenham esvaziado, é ela a virtude mais íntegra, ela mesma, aquela que a gente sempre acha que tem de menos e nunca tem coragem de admitir.
Olho
A coragem, tornada virtude, é virtude política. O que ela quer de nós é pensamento.
Por Maria Rita Kehl
Estamos habituados a considerar a coragem a ausência de medo. “Fulano é corajoso, não tem medo de nada!” Bem, uma pessoa assim pode ser admirável, mas não penso que a palavra coragem seja a mais adequada para qualificar um temerário. Sim: aquele que não teme nada é chamado temerário. Pode cometer loucuras, colocar-se em grandes riscos, não porque saiba enfrentar seus medos, e sim porque os ignora.
Não devemos, por isso, desqualificar a impetuosidade dessas pessoas. Há muita pulsão de vida, muita vontade de não ficar à margem dos acontecimentos – e também uma boa dose de generosidade – nesses que pulam no abismo para tentar salvar alguém que está caindo. Morrerá, certamente, junto com aquele que tentou resgatar. Se o temerário não pode ser confundido com o corajoso, várias vezes age por impulsos cegos de generosidade.
Mas a coragem, a meu ver, exige uma volta a mais no parafuso da impetuosidade. Não se trata de ignorar o perigo, e sim de enfrentá-lo. Enfrentar perigos com cuidado, com astúcia, lançando mão de todos os recursos possíveis diante de uma situação ameaçadora – a isso quero chamar de coragem. A vida exige isso de nós praticamente todos os dias, ou mais de uma vez por dia. Durante a pandemia, muitos nem se deram conta da coragem necessária para entrar no transporte público de manhã e enfrentar um dia de trabalho numa fábrica ou num escritório cheio.
O uso de máscaras, que algumas pessoas desprezavam, não é sinal de medo, e sim de bom senso. Não chamemos os que desprezaram máscaras de corajosos: foram, no mínimo, temerários, quando não simplesmente idiotas. O mesmo vale para os que se postaram contra as vacinas. Mas, mesmo entre mascarados, os riscos existiram. Os trabalhadores e as trabalhadoras do Brasil que não tiveram a opção de ficar em casa certamente precisaram acionar boas doses de coragem para tocar suas vidas, entrar em ônibus cheios, tirar a máscara na hora do almoço num refeitório lotado. Com ou sem pandemia, a coragem nos convoca diariamente. (…)
A coragem só existe porque existe o medo. Nascemos no medo. Sugiro considerarmos que a primeira sensação do recém-nascido seja o medo. O bebê passa do conforto intrauterino para o amplo espaço do mundo (na verdade, do colo materno), do escurinho para a claridade, da plenitude do corpo constantemente alimentado pelo líquido placentário para a estranha sensação de fome. A experiência do desamparo é rapidamente compensada pelos cuidados maternos: o colo, o leite, o calor do corpo da mãe. Tais cuidados se transformam em rotina, e a partir dessa rotina a criança adquire alguma confiança na vida. Só que essa confiança ainda não pode ser chamada de coragem: a criança confia porque as razões do medo inicial foram superadas pelos cuidados maternos.
Então, de onde vem a coragem? Penso que esta advém (em primeiro lugar) da curiosidade movida pelas pulsões de vida. O recém-nascido parece querer “sugar o mundo”. O prazer da boca e do palato inaugurado na amamentação prolonga-se no sugar do dedinho, da ponta do lençol ou de qualquer outro objeto ao alcance da boca – daí a necessidade de atenção permanente por parte dos pais para evitar que a criança se engasgue. Em seguida a criança passa a testar as pequenas potências de seu próprio corpo. Virar-se sozinha no berço, alcançar o pezinho, gritar para chamar a mãe – e o regozijo de constatar que esta atende ao chamado!
A partir de um ano de vida, mais ou menos, trata-se da locomoção: engatinhar, apoiar-se em algo para alcançar a posição vertical e… andar! “Se cai, levanta, continua, a porta da rua fechada, criança não deixo sair…”. Assim canta Maria Rita, filha de Elis Regina (1945-1982), para saudar os progressos de seu bebê. A criança talvez não tenha noção da coragem necessária a tudo o que vem conquistando. Mas mãe e pai precisam ser corajosos para deixar a criança se arriscar. Um risco calculado, claro. Pais corajosos. Não se trata de abandonar a criança à própria sorte, mas de deixá-la experimentar. Aprender, inclusive, a ter cautela. Mas não se deve desencorajá-la de tentar. Na criança, a coragem é movida pela curiosidade, mãe de todas as pulsões de vida. (…)
Quais são as condições necessárias para nos encorajarmos diante de um desafio, uma aposta, uma investida no desejo? A primeira não é, necessariamente, a autoconfiança. Essa decorre do amor que os pais nos dedicaram e, também, das apostas que fizeram relativas a nós. Não é bom que os pais considerem seus filhos perfeitos – os narcisistas tendem a não se arriscar para não perder a imagem ideal. Mas é importante que, ao mesmo tempo, acompanhem o desenvolvimento das capacidades infantis e permitam que eles corram pequenos riscos – como o de cair e arranhar o joelho – para adquirir autoconfiança.
Mas penso que a primeira condição para a aquisição de coragem seja a curiosidade, essa filha do desejo com a fantasia. Por que os pais ensinam suas crianças a temer tantas aventuras que o mundo oferece a estes que recém-inauguram sua posse da vida? É claro que é preciso estar presente para evitar grandes acidentes, mas é preciso deixar a criança correr pequenos riscos – e cada vez mais vezes, na medida em que ela cresce.
A criança é um ser intensamente desejante. Os pais precisam estar presentes para balizar essa intensidade, mas não para impedi-la de desejar, nem para forçá-la a só querer aquilo que eles querem para ela. Sem a imaginação – e quanta imaginação tem uma criança, quando não a condenamos a uma vida diante da televisão! –, a vida não tem graça. De onde se deduz que os pais também precisam se armar de coragem para deixar seus filhos correrem alguns riscos – riscos que não ameacem suas vidas, evidentemente, mas que lhes possibilitem crescer e enfrentar a vida com alguma coragem. Para nós, adultos, a coragem implica saber, como Fernando Pessoa (1888-1935):
“Não sou nada
Nunca serei nada
não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Coragem é não trair esses sonhos, mesmo sabendo que pelo menos a maior parte deles não se realizará. Mas eles nos movem: a correr riscos e a conquistar, vez por outra, aquilo com que sonhamos. “Somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”, escreveu Shakespeare (1564-1616). Matéria tão inefável… tão frágil, diante da voracidade das conquistas – estas, sim, materiais – impulsionadas pelo capitalismo, e diante dos objetos/das coisas que tal sistema põe à nossa disposição.
Mas não desprezemos a matéria das fantasias (agora fui de Shakespeare a Freud [1856-1939]) que nos constitui. Nós não vamos alcançá-las, como as imaginamos desde a infância. Mas o compromisso com as fantasias nos move, permanentemente, na direção de quem somos. Pode parecer solipsismo, mas não é: cada um de nós é um território a ser permanentemente conquistado, até o fim da vida. Essa é uma tarefa que requer coragem.
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Cada um de nós é um território a ser permanentemente conquistado, até o fim da vida. Essa é uma tarefa que requer coragem.
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