Quintal dos Erês – Toda criança merece um quintal 

02/06/2025

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Por Kiusam Oliveira*

Eu celebro a criança que existe em mim, pois só assim serei capaz de celebrar a criança que existe em você. Para mim, essa máxima é tão real quanto afirmar que a ancestralidade é ponte para o encontro com o amor-próprio e a consciência. Tenho afirmado que somente ela é capaz de provocar as suturas psíquicas necessárias para que crianças negras também possam celebrar a potência da vida em total encantamento.

Minha mãe costumava dizer que eu era uma criança velha, pois eu não gostava de ficar diante de uma televisão. Eu gostava mesmo era de amassar meu mundo ideal com o barro, as massinhas existentes em nosso quintal. Nesse sentido, pensar a partir do conceito de infâncias – no plural – faz toda a diferença, pois assim fica ressaltado que não existe uma única experiência universal de infância. O que quero dizer é que fatores como gênero, raça/cor, etnia, condições sociogeográficas, entre outras, as impactam, como impactaram a minha experiência de criança pobre, com um quintal gigante com tudo o que precisávamos para nos alimentar- inclusive nossas almas.

Assim, é possível que o período da infância negra seja visto para além das incertezas. Penso que afirmar o encantamento como um posicionamento político e crítico afro-centrado garantirá que tal propósito seja atingido de forma muito mais eficiente. Garantirá o uso criativo de ferramentas tecnológicas ancestrais construtivas à criação de novos sentidos para tais infâncias, como: o estar junto, a relação com o tempo e o espaço, a ampliação dos repertórios das brincadeiras, o falar e o ouvir, o cantar e o dançar, o exercício da livre expressão, o ecoar do sorriso e a celebração.

Brincar é direito de toda criança. Com o barro, eu recriava o mundo criando bonecos coloridos, pois, em cada parte do quintal mapeado por mim, tinha massinhas de cores diferentes e, ali, todos eles, independentemente da cor do barro, se davam bem, se respeitavam, eram todos lindos. Passatempo? Não. Eu estava em elaboração criativa da realidade que eu via em meu entorno. Era brincadeira séria. Quero, inclusive, propor a vocês um movimento que ganhe o país através de um grito, e o faremos com os punhos cerrados, afirmando:

“Toda criança negra merece um quintal para brincar.”

Não seria um movimento justo? Não seria uma justiça reparatória às infâncias e, especialmente, às crianças negras, para que vivam sob o conceito de erê, isto é, da brincadeira, na língua iorubá, como um direito essencial, capaz de garantir que criem imaginários positivos enquanto abrem asas, voam, sonham, criam e materializam mundos prósperos e abundantes possíveis e sem precedentes no país? Não seria esse o caminho ideal para que consigam recriar, inclusive, o conceito europeizado de quintal para um conceito mais afrocentrado, como eyinkule?

Ah!!! Eu desejo que toda criança negra seja capaz de viver sua infância tayorizando a vida em seus quintais, tal e qual faz Tayó, minha personagem preferida da literatura infantil, sob o olhar encantado de sua mãe. Afinal, toda criança negra merece um quintal para brincar – e que esse quintal seja ancestral e abranja todo o planeta.

*Kiusam Oliveira é pedagoga, doutora em educação e mestra em psicologia.É consultora em educação antirracista, infâncias negras e literatura negro-brasileira do encantamento infantil e juvenil, além de formadora de educadores e profissionais da educação, desde 1992.

>>> O Quintal dos Erês do Festival Sesc Culturas Negras 2025 acontece no Sesc Consolação.

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Vozes, Corpos e Movimentos da África – Culturas da Guiné Conacrí, no Sesc Consolação. Foto: Divulgação

>>>>> Leia mais sobre os outros quintais do festival aqui.

Festival Sesc Culturas Negras

A segunda edição do Festival Sesc Culturas Negras acontece de 10 a 15 de junho de 2025 nas unidades 14 Bis, Campo Limpo, Casa Verde, Consolação, Interlagos, Pompeia, Santana e Vila Mariana. Cada uma delas se transforma em quintal simbólico celebrando a potência criativa das culturas negras, onde acontecem apresentações, vivências e rodas de conversa em torno das memórias, corporeidades, ensinagens, festejos, ofícios e teatralidades. 
Acesse o site sescsp.org.br/culturasnegras para conhecer a programação completa.

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