O QUINTO ELEMENTO | Depoimento de Nelson Triunfo

28/11/2023

Compartilhe:

Dançarino, músico e educador, Nelson Triunfo protagoniza a história do hip-hop no Brasil

POR ROBERTA DELLA NOCCE

Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Também sou old school, mano, mas não sou da sul

Eu sou do Nordeste, cabra da peste

O preconceito eu senti na pele, nas tudo que sobe, desce

Disso eu já sabia, contando a minha história eu crio a rima

Assim como criei meu grupo Funk e Cia

Que permanece hoje em dia quebrando as barreiras com a força do som

Eu sou Nelsão, cabelão e tal, fora do normal

Visual, resistência, aí não pago pau

Passista do carnaval tradicional, mano

Já misturei até Carlinhos de Jesus com James Brown

Sou filho do soul, pai do hip-hop do Brasil

Quem não acredita, é só perguntar pra quem viu

“Se liga, meu!”(1995), de Nelson Triunfo

Não há texto (e nem rima) que dê conta de apresentar Nelson Triunfo tão bem quanto os versos escritos por ele na música “Se liga, meu!”, composta em 1995 no freestyle na zona Sul de São Paulo. Aliás, se existe alguém que pode dizer que conhece esta cidade e seus extremos profundamente, esse alguém é Nelson Triunfo. A sua história, desde que desembarcou na estação da Luz, em 1977, funde-se com a história do nascimento da cultura hip-hop no Brasil. Não à toa, a alcunha de “pai do hip-hop” o acompanha há gerações. E há quem diga que além dos quatro elementos que compõem tal cultura urbana – o rap, o grafite, o break e o DJ – tem também o Nelson, uma espécie de amálgama entre eles: dançarino de breaking, músico, compositor, ativista social, educador. O quinto elemento do hip-hop.

Foi de Triunfo, sua cidade natal – um pequeno município serrano a 400km de Recife (PE), na divisa com a Paraíba –, que Nelson herdou o sobrenome artístico. E foi lá, também, que aprendeu a dançar. Àquela altura, James Brown (1933–2006) já estava nas paradas de sucesso e Os Beatles já eram Os Beatles. “Ele [James Brown] foi tipo um amor à primeira vista, foi quando eu disse: É isso que eu quero fazer!”. Em mais de quatro décadas de trajetória, Nelson já dançou com Tim Maia (1942-1998), Sandra de Sá, Jimmy Cliff e Tony Tornado, foi condecorado por James Brown e atuou em filmes nacionais, como A marvada carne (1985) e Uma onda no ar (2002). Essas e outras histórias fazem parte da biografia Nelson Triunfo – Do sertão ao hip-hop (LiteraRUA), assinada pelo jornalista Gilberto Yoshinaga, e do documentário Triunfo, ambos lançados em 2014.

Do sertão pernambucano à Bahia, da Bahia a Brasília e de Brasília a São Paulo, Nelson desembarcou, definitivamente, na capital paulista e popularizou sua presença pelos bairros periféricos. Sobretudo, pelas ruas do Centro, onde circula todos os dias. Nelson Gonçalves Campos Filho é da Penha, bairro onde reside desde 1985, mas é também de Diadema (SP), onde ajudou a construir a Casa do Hip-Hop. Ele ainda tem passagens históricas pelo Bixiga e por Itaquera, nos anos 1970. A mobilidade do “homem-árvore” – apelido que recebeu de Tony Tornado – pelos extremos da cidade o faz ser reconhecido em todas as quebradas, mas é na região central que ele se sente em casa. “O Centro é o meu quintal!”, diz.

Nos bailes e na rua, o artista triunfou como uma autoridade da dança urbana e da cultura hip-hop, incorporando referências
norte-americanas, mas priorizando a cultura nacional. Inserindo a capoeira da Bahia e o frevo de Pernambuco nos saltos adaptados do breakdance. Criando, assim, o hip-hop brasileiro em sua essência. Foi dançando, circulando por São Paulo e militando que Nelson cravou seu nome na história da cidade, tornando-se símbolo da cultura de rua, inicialmente com o soul e o funk, gêneros que serviram de base para o hip-hop e que fortaleceram o movimento negro na cidade dos lendários bailes black, como a Chic Show.

Admirador do “funk falado”, Nelson descobriu, anos depois, que o gosto vinha de suas origens nordestinas, a partir de referências como a embolada e o repente. Neste Depoimento, composto por trechos da entrevista para a websérie Olhares sobre São Paulo: especial hip-hop (2023), Nelson Triunfo, esse híbrido de Luiz Gonzaga e James Brown, como ele se autodefine, aborda o papel da cultura como agente transformador nas periferias e relembra o início de sua trajetória como um dos personagens fundamentais para o desenvolvimento do movimento hip-hop na cidade de São Paulo.

hip-hop

Em 1973, surge o hip-hop nos Estados Unidos, mas desembarca no Brasil com um atraso de dez anos. Embora os quatro elementos (rap, grafite, DJ e breaking) já existissem, foi o filme Beat Street (1984) que mostrou ao mundo a junção deles no contexto de uma cultura urbana chamada hip-hop. Foi uma virada de chave, o “TCC” que validou aquilo que já fazíamos, mas não sabíamos o nome. A base do hip-hop vem do soul e do funk, do movimento black power, que aqui em São Paulo já era muito representativo. Ainda em 1972, eu formei o primeiro grupo de dança black do Nordeste, Os Invertebrados, antes mesmo do nascimento do hip-hop. Quando o filme estourou, eu já dançava na rua.

O hip-hop não poderia ter surgido no Brasil em outro local que não fosse São Paulo, a cidade mais brasileira de todo o país

Foto: Carol Balza

breaking

No Brasil, o primeiro elemento a chegar foi a dança. Os Gêmeos eram b-boys antes de começarem a pintar. O Marcelinho Backspin tinha que buscá-los em casa porque eram pequenininhos e a mãe não deixava que fossem sozinhos para a [estação de metrô] São Bento. Fabiano Minu, também grafiteiro, começou na dança, ele tinha a própria crew, só depois foi para o grafite. Marcelinho fez a São Bento crescer, divulgou muito o breaking porque ele, sim, sempre foi b-boy, andava com Thaíde e DJ Hum. Mano Brown e Thaíde também começaram na dança.

educador

Não quero as coisas para mim, eu quero para todos. Quando comecei na rua, no hip-hop, não existia trabalho social, eram só os assistencialistas. Muitos moleques que tirei da rua hoje são doutores, engenheiros, advogados. Outros são campeões mundiais de dança. Conheço hoje o mundo inteiro, um cara que nem sequer saía de São Paulo, pensava que nunca ia conhecer o estrangeiro e que através do hip-hop andou nos melhores aviões, se hospedou nos melhores hotéis e ainda ganhou alguns euros. Quem diria?

preconceito

O primeiro shopping que eu conheci em São Paulo foi o Iguatemi. Estava caminhando com o meu cabelão black e fui preso porque uma mulher falou que tinha um cara estranho andando no shopping. Se fosse hoje eu poderia processar, mas naquele tempo não tinha isso. Não foi nada fácil, passei por momentos difíceis. Tinha um delegado no Bixiga que toda vez que eu aparecia, me dizia: ‘Você de novo?’”. Eu respondia que não gostava de ir, mas os ‘caras’ me levavam. Muita gente ficou pelo caminho, gente que tinha que trabalhar, que teve filho, que precisava ter outro sustento. Nós perdemos muita gente. Tantos morreram pelo caminho, eu poderia ter morrido também.

essepê

O hip-hop não poderia ter surgido no Brasil em outro local que não fosse São Paulo, a cidade mais brasileira de todo o país. Em lugar nenhum você vai encontrar mais representantes de cada estado do que aqui. No início, eu morava no Bixiga, o primeiro bairro noturno de São Paulo. Ali eu encontrava Almir Guineto [1946–2017], Djavan e outros nomes importantes da música. Tivemos também a sorte de ter caras que viajavam e traziam para cá a cultura do gueto. Ricardo Guedes era uma dessas pessoas. E o hip-hop em São Paulo já fervia antes do [filme] Beat Street, a gente só não sabia que essa cultura tinha um nome.  

Nelson Triunfo no show de James Brown durante o baile Chic Show, dia 11 de novembro de 1978,
no ginásio do clube Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo (SP). Foto: Penna Prearo

A EDIÇÃO DE DEZEMBRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de DEZEMBRO/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.