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Utopia do cinema

Às vésperas de lançar sua nova produção, Garotas do ABC, o diretor Carlos Reichenbach fala de como é fazer filmes hoje no Brasil e do que pensa da crítica

O cineasta Carlos Reichenbach começou a carreira no chamado Cinema da Boca do Lixo, nome dado à “estética submundo” criada por um grupo de diretores paulistas na década de 60. Catorze longas-metragens depois, é considerado hoje um dos maiores diretores brasileiros, criador de uma obra que levou milhões de espectadores ao cinema. Às vésperas do lançamento de Garotas do ABC, primeiro filme do projeto Clube Democrático ABC, um “projetão” - segundo o próprio autor - de seis longas sobre a vida das mulheres que moram e trabalham na região mais industrializada do País, ele deu este depoimento exclusivo à Revista E. A seguir, alguns momentos marcantes.

"Em 1964, por influência do Cinema Novo, eu enxergava os filmes como uma forma de melhorar o mundo e de ajudar a mudar a história. Na hora de escolher uma faculdade, prestei vestibular na São Francisco e também no primeiro curso de cinema de nível universitário que existiu em São Paulo, a Escola Superior de Cinema São Luiz. O cinema, que me fascinava desde os 6 anos, entrou de vez na minha vida aos 14 como justificativa às minhas andanças diárias de bicicleta por São Paulo, experiência andarilha de adolescência. Para conhecer o Cine Sapopemba, no bairro de mesmo nome, ou o Cine Pérola, na Vila Maria, eu e um amigo de escola saíamos do Jabaquara, onde morávamos, e atravessávamos a cidade inteira, estraçalhando dois pneus de bicicleta por mês. Tornei-me um cinéfilo quando comecei a freqüentar diariamente as sessões da Sociedade Amigos da Cinemateca, na sala de projeção do museu no prédio dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril. Fui criando um círculo de amigos, também fanáticos por cinema, e comecei a realizar meu primeiro curta-metragem em 16 milímetros, Duas Cigarras, nunca concluído. Com produção de Luiz Sérgio Person, realizei meu primeiro curta em 35 milímetros, Esta Rua Tão Augusta, ainda como exercício do curso da São Luiz. Foi Person quem me levou pela primeira vez à boca-do-lixo, onde ficavam sediadas as distribuidoras de filmes (pela proximidade com a Estação Rodoviária e as estações da Luz e Sorocabana). Na boca-do-lixo comecei a iluminar e fazer câmera em filmes de outros diretores, atividade que exerci até recentemente, tendo feito a fotografia e câmera de mais de 36 longas-metragens. Na virada da década de 70, eu troquei definitivamente a faculdade de cinema pela escola da vida."

Sou meu próprio empresário
"Quando penso no conteúdo do atual cinema brasileiro, percebo que está muito longe do que era produzido na minha época. Movimentos culturais deflagradores só acontecem quando o País - e o mundo - atravessa alguma crise violenta ou transformação essencial. Penso - mas isso é uma sensação muito particular, pessoal - que dos recentes movimentos antiglobalização poderão despontar ações culturais renovadoras. Movimento cultural pressupõe ruptura, subversão, renovação, vanguarda e utopia. Hoje só se fala (e se prega!) o fim das utopias. A palavra cultura foi travestida de “atitude”. Os suplementos de cultura dos jornais mais importantes do País abriram suas capas para os desfiles de moda. Dessa geração insossa não vai irromper nada! Mas há que se considerar também o contexto, que era muito diferente. No final da década de 60 era muito mais barato fazer cinema no Brasil. Por isso conseguíamos fazer tantos filmes impopulares e radicais. Para fazer filmes atualmente é preciso ser empresário, ter uma firma produtora com todos os impostos em dia. Ou você se torna o próprio produtor ou vai em busca de alguém que aceite assumir a condição de proxeneta de projeto alheio. Tem muita gente que se ofende quando digo isso, mas é assim que eu vejo as coisas. É muito fácil posar de artista e assumir a imagem do criador que não se envolve com o “lado podre” da arte: arrumar dinheiro. Ora, faça-me o favor! Desde 1967 eu sou meu próprio empresário. Já ganhei e perdi muito dinheiro com isso. Já empenhei meu apartamento. Perdi metade da herança que meu pai deixou sustentando uma empresa quase falida. Por outro lado, fui sustentado dois anos por um filme miúra [anticomercial], graças ao extinto Prêmio Adicional de Bilheteria. Sou co-produtor de 70% dos filmes que dirigi. Os que não co-produzi fui contratado para filmar. Quero dizer com isso que sempre rejeitei a idéia de posar de artista; isso me dá asco. Se me pedissem para dar um conselho a quem quer começar a fazer filmes, eu não hesitaria em dizer: “Comece abrindo uma empresa e aprenda a acordar às 7 da manhã para sustentá-la!”

“Gênio do cinema comercial”
"Jairo Ferreira inventou esse epíteto por causa dos sucessos dos filmes A Ilha dos Prazeres Proibidos, Sede de Amar e Império do Desejo, que juntos colocaram mais de 5 milhões de espectadores nos cinemas brasileiros. No caso de A Ilha e Império, o surpreendente é que ambos são filmes ultrapessoais, de teor político bem definido (ambos fazem a defesa quase militante do ideário libertário), de soluções narrativas anticonvencionais e realizados numa época de censura brava no País. Esses dois filmes, que trabalham com o chamado “repertório do filme comercial brasileiro” buscavam dialogar diretamente com os públicos de classes C e D, que eram os mais fiéis do cinema nacional, usando todas as “armas” do cinema popular, mas para subvertê-lo. Tanto A Ilha quanto Império subverteram o teor machista, moralista, reacionário - e, por que não?, racista - da pornochanchada convencional."o ar, nas trilhas, no mar, nos rios e nas florestas, comprometendo a sustentabilidade do planeta.”

Saga proletária
"Há muito tempo eu imaginava fazer um filme sobre mulheres proletárias de São Paulo e para isso elegi como protagonistas as operárias têxteis. No começo seriam dois filmes, Sonhos de Vida e Vida de Sonhos, com as mesmas atrizes e os mesmos cenários. Um filme seria sobre o trabalho e o outro, sobre o tempo livre. Esse projeto nasceu de uma premissa libertária de que o verdadeiro espaço de liberdade do ser humano é o tempo livre, não o do trabalho. Com o passar do tempo me interessei em desenvolver outras histórias em cima de cada uma das personagens centrais dos dois filmes e então isso virou um “projetão” de seis filmes longa-metragem, que chamei de ABC Clube Democrático. Quando as leis de incentivo começaram a limitar os tetos de captação, eu e minha sócia resolvemos centrar esforços no filme-piloto da série que, na época, se chamava Aurélia Schwarzenega. Depois de alguns ajustes no roteiro, passei a chamá-lo de Garotas do ABC. Atualmente, estamos em processo de captação de Lucineide Falsa Loura, o segundo filme. Temos parceria com a Petrobrás e, se conseguirmos captar todo o dinheiro até o fim do ano, espero filmar no primeiro semestre de 2005. Em suma, aos poucos, eu pretendo realizar essa atrevida saga proletária, que, sem nenhum favor, é uma das razões que me fizeram sobreviver a três infartos do miocárdio."

Crítica
"Eu sempre digo que tive a sorte de não começar a carreira fazendo filmes geniais e de levar porrada da crítica desde os primeiros filmes; por isso, todo elogio posterior e atual é extremamente bem-vindo e acho que já estou no lucro. Acho que os críticos que respeito sempre me trataram com dignidade. Eu também sou metido a crítico e sou o meu avaliador mais intransigente; sei muito bem onde “errei a mão” e onde “fui além dos outros”. Sem presunção, minha obra cinematográfica foi descoberta aos poucos, abraçada pela crítica gaúcha e referendada na Holanda, por Hubert Bals, que “descobriu” Fassbinder, Tarkovski, Raoul Ruiz etc. Serge Daney, Louis Skorecki, Jonathan Rosenbaum e Roberto Silvestre, alguns dos melhores críticos de cinema do mundo, gostam dos meus filmes. A crítica em geral é uma apreciação subjetiva; e é bom que seja assim, porque nos ajuda a enxergar nossos filmes de maneira menos pessoal e afetiva. No entanto, eu acredito que certos filmes (ou obras artísticas) nascem inabaláveis, impossíveis de ser demolidos. São as obras tortas, atrevidas, revolucionárias e deflagradoras as primeiras a ser hostilizadas pelos medíocres e sem talento; mas, sem elas, a arte não se transformaria."