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E la nave va

Erivelto Busto Garcia

Como um inusitado objeto lunar, branco, roxo e azul espelhado, ele paira sobre o casario baixo da rua, suas acanhadas lojas de ferragens, seus botequins e pequenas marcenarias do entorno. Essa estranha e bela arquitetura, já de si avessa à paisagem quase bucólica da região, revela-se ainda mais impactante com a imponência de seu atrium, tomando de surpresa os desavisados transeuntes da rua Paes Leme, no bairro de Pinheiros, nas proximidades do largo da Batata. Visto assim de fora, o novo prédio do Sesc já vence seu primeiro desafio enquanto arquitetura: tornar-se um marco na paisagem, uma nova referência na geografia urbana. Aliás, como ocorre, na outra extremidade, com seu vizinho mais antigo e colorido, o Instituto Tomie Ohtake, e, a meio caminho, com a beleza clean e transparente do British Council, ambos também de vocação cultural. Mas a fálica cobra em cerâmica, de Brennand, no jardim de entrada, já sinaliza que ali começam, também, os caminhos labirínticos e perigosos de seu interior. Ali a arquitetura é outra, é uma arquitetura das entranhas. As linhas exteriores, limpas e sem relevo, cedem lugar a escadarias sem rumo, corredores sem fim, planos sobrepostos em níveis diferentes que se estendem cinco subsolos para baixo, até a rocha imprevista onde se apóiam suas gigantescas colunas e, em sentido inverso, sete pisos para o alto, até à cúpula do ginásio que, em noites de verão, abre-se para a Via Láctea e para os odores também imprevisíveis do rio Pinheiros. É nesse espaço entre as catacumbas, úmidas do lençol freático, e o céu da metrópole, que vai funcionar a “máquina de lazer e cultura”, como diria Le Corbusier. Não é uma máquina qualquer, no entanto, essa que faz sonhar e dá ao homem, por vezes, a sensação de tocar o infinito e o inefável. Como se sabe, o Estado moderno e a sociedade industrial construíram outras máquinas igualmente admiráveis, depois de Fulton e sua máquina a vapor. A própria fábrica, como máquina de produzir utilidades; o hospital, como máquina de produzir saúde e combater a morte; a escola pública e universal, como máquina de produzir saber para todos. A máquina de produzir sonhos e, ao menos, a ilusão de felicidade, é muito mais recente. Ela está no limite, por assim dizer, entre o reino da necessidade e o reino da liberdade, como queria o velho Marx, hoje desaparecido. Ninguém precisa de um centro cultural e desportivo para viver; em contrapartida, não se pode passar sem o hospital, sem a escola, sem os produtos do dia a dia. No entanto, de que vale tudo isso se o espírito estiver vazio? A Igreja, essa formidável máquina de produzir eternidades, foi a primeira a dar resposta a essa aspiração humana fundamental, construindo as catedrais. É provável que o prédio do Sesc Pinheiros em nada lembre a arquitetura religiosa, mas remete, de certa forma, ao seu sentido. Ali, todos os dias, mais de duas centenas de funcionários estarão produzindo sonhos, sensações de bem estar físico e ilusões de felicidade. Para isso vão dispor de espaços quase litúrgicos onde se poderá representar, cantar, tocar, dançar, bem como de locais para sentar, para ouvir, sentir, chorar, rir, imaginar, torcer; áreas para exposições de obras de arte, onde se poderá expor, expor-se e ver, mesmo sem entender; espaços para livros e internet para que se possa viajar pelo mundo e pela imaginação; oficinas de artes para desenvolver habilidades, revelar-se artista ou enterrar ilusões; piscinas aquecidas para nadar, brincar e hibernar, sob a luz do dia ou das estrelas, filtradas em transparentes tetos de vidro; maravilhas mecânicas capazes de produzir quantidades programadas de suor e prazeres agônicos, bem como quadras para correr, pular e gritar; cafés e comedorias para quando a fome apertar, e dentistas sempre a postos para quando um insuspeito dente começar a latejar, assim como faziam as valsas latejantes do poeta Sérgio Milliet.
Essa não é, como se vê, uma máquina como outras. Ela vai produzir o inefável, como disse. Às vezes, o perigoso. Como qualquer máquina, tem a aparente regularidade dos ritmos, a eficácia dos movimentos, a precisão minuciosa. Mas tem tudo para não dar certo. E puor, si muove, como diria Galileu. O que a fará funcionar, e funcionar bem, é quase um mistério. Muitos pensam que seu combustível é o dinheiro, o que apenas em parte é verdade. Outros, que é a técnica, o conhecimento, o que também em parte é verdade. Mas o que vai movê-la, de fato, é a paixão. Fábrica de sonhos que é, haverá de alimentar-se dos próprios sonhos para tornar-se realidade. E assim vai. La nave va.

Erivelto Busto Garcia é Coordenador da Assessoria Técnica e de Planejamento