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Bicicleta, solução para trânsito caótico

Metrópoles brasileiras começam a descobrir as vantagens das ciclovias

ALBERTO MAWAKDIYE


Plataforma de embarque no metrô de São Paulo
Foto: Arquivo PB

País que é o terceiro maior produtor mundial de bicicletas, atrás apenas da China e da Índia – deve fechar o ano com uma produção de 5,6 milhões de unidades, 4% a mais do que em 2007 –, o Brasil começa a cogitar com mais seriedade de transformar as bikes numa efetiva modalidade de transporte.

Hoje, praticamente todas as capitais brasileiras, assim como muitas cidades médias, contam com projetos de ciclovias, alguns realmente ambiciosos, como o de São Paulo – onde a prefeitura pretende implantar 400 quilômetros de pistas exclusivas para bicicletas até a Copa do Mundo de 2014 e outros 600 quilômetros até 2018 – e o do Rio de Janeiro, que também quer, em médio prazo, dotar a cidade de uma malha de porte equivalente à paulistana.

De seu lado, no último mês de maio, o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, apresentou o Plano Diretor Cicloviário, que prevê a implantação de ciclovias ou ciclofaixas em 495 quilômetros de ruas e avenidas da capital gaúcha. "Vamos inaugurar pelo menos 18 quilômetros até o final do ano", garante o prefeito.

Já em Belo Horizonte, duas empresas foram habilitadas pela prefeitura para elaborar os projetos executivos de seis ciclovias, que dobrarão para 40 quilômetros a metragem dessas vias exclusivas na cidade. Vitória também já desenvolveu o seu, assim como Recife, Curitiba e a própria capital do país, Brasília.

Embora conte com mais de 60 milhões de bicicletas em circulação – e com cerca de 53% dos ciclistas corajosamente utilizando as bikes para ir e voltar do trabalho ou da escola –, o Brasil é ainda quase desprovido de vias exclusivas para essa modalidade. O resultado é que, numa caótica metrópole como São Paulo, por exemplo, dos mais de 20 atropelamentos ocorridos todos os dias, pelo menos um quinto deles incluem ciclistas.

Hoje, há apenas pouco mais de 2,5 mil quilômetros de ciclovias, distribuídos por 279 cidades. Mas é um cenário melhor do que o de alguns anos atrás. Em 2002, as ciclovias somavam escassos 600 quilômetros, quatro vezes menos do que a metragem atual.

O Rio de Janeiro, com 160 quilômetros, e Curitiba, com 122 quilômetros, são as cidades mais bem servidas por esses equipamentos. Mesmo assim, boa parte das ciclovias está dentro de parques ou na orla marítima (no caso do Rio de Janeiro) e se prestam antes ao lazer que ao transporte. Já São Paulo, a maior cidade brasileira, possui hoje apenas 23,5 quilômetros de ciclovias, dos quais míseros 4,5 quilômetros fora da área de parques.

"As prefeituras finalmente acordaram para o fato de que a bicicleta pode ser, sim, uma opção eficaz de transporte", elogia o engenheiro paulistano Rogério Belda, membro do conselho diretor da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). "Se as ciclovias forem realmente bem planejadas – isto é, se forem construídas dentro do conceito de ciclorredes, com trajetos curtos e inteligentes, integradas a terminais de ônibus e trens, e dotadas de bicicletários –, não há dúvida de que poderão contribuir, e muito, para tirar uma parte dos carros das ruas."

Atraso

Diga-se que o Brasil demorou a perceber o potencial oferecido pela bicicleta e pelas ciclovias como alternativa de transporte. Em muitas cidades da Europa, Estados Unidos e Japão, vias exclusivas para bikes estão implantadas há décadas para essa finalidade. Com área equivalente à do estado de Pernambuco, a Holanda, por exemplo, tem impressionantes 34 mil quilômetros de ciclovias, e quase 85% dos holandeses usam a bicicleta diariamente. Em Copenhague, na Dinamarca, 36% da população vai ao trabalho pedalando.

A tendência vem se acentuando de alguns anos para cá. Em Paris – uma das cidades mais bem servidas de metrô do mundo – há pouco tempo foram implantados, mesmo assim, 300 quilômetros de ciclovias. Nova York fez cerca de 180 quilômetros de ciclovias nos últimos dois anos e planeja uma expansão de mais 300 quilômetros até o final de 2009. Londres quer aumentar em 400% o número de ciclistas até 2025. Mesmo a sul-americana Bogotá está, nesse quesito, à frente de qualquer metrópole brasileira. A cidade implantou 340 quilômetros de ciclovias nos últimos sete anos.

Em todos esses lugares, os projetos vêm sendo desenvolvidos não só para efeito de desafogamento do tráfego – calcula-se que numa via por onde passem 450 carros por hora (em São Paulo, com a ridícula média de 1,5 pessoa por veículo) caibam 4,5 mil pessoas pedalando – mas também para finalidades ambientais. Nada menos do que 14% das emissões de dióxido de carbono no planeta vêm do setor de transportes, e a bicicleta é um veículo totalmente limpo.

"De fato, o que queremos, com nosso projeto, é também ajudar a reduzir os níveis de poluição na cidade", afirma Laura Ceneviva, coordenadora do Grupo Executivo da Prefeitura de São Paulo para Melhoramentos Cicloviários, ligado à Secretaria do Verde e Meio Ambiente. "As ciclovias farão bem tanto para o trânsito como para a saúde dos paulistanos." Essa preocupação com o meio ambiente (sem dúvida reforçada pela atenção hoje quase universal à necessidade de exercícios físicos e à saúde do corpo) permeia praticamente todos os projetos atuais de ciclovias, seja no Brasil, seja no exterior.

O papel da "consciência verde" na nova onda mundial de disseminação das ciclovias não deve, aliás, ser subestimado. De fato, mesmo no Brasil, são vários os grupos de pressão pró-bicicletas, e muitas também são as celebridades que não hesitam em aparecer para o público em cima de uma bike no trajeto para o trabalho – como o deputado federal carioca Fernando Gabeira (PV), domiciliado em Brasília.

O próprio secretário do Verde e Meio Ambiente de São Paulo, Eduardo Jorge, vai trabalhar quase sempre montado numa "magrela". Já a vereadora Soninha Francine (PPS) chegou de bicicleta à convenção que sacramentaria seu nome como candidata à prefeitura de São Paulo, na Câmara dos Vereadores, no último mês de junho.

Alguns grupos de pressão são bastante radicais – como os que participam do World Naked Bike Ride (passeio mundial de ciclistas nus, em tradução livre), evento que ocorre faz alguns anos em várias cidades do mundo e cuja versão brasileira foi promovida pela primeira vez na Avenida Paulista, em São Paulo, no último dia 14 de junho. Cerca de 20 dos pouco mais de cem participantes levaram o espírito do adâmico passeio ao pé da letra e percorreram um trecho sem roupa alguma, para protestar contra o desrespeito dos motoristas às bicicletas (eles pedalam nus para se tornar visíveis). Um dos manifestantes acabou preso pela polícia militar.

Outros grupos menos barulhentos preferem apenas protestar contra o que consideram uma lamentável tendência a "confinar" as bikes unicamente às ciclovias – exigem que os ciclistas possam também trafegar livremente pelo trânsito, respeitados pelos motoristas enquanto cidadãos, no que, afinal de contas, não deixam de estar certos.

"É claro que as ciclovias são muito mais seguras, mas elas têm uma grande limitação, que é a de não permitir ao ciclista construir seu itinerário", dispara Bill Presada, presidente da Associação Bike Brasil e coordenador da Comissão de Bicicletas da ANTP, e que vai de bicicleta para todos os lugares, apesar da lendária selvageria do trânsito de São Paulo, onde ele reside e trabalha. "Por mais ciclovias de que uma cidade disponha, em algum momento o ciclista terá de acessar a rua. As prefeituras deviam investir também para conscientizar os motoristas de que eles têm de respeitar o ciclista."

Planejamento

No entanto, apesar da inegável importância dos ecologistas e da "geração saúde" na disseminação mundial das ciclovias e das bikes também como meio de transporte, são os planejadores de trânsito que vêm desenvolvendo e viabilizando os projetos – o que demonstra que a hora dessa modalidade parece mesmo ter chegado.

No Brasil, por exemplo, a participação dos técnicos de trânsito tem dado aos projetos de ciclovias uma consistência conceitual que, nessa área, jamais pôde ser muito cultivada – principalmente por causa de obstáculos de natureza política e administrativa.

Na maioria das metrópoles brasileiras, a prioridade foi sempre o transporte individual e a conseqüente construção de grandes avenidas – São Paulo conta hoje, por exemplo, com escassos 60 quilômetros de linhas de metrô, quando já precisaria de pelo menos 400. Nos horários de pico, circulam pela cidade entre 3,5 milhões e 4 milhões de veículos, e congestionamentos superiores a 150 quilômetros já se tornaram comuns.

Embora obviamente voltadas para abrigar uma modalidade de transporte também individual, praticamente todas as ciclovias brasileiras em gestação estão sendo planejadas para alimentar o sistema de transporte coletivo ou para deslocamentos substitutivos de curta e média distância, de 5 a 15 quilômetros, de modo a retirar do trânsito pelo menos uma parte dos veículos particulares.

Algumas prefeituras que têm projetos desse teor vêm recebendo, inclusive, consultoria de técnicos da área de mobilidade urbana do Ministério das Cidades, quando não o apoio financeiro – o governo federal está preocupado com o processo de deseconomia que os crescentes congestionamentos estão provocando nas metrópoles.

Em Porto Alegre, por exemplo, os projetos de ciclovias estão sendo desenvolvidos a partir de um preciso diagnóstico de origem e destino dos motoristas e das necessidades e potencialidades do uso da bicicleta em deslocamentos curtos. Em Belo Horizonte, uma das idéias é ligar por ciclovia a região comercial da Savassi ao centro histórico, um caminho hoje tomado pelos congestionamentos.

Já na Grande São Paulo, um dos trajetos que começaram a ser executados prevê a implantação de uma ciclovia de 12 quilômetros às margens da Radial Leste, entre as estações do metrô de Itaquera e Tatuapé, na zona leste. Outro, que em breve começará a ser tirado do papel, está previsto para a região da Cidade Universitária, na zona oeste. Com 15 quilômetros de extensão, a ciclovia tem como objetivo facilitar o acesso de estudantes e funcionários ao campus da Universidade de São Paulo (USP) e também auxiliar os moradores da região a chegar a uma estação de trem da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM).

A implantação da necessária infra-estrutura para os ciclistas também virou prioridade. Tanto em Belo Horizonte como no Recife, as prefeituras estão montando bicicletários nas estações de metrô, de modo a estimular os munícipes a chegar de bicicleta ao sistema. No Rio de Janeiro e em São Paulo, o metrô e a ferrovia já abriram algum espaço em seus vagões para as bikes.

Na CPTM paulista – cujas linhas atendem São Paulo e vários municípios da região metropolitana –, 12 estações já são dotadas de bicicletários, e outras 13 devem receber o equipamento até o final do ano. No total, serão disponibilizadas 3.850 vagas por dia.

"Era bastante comum usuários de cidades como Mauá e Itapevi chegarem às nossas estações de bicicleta, e as deixarem amarradas em postes ou em árvores. Estamos apenas facilitando a vida desses usuários", diz José Alcalay, assessor de planejamento empresarial da companhia, que está fazendo gestões nas prefeituras da Grande São Paulo para que o maior número possível de ciclovias seja implantado entre os bairros e as estações.

Para tornar o uso de bikes cada vez mais público e inserido no sistema coletivo de transporte, algumas cidades brasileiras, como São Paulo e Curitiba, também começam a aderir à prática do aluguel de bicicletas, semelhante ao de cidades européias como Paris, Barcelona, Berlim e Estocolmo, entre muitas outras. O sistema parisiense, o Vélib’ (ou bicicleta livre), consiste em 10 mil bicicletas de ar retrô espalhadas por diversos pontos da cidade, 24 horas por dia.

Em São Paulo, a seguradora Porto Seguro instalou bicicletários na rede de estacionamentos Estapar, dentro do programa chamado Use Bike. O segurado pode pegar uma bicicleta emprestada ou estacionar a sua, sem pagar nada por isso. Outra parceira da Porto Seguro no negócio é a fabricante de bikes Sundown, que forneceu diversas bicicletas Wave para o uso dos segurados – naturalmente, as indústrias vêem com muito bons olhos a disseminação das bicicletas como meio de transporte. "As bikes de aluguel, ou bike-sharing, são uma tendência mundial na busca de maior mobilidade urbana. O Brasil não poderia ficar fora disso", diz Marcelo Sá, coordenador de marketing da companhia. 


Bikes respondem por 7,4% dos deslocamentos

Apesar da falta de ciclovias, o uso da bicicleta como meio de transporte nem de longe é insignificante no Brasil. De acordo com levantamento feito em 2005 pela ANTP, 7,4% dos deslocamentos em área urbana eram então feitos de bicicleta, num total de 15 milhões de viagens diárias no país.

E, ao contrário do que se pensa, essas viagens já não estão mais concentradas nas pequenas e médias cidades do interior, mas presentes também em metrópoles de trânsito pesado como São Paulo. Ali, os principais usuários da bicicleta como meio de locomoção pertencem às classes populares, que a utilizam geralmente por falta de dinheiro para pegar as conduções de que necessitam, submetendo-se diariamente ao risco de atropelamentos.

Na Grande São Paulo, são cerca de 400 mil pessoas por dia, segundo estimativa da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo).

A pressão da classe média, por meio de movimentos ambientalistas, para tornar a bicicleta uma alternativa viável de transporte teve, pelo menos, o mérito de lançar alguma luz sobre a situação de risco desses ciclistas – é bem possível que, sem o interesse e a intervenção desse estrato social, a questão continuasse como sempre esteve, imersa na invisibilidade.

Algo começa a ser feito até mesmo em Brasília. A Câmara dos Deputados analisa um projeto da deputada Solange Amaral (DEM), hoje também candidata à prefeitura do Rio de Janeiro, que estabelece punições mais rigorosas para crimes cometidos contra ciclistas. "Atropelá-los pode se tornar, inclusive, crime de lesão corporal dolosa", explica a deputada.

O projeto de Solange, em contrapartida, proíbe a circulação de bicicletas no sentido contrário ao do fluxo dos demais veículos – uma estranhíssima "medida de segurança" adotada por muitos ciclistas brasileiros, sob a alegação de que, assim, poderão desviar-se de um possível atropelador. Uma bobagem infinita, segundo os especialistas.


Topografia e falta de recursos são obstáculos

Embora de construção simples – trata-se apenas de uma via segregada fisicamente ou por "faixas de trânsito" – uma ciclovia, para trazer bons resultados, necessita de certos condicionantes, além da disponibilidade de espaço nas ruas ou calçadas.

É desejável, por razões óbvias, que seja implantada em uma área plana. São Paulo, por exemplo, em nada lembra, topograficamente, as planíssimas cidades holandesas. Foi construída sobre vales e morros, e as ciclovias deverão ser concentradas em avenidas de fundo de vale. Muitos locais terão de ser, por isso, provavelmente deixados de fora, como os íngremes bairros de Sumaré e Pinheiros, redutos da classe média localizados na zona oeste.

Outra cidade de relevo bastante irregular é Belo Horizonte. Pesquisa do Pedala BH, órgão ligado à prefeitura, mostrou que apenas 35% da cidade tem declividade entre 0% e 10%, tida como apropriada para os ciclistas. A declividade considerada ideal – entre 0% e 5% – só está presente em 15% da cidade. A prefeitura terá dificuldade de expandir os traçados dentro desse cenário de sobe-e-desce.

Dificuldades logísticas à parte, o espectro da falta de recursos também já espreita as futuras ciclovias brasileiras. A prefeitura de Porto Alegre calculou que cada quilômetro custará cerca de R$ 150 mil, em mão-de-obra, gastos com concreto ou asfalto e equipamentos de sinalização. E há ainda poucos recursos garantidos.

Já o programa cicloviário de São Paulo pode esbarrar não exatamente na escassez de dinheiro, mas na burocracia. Estão nas mãos da Secretaria do Verde e Meio Ambiente R$ 11,8 milhões para investimentos em obras este ano. Mas a secretaria não pode usá-los porque não tem autonomia para licitar e construir ciclovias fora de parques.

Nas ciclovias que estão sendo construídas na cidade, vem sendo utilizado dinheiro de outros órgãos da prefeitura e da parceira Companhia do Metrô, que é subordinada ao governo estadual. A prefeitura está procurando meios de resolver o impasse. Por essa os ecologistas não esperavam.

 

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