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Com a marca da rebeldia

por Herbert Carvalho

Duas guerras mundiais e três revoluções – a russa, a chinesa e a cubana – deixaram no século 20 as marcas de profundos e sangrentos confrontos entre países e classes sociais. Foi um tempo de partido e de homens partidos, como definiu Carlos Drummond de Andrade. Apesar disso – ou por isso mesmo – foi também um tempo em que era impossível ser revolucionário sem uma certa dose de romantismo, como afirmou o mais famoso deles, Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin. A revolução estava presente nas barricadas e nas diferentes formas de expressão artística. “Sou mais afiado que uma navalha, mais incômodo que um ouriço, mais estridente que uma bomba”, advertia o poeta russo Vladimir Maiakóvski.

Nascidos há cem anos, dois brasileiros percorreram essas veredas da militância política e estética, consagrando suas vidas ao projeto de humanismo revolucionário, plasmado por Che Guevara na fórmula da ternura que tempera a dureza do combate.

O baiano Carlos Marighella (1911-1969), assassinado pela ditadura militar em uma emboscada comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, passou na cadeia ou na clandestinidade a maior parte dos seus 57 anos. De 1932, quando ainda estudante de engenharia aderiu ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sofreu sua primeira prisão, até tornar-se o guerrilheiro mais célebre e procurado do país durante os anos de chumbo, desfrutou de curto intervalo com plena liberdade, entre 1945 e 1947, antes de a Guerra Fria chegar ao Brasil e alijar os simpatizantes da então União Soviética do jogo político. Reconhecido pela coragem com que enfrentou os torturadores do Estado Novo, pela atuação destacada como deputado na Constituinte de 1946 e pela ousadia de lançar-se à frente de um punhado de jovens em luta desigual contra um adversário muito mais armado e assessorado pela CIA (a central de inteligência dos EUA), deixou também uma obra poética (reunida no livro Rondó da Liberdade, Editora Brasiliense, 1994) com versos “de ternura e ira, simples, claros, brasileiros”, de acordo com a avaliação de Jorge Amado.

Já o carioca Mário Lago (1911-2002), advogado por formação e artista de múltiplos talentos – poeta, autor teatral, compositor de música popular brasileira, radialista e ator de cinema, teatro e televisão –, publicou na imprensa seu primeiro poema aos 15 anos e nunca mais saiu do gosto do público: da revista teatral Flores à Cunha, escrita por ele em 1933, até a derradeira aparição em O Clone, da Rede Globo, aos 90 anos, em 2001, foram mais de 30 filmes (como Terra em Transe, de Glauber Rocha), 53 telenovelas e minisséries e uma centena de canções, dentre as quais o samba Ai, que Saudade da Amélia e a marchinha de carnaval Aurora são sucessos cantados e gravados até hoje. Porém, mesmo a maioria de seus fãs ignora a trajetória do militante preso sete vezes entre 1932 e 1969, que mantinha sempre ao alcance uma maleta com escova de dentes e muda de roupa, como ele mesmo conta no livro Reminiscências do Sol Quadrado (Cosac & Naify, 2001). A seguir, Problemas Brasileiros resgata essas facetas menos conhecidas de duas figuras emblemáticas da política e da cultura brasileiras no século passado.

Prova em verso

“Ei, Brasil – africano! Minha avó era nega hauçá, ela veio foi da África, num navio negreiro. Meu pai veio foi da Itália, operário imigrante. O Brasil é mestiço, mistura de índio, de negro, de branco.” Com esses versos do poema Canto para Atabaque, o primogênito de numerosa prole, fruto da união entre Augusto Marighella e Maria Rita – nascido na Baixa do Sapateiro, em Salvador (BA) –, revela as próprias origens e o DNA da rebeldia futura. Do lado paterno, olhos claros e a herança combativa dos anarquistas do norte da Itália, resumida numa questão: por que os pobres trabalham toda a vida e nunca têm nada? Na vertente materna, a tradição dos negros islamizados trazidos da Nigéria e do Sudão, protagonistas de revoltas de escravos como a dos malês.

A vocação poética de Carlos Marighella se manifesta aos 18 anos, nos bancos escolares. Sorteado para responder ao ponto “Catóptrica, leis de reflexão e sua demonstração, espelhos, construções de imagens e equações catóptricas” da prova de física, realizada em 23 de agosto de 1929, começa assim: “Ginásio da Bahia aos 23/ De 29 deste oitavo mês./ Doutor, a sério falo, me permita/ Em versos rabiscar a prova escrita./ Espelho é a superfície que produz,/ Quando polida a reflexão da luz”. Ao final de 40 versos, a prova lhe rendeu nota dez, foi por ele utilizada como propaganda eleitoral na vitoriosa campanha de 1946 e ficou exposta até 1965, protegida por moldura envidraçada, no corredor do colégio, como exemplo para novas gerações de estudantes.

Três anos depois, já integrante da juventude comunista do PCB, Marighella participava de uma manifestação estudantil quando foi espancado e preso pelas forças repressivas do interventor Juracy Magalhães. Do cárcere, irreverente e cáustico como outrora fora o conterrâneo Gregório de Matos (apelidado de Boca do Inferno), ele desafia o algoz com uma paródia de Vozes d’África, de Castro Alves, intitulada Vozes da Mocidade Acadêmica: “Juracy! Onde estás que não respondes?/ Em que escuso recanto tu te escondes,/ quando zombam de ti?/ Há duas noites te mandei meu brado,/ que embalde desde então corre alarmado.../ Onde estás, Juracy?” A essa quadra inicial seguem-se 17 outras no mesmo tom, até o golpe final: “Basta, senhor tenente! De teu bucho/ Jorre através das tripas um repuxo/ De Judas e sandeus!/ Há duas noites... eu soluço um grito.../ Escuta-o conclamando do infinito/ À morte os crimes teus!”

Amplamente divulgados, esses versos transformam-se no passaporte de ingresso de Marighella à política baiana e garantem ao autor o ódio não apenas ideológico e de classe, mas também pessoal de Juracy Magalhães. Ridicularizado como numa peleja entre repentistas nordestinos, o prócer da União Democrática Nacional (UDN) se vingará articulando, nos bastidores, a cassação do PCB e do mandato de seus parlamentares.

Companheiro Pádua

Também influenciado pelo anarquismo italiano na pessoa de seu avô materno, Giuseppe Croccia, contraponto para o conservadorismo de seus pais, Mário Lago tem uma insólita e cruel introdução ao mundo da política: aos 12 anos assiste pela janela de sua casa, na Rua da Relação, no centro do Rio de Janeiro, ao espancamento do engenheiro Conrado Niemeyer, no prédio da Polícia Central, que ficava em frente. Estarrecido, viu em seguida estendido na calçada o corpo inerte daquele opositor do governo de Arthur Bernardes, que governou sob estado de sítio de 1922 a 1926.

Ao mesmo tempo em que estudava piano com a professora Lucília, primeira mulher do compositor Heitor Villa-Lobos, por insistência do pai, maestro Antônio Lago do teatro de revista, o adolescente Mário já liderava uma greve estudantil no Colégio Pedro II contra a obrigação recém-instituída de levar canecas de casa. Nessa instituição modelar de ensino teve a influência de outro anarquista, o professor de português José Oiticica, que volta e meia ia preso, enquanto seus alunos vibravam com as peripécias da Coluna Prestes, expressão maior da rebeldia militar tenentista.

Quando eclode a Revolução de 1930, o jovem que tenta ganhar a vida como repórter é designado para cobrir a libertação dos presos políticos. Ao ouvir o vibrante discurso do líder sindical comunista Roberto Morena, esquece a incumbência, perde o emprego, mas inicia-se na militância que o levará, seis décadas depois, em 1989, a fazer estes versos para a primeira campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva: “Por mais que matem os sonhos/ Os sonhos ninguém anula/ Eles caminham no vento/ Gritando o nome de Lula!”

Ainda em 1930, Mário Lago entra para a Faculdade de Direito e, ao mesmo tempo, para a Juventude Comunista do PCB, onde, por questões de segurança, assume o codinome de “companheiro Pádua”. Em janeiro de 1932, ao participar na porta de uma fábrica de comício comemorativo da semana dos Três Ls (Lênin, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht) enfrenta sua primeira prisão, de dois dias, encerrada por este vaticínio certeiro do delegado: “Comunista é feito puta e bicheiro, a gente solta e eles voltam”. Mário volta no mesmo ano, preso durante uma pichação. De sua primeira cadeia guardaria na lembrança um gesto de solidariedade, que se repete em outras: “Estava apavorado, numa saleta do Hospital Central do Exército. De repente um sargento parou na porta, olhou para o pátio, examinando-o com cuidado, e disse em tom conspirativo: ‘Se você tem algum papel que comprometa, rasgue e jogue na latrina. Eu fico tomando conta’. Foi como se, num instante, aquela sala se enchesse de gente me batendo no ombro em gesto amigo. E o medo sumiu por encanto”.

“Sessões espíritas”

O embate direto entre comunismo e fascismo começa na Guerra Civil Espanhola, em 1936. No Brasil, no dia 1º de maio desse ano, Carlos Marighella é preso no Rio de Janeiro, quando tentava reorganizar a direção do PCB, golpeada pela repressão desencadeada após a derrota do levante militar de novembro de 1935. É barbaramente torturado, dias a fio, nas “sessões espíritas” ordenadas pelo chefe de polícia Filinto Müller, que na mesma época conduziram à loucura o alemão Arthur Ewert, integrante da Internacional Comunista enviado ao país com o nome de Harry Berger. Dessa experiência Marighella aprende uma lição: “Ensinaram-me que é melhor mil vezes morrer lutando com os policiais do que lhes permitir que supliciem o preso imobilizado”.

Entre 1939 e 1945 permanece seis anos nos presídios de Fernando de Noronha (PE) e da Ilha Grande (RJ), onde compõe, entre outros, dois poemas em homenagem a Luís Carlos Prestes e um dedicado à União Soviética, intitulado Muralha, enaltecendo a resistência contra a invasão nazista. Os poemas políticos, porém, são minoria na obra de Marighella, que do ponto de vista formal varia do verso livre aos sonetos rimados e metrificados, esbanjando lirismo e sensualidade, como se depreende de alguns títulos: Balada do Amor, A Lenda da Flor, Seios, Ímã, A Pérola e O Perfume.

Na Constituinte de 1946, o jovem deputado de 35 anos não se bate apenas pelas bandeiras do PCB em defesa dos trabalhadores e da soberania nacional, mas também em prol do divórcio, da liberdade religiosa e do ensino laico, com posições avançadas e ainda atuais. Ao questionar em discurso o dogma do casamento indissolúvel, vinculando em perspectiva histórica a família à propriedade privada, afirma: “A Igreja Católica nega o divórcio precisamente porque sabe que o adultério é tão inevitável quanto a morte. Como única vingança ao seu alcance, as mulheres escravizadas pelo homem enfeitam as respeitáveis cabeças de seus maridos”. É também nessa época que se torna o responsável pela revista teórica Problemas, do PCB, e conhece a aeromoça Clara Charf, sua companheira até a morte.

Contrariando a imagem sisuda de dirigentes como Prestes, diante do qual o militante comum se perfilava ao dirigir-lhe a palavra, Marighella ria, dançava e cantava músicas de Jackson do Pandeiro no cordão carnavalesco carioca do Bola Preta. Esse homem alegre, porém, um dia chorou, compulsivamente, na reunião clandestina de 1956 do Comitê Central do PCB, quando viu a imagem de Josef Stálin, endeusada pelos comunistas do mundo todo, ser desconstruída pelo relatório de Nikita Kruschev. Mas não abandonou o partido, como muitos fizeram naquele momento. Até a opção pela luta armada, em 1967, continuaria a ser a única sombra a Prestes nas votações internas do PCB.

Grandes parcerias

Após três meses atuando como advogado, Mário Lago se rende às suas verdadeiras vocações, expressas no título da biografia que a historiadora Mônica Velloso lhe dedicou: Mário Lago: Boemia e Política (Editora FGV, 1997). Como boêmio, torna-se parceiro de Ataulfo Alves – com quem faz Atire a Primeira Pedra (além de Amélia) – e de Custódio Mesquita (coautor de Nada Além, canção imortalizada por Orlando Silva). Também divide com Noel Rosa o amor da bailarina Ceci (ver PB nº 400).

Para a campanha eleitoral do PCB, em 1946, Mário Lago parodia suas próprias músicas. Fracasso fica assim: “Tô fraco de trabalhar e não ter tostão,/ Tô fraco de ouvir promessa e tapeação,/ Tô fraco, tô fraco, tô fraco... mas vai melhorar./ Basta pra isso acabar,/ o povo se organizar,/ votar na chapa popular”. E Amélia, que ele sempre garantiu não ser a exaltação da submissão feminina, mas da solidariedade da mulher em relação ao companheiro, ganha estes versos: “Nunca vi fazer tanta promessa,/ como em véspera de eleição./ Até a banha que é escassa anda à beça,/ em troca de votos pra reação./ Mas hoje o povo não é mais Amélia,/ que achava bonito não ter o que comer./ É inútil a banha dos oportunistas,/ o voto do povo é dos comunistas!”

Em um comício no Largo da Carioca, em 1947, conhece Zeli Cordeiro, filha do dirigente comunista Henrique Cordeiro, esposa que lhe daria cinco filhos e sempre recebia a polícia com calma e ironia. Ia para a cozinha e voltava com uma bandeja: “Mário, meu bem, cafezinho pra você!”

Preso no ano seguinte, ao ser identificado, um carcereiro lhe pergunta: “O Mário Lago do samba?” Diante da resposta positiva, um castigo extra: ouvir mais de 40 sambas do tira metido a compositor, cada um pior que o outro. Durante o interrogatório, ao fazer um inventário de seus ganhos com direito autoral, é interrompido pelo irritado delegado: “Tudo isso fazendo samba?” “E com a consciência tranquila!” é a resposta que lhe custa um soco, na única vez em que apanhou na cadeia.

Dois tempos

A partir dos anos 1950 os destinos dos dois militantes se aproximam e se cruzam diretamente. Radialista desde meados da década anterior, Mário Lago é indicado por Marighella, em 1957, para viajar à União Soviética, onde participa de programas na Rádio Moscou.

Dois dias após o golpe militar de 1964, o então secretário-geral do Sindicato dos Radialistas e líder de três greves do setor tem a casa invadida por dez policiais armados de metralhadoras. Enquanto revistam gavetas, um deles sussurra ao ouvido de Mário: “Eu nem vou contar pra patroa que vim prender o senhor, senão vai ser briga pra muito tempo. Ela é fã de suas novelas, não perde uma”.

Durante os quase dois meses que Mário Lago passa na Ilha das Flores e no presídio Fernandes Viana, na Rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro, Marighella é baleado, no dia 9 de maio, em um cinema no bairro da Tijuca. No relato desse episódio, publicado na forma de livro no ano seguinte, sob o título Por Que Resisti à Prisão, ele adverte sobre “o grau de violência a que se elevará o preço de nossa libertação”. Em dezembro de 1968, após a decretação do AI-5, Marighella conclama os revolucionários à luta armada de modo peculiar: “Quem Samba Fica, Quem Não Samba Vai Embora”, é o título do documento que divulga.

Enterrado no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, em 1969, na presença apenas dos coveiros e de 15 agentes da repressão, seu corpo é levado dez anos depois para Salvador, onde em túmulo projetado por Oscar Niemeyer está gravado: “Não tive tempo para ter medo”.

Com Mário Lago, ao contrário, o tempo fez um acordo: “Nem ele me persegue, nem eu fujo dele”, dizia, ao completar 90 anos. O bastante para ver restaurada a democracia, ser anistiado e reintegrado à Rádio Nacional, onde encabeçara a lista dos demitidos por razões políticas em 1964. Não chegou a escrever a própria biografia, como pretendia, mas deixou, entre as histórias do período de trevas, mais duas. Preso após o AI-5, encontra na cadeia o líder anticomunista Carlos Lacerda, a quem pergunta se o coletivo da cela já estava organizado e ouve como resposta: “Você fica sendo o secretário. Já está tarimbado nisso!” Ao ser transferido, trava o seguinte diálogo com um sargento: “O senhor não muda, hein, seu Mário? Virou, mexeu, tá preso.” “Nem o senhor. Virou, mexeu, tá prendendo.”

O relato final é sobre a prisão de sua filha Graça, em 1969. Isolada numa cela da Marinha, ela escuta o refrão de uma canção de Chico Buarque: “Quem é você? Me responda que eu quero saber”. Ao ouvir pela segunda vez, compreende que companheiros de infortúnio tentam identificá-la. Quando, tomada pela emoção, ela começa a cantar os compassos iniciais de Ai, que Saudade da Amélia, espalha-se a informação: “É a filha do branco”. Que dali por diante não estaria mais sozinha.