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Ética empresarial e política

por Mário Ernesto Humberg

Químico formado pela Universidade de São Paulo, Mário Ernesto Humberg foi professor de química industrial e de marketing industrial e é consultor palestrante sobre mudanças empresariais, gestão de crises, comunicação e ética empresarial. É presidente da CL-A Comunicações e conselheiro da Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil (ADVB).

Foi o primeiro coordenador geral do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), de 2003 a 2005, quando criou e lançou o projeto Brasil 2022 – Do País Que Temos ao País Que Queremos. Foi presidente da Associação Brasileira de Empresas de Relações Públicas, presidente do Sindicato dos Químicos Industriais e Engenheiros Químicos do Estado de São Paulo e conselheiro da Fundação Padre Anchieta (Rádio e TV Cultura).

Jornalista profissional, foi diretor da Editora Abril e da “Gazeta Mercantil”. É autor ou coautor de livros e estudos sobre ética na política e nas empresas, comunicação empresarial e relações públicas.

Esta palestra de Mário Ernesto Humberg, com o tema “Ética na Política e nos Negócios”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 14 de junho de 2012.

Venho trabalhando com a área de conduta empresarial desde o final da década de 1970, com foco na própria conduta das empresas e em seu processo de comunicação. A preocupação com o tema vem evoluindo de forma rápida no Brasil, embora tenhamos dúvidas sobre a forma como as empresas procedem e não faltem escândalos na mídia.

As empresas começaram a definir seu papel na sociedade e o relacionamento com os stakeholders somente no final da década de 1970. Isso ocorreu quando o governo Ernesto Geisel iniciou a abertura lenta, gradual e segura e as empresas descobriram que, além do todo-poderoso governo e de seu ministro da Fazenda, precisavam se relacionar com outros grupos da sociedade.

Nessa época, nos Estados Unidos se começava a desenvolver a questão da ética empresarial, em consequência de alguns escândalos, entre os quais o da Lockheed Corporation, quando se descobriu que essa fornecedora de equipamentos militares, ao lado de outras empresas, subornava autoridades estrangeiras. Um dos acusados, então, era o príncipe consorte da Holanda. O resultado foi a criação de um código de ética nas empresas e, no governo, do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), que fixa penalidades a companhias que fornecerem propina ou suborno a membros da administração estatal de outros países.

O aparecimento dos códigos de ética é, portanto, recente. Antes deles até já existiam algumas normas, oriundas dos valores dos empresários donos das companhias. Essas determinações antigas têm aspectos muito curiosos. Quase todas derivavam de idiossincrasias dos proprietários, como a proibição do uso de barba, ou de calças compridas pelas mulheres.

Cultura da esperteza

Desde minha infância e juventude tive convivência com a área empresarial, por conta das atividades de meu pai. E ouvia histórias que me chamavam a atenção. Um dos amigos dele, um bem-sucedido executivo da área têxtil, contava que tinha começado com uma alfaiataria perto da estação do Brás, onde atendia clientes que vinham de trem do interior. Dizia que, para ganhar um pouco mais, na hora de entregar o terno deixava o colete cair atrás do balcão. O cliente, que morava longe, não voltava para reclamar, e assim ele ganhava um pouquinho mais em cada terno. E se vangloriava disso. Outro era um exportador que colocava um pouco de areia nos sacos de açúcar que vendia. E quando lhe perguntam se continua fazendo isso, agora que está rico, responde: “Continuo, senão vão pensar que deixei de ser esperto”.

A convivência com os empresários me revelou algumas coisas. Uma delas é que o empreendedor criava riqueza e precisava vencer dificuldades impostas por políticos e burocratas. Sem generalizar, eram obstáculos que surgiam constantemente para atrapalhar os planos. Outra é que os empresários eram incapazes de mostrar para a sociedade qual era o seu papel. Até hoje se vê nas pesquisas que a maior parte das pessoas considera que a função das empresas é ajudar o progresso do país e criar empregos. Ninguém considera importante obter resultados.

Trabalhei numa multinacional do setor químico e passei algum tempo em Berlim, quando a cidade era dividida. Foi uma experiência interessante, mas o mais importante foi verificar a diferença de comportamento das multinacionais em seu país de origem e no Brasil. Lá havia um programa muito amplo de relacionamento com a comunidade, com as autoridades, com a mídia etc., coisa que aqui não existia, era uma empresa fechada.

Mais tarde comecei a trabalhar com códigos de ética e de conduta nas empresas, mas encontrei muita dificuldade na implantação, porque elas não estavam preparadas para isso. Um dos programas que oferecíamos, trazido da Suíça, chamava-se Portas Abertas. Toda a comunidade era convidada a visitar a fábrica. Uma das empresas recebeu certa vez 10 mil pessoas num mesmo dia. Foi um trabalho educativo para a comunidade e também para as empresas. A ideia era fazer com que tivessem uma postura mais definida em relação a seus fornecedores, clientes, vizinhos, área política etc.

Percebemos também que a área ambiental não atraía a atenção nem a preocupação das empresas. No início dos anos 1980 o tema ainda não tinha chegado ao Brasil. Procuramos algumas entidades ambientalistas no exterior e acabei fazendo um contato interessante com o WWF, que trouxemos para o Brasil. Naquela época as empresas eram responsáveis por grande parte da poluição e hoje ela é praticamente apenas um problema do Estado.

No desenvolvimento de meu trabalho, fui acompanhando o que acontecia no exterior e vimos uma série de escândalos acontecendo na Europa. Lá não existia a ideia de códigos de conduta e de ética nas empresas, porque acreditavam que não era possível fazer negócios com países do Terceiro Mundo sem propina. Muitos ainda pensam assim. Os americanos fizeram muita pressão para que as empresas europeias adotassem seus códigos, pois as companhias dos Estados Unidos, por serem proibidas de dar propina, perdiam muitos negócios. Isso não significa que não dessem, mas havia muita dificuldade para agir assim, em função do Foreign Corrupt Practices Act. Finalmente, em 1997, os Estados Unidos acabaram convencendo os países da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico] a adotar uma legislação contra a corrupção. Até então, as leis de quase todos os países europeus permitiam deduzir como despesa as propinas pagas para conseguir negócios no exterior, ou seja, embora em seus países isso não fosse possível, no exterior era admitido e até dedutível do imposto de renda.

Responsabilização de dirigentes

Os escândalos continuaram, porém, a ocorrer e, em 2002, quando houve o da Enron Corporation e da Arthur Andersen – esta última na época a maior empresa de auditoria do mundo –, o parlamento americano criou um novo instrumento contra a corrupção, a Lei Sarbanes-Oxley, mais conhecida como Sarbox, que estabelece penalidades para os administradores das empresas. Essa lei levou as empresas a ter mais cuidado, porque seus dirigentes passavam a ser responsabilizados. Mas, como vimos na crise de 2008, não adiantou muito, porque as empresas envolvidas, inclusive as que quebraram, tinham todas seus códigos de ética e estavam de acordo com a Lei Sarbanes-Oxley. Isso não as impediu de emitir e vender títulos sem lastro. Na época considerou-se que houvera uma explosão irracional dos mercados, mas foi mais uma crise ética ou comportamental das empresas. Thomas Friedman, comentarista do “New York Times”, disse o seguinte: “Nossa crise financeira foi resultado de uma ampla crise nacional do ponto de vista ético, que envolveu desde os tomadores de empréstimos até as instituições de financiamento, as agências de classificação e nossos políticos”.

Conclui-se que o código de ética ou de conduta só funciona se efetivamente representar os valores da empresa, o que nem sempre acontece. E o código de ética só funciona quando começa no topo. O comportamento das empresas é como a água, corre de cima para baixo. Se não ocorrer no topo, não adianta exigir dos empregados a adoção de tais códigos.

Quando começamos a implantar códigos de ética e de conduta em empresas, verificamos que havia dois problemas sérios no Brasil. O primeiro dizia respeito aos empregados e o segundo à área política. Em relação aos empregados, isso se devia à tradição brasileira de mandonismo e paternalismo. Saímos da escravidão há pouco mais de cem anos e não só as empresas como as próprias pessoas ainda mantêm uma posição de diferenciação em relação aos empregados. Sempre houve empregados moralmente assediados, embora protegidos, no sentido da busca da fidelidade, pelo paternalismo. Hoje a Consolidação das Leis do Trabalho [CLT] é um estorvo real, porque tem uma porção de coisas já superadas pela tecnologia e pela evolução do mundo. Na época foi importante, embora não tivesse determinado o comportamento de todos de acordo com a legislação. A tradição brasileira, do tempo da escravidão, complica um pouco as relações de trabalho. Embora a maior parte dos códigos existentes fale em respeito às pessoas ou algo semelhante, isso não implica que as pessoas sejam respeitadas em seus direitos. O assédio moral, as broncas em público, a gritaria dentro da empresa continuam existindo.

Flexibilidade ética

E a outra área difícil do trabalho ocorre na relação com os políticos. Não existe hoje no Brasil eleição sem caixa 2, com raríssimas exceções. Por quê? Porque nosso sistema político é muito ruim, foi criado em outra época e piorado por Ernesto Geisel com os senadores biônicos e o aumento da representação dos estados menos populosos. A Constituição de 1988 e as emendas posteriores agravaram as coisas um pouco mais, e hoje temos uma porção de defeitos na representação política, sem possibilidade, a meu ver, de melhoria no curto prazo. Precisaríamos de uma reforma política e de uma reforma do Estado que diminuíssem a centralização e facilitassem o controle dos eleitos pelos eleitores.

A relação entre a ética na empresa e a ética na política vai evoluir algum dia. A corrupção certamente é um problema, ela acentua alguns aspectos negativos nossos, um deles chamo de flexibilidade ética, que é essa coisa de aceitar os desvios e conviver com pessoas que sabemos ser no mínimo duvidosas e até parceiras de atividade criminosa. Um norueguês me disse certa vez que, em seu país, se um vizinho está envolvido em alguma bandalheira, ninguém mais fala com ele. Acaba saindo da cidade, porque sua vida fica insuportável.

No Brasil a flexibilidade ética vem de longos tempos. A primeira pesquisa de que participamos, organizada pela Agência Fides em 1982, já mostrava que a questão do relacionamento com os políticos era um dos calcanhares de Aquiles da área empresarial. Relacionar-se através de subornos e de propinas era considerado normal.

Outra área em que encontrei muita dificuldade foi a dos advogados das empresas, que diziam que não conseguiam em tempo hábil os documentos legais de que precisavam sem gorjetas ou propinas aos cartórios.

Compilando essas ideias todas, o Brasil criou uma legislação específica que, embora não escrita, é certamente a que tem mais difusão. A primeira lei é a do mais forte: quem pode manda e quem tem juízo obedece. Outra é a Lei do Robertão: é dando que se recebe. Uma terceira é a conhecidíssima Lei de Gerson: é preciso levar vantagem em tudo. Mais: há a Lei dos Espertos e, ainda, a Lei dos Marxistas, pela qual os fins justificam os meios.

Dentro desse panorama, destaco alguns exemplos interessantes na história empresarial brasileira. Na Bahia, o empresário Luís Tarquínio, que montou em 1891, em Valença, a maior empresa têxtil do Brasil, a Companhia Empório Industrial do Norte. Filho de uma ex-escrava, criou a companhia três anos depois do fim da escravidão e construiu a maior vila operária do país. As casas tinham água encanada e esgoto, havia escola e toda uma infraestrutura para os trabalhadores, o que era absolutamente incomum, especialmente na época. Ele dizia que a necessidade de normas morais é tão antiga quanto a vida social e que a moral não possui origem fora do homem, mas sim no que ele sente, pensa, transforma e constrói. A iniciativa, além de diferente, trouxe resultados. As faltas ao trabalho, de 15% nas outras empresas, não chegavam a 1% na de Tarquínio.

Em São Paulo tivemos exemplo semelhante com Jorge Street, também do setor têxtil. Mas enquanto a obra de Luís Tarquínio entrou em decadência com sua morte, a de Street não deu certo nem durante sua vida. Tratar bem os empregados era um comportamento que na sociedade brasileira de então não dava muito bons resultados. Em alguns casos até funcionou, como no das Casas Pernambucanas, empresa criada pela família Lundgren. O fundador era um coronel típico de Pernambuco, fazia e desmandava, mas tratava os empregados de uma maneira melhor socialmente. Outro caso foi o de Delmiro Gouveia, que em 1912 montou em Alagoas a famosa Fábrica da Pedra. Mais tarde apareceu Salvador Arena, com a Termomecanica, em São Paulo. Eram empresários avançados do ponto de vista social e a maior parte deles tinha também um comportamento melhor na área política. Mas todos eles, com exceção de Salvador Arena, acabaram sem empresa.

A maioria dos autores acredita que as empresas deveriam ouvir mais seus empregados, mas isso é uma raridade no Brasil. Num dos trabalhos que fiz numa delas, voltado à conduta empresarial, instituímos um programa chamado Café da Manhã com o Presidente. Ele se reunia com dez pessoas do chão de fábrica, apresentava uma espécie de relatório sobre a situação da empresa e os empregados faziam perguntas. Era uma fábrica de fogões. Numa das reuniões um dos empregados perguntou por que todos os fogões da fábrica saíam do mesmo jeito, exceto os que iam para a Argentina, que tinham um pé de madeira fixado no fogão. O presidente não tinha a menor ideia e disse que ia verificar. Falou com o gerente, que também não sabia, e no final se descobriu que, quando haviam começado a vender para a Argentina, o fornecedor anterior tinha esse hábito. Os compradores, consultados, disseram que recebiam assim porque vinha assim, e até tinham um trabalho extra para desparafusar a peça e jogá-la fora. Se não fosse, portanto, aquela conversa com o empregado, jamais teriam descoberto a inutilidade daquela madeira, que exigia até uma serraria na empresa para produzir as peças.

Voto distrital

A questão dos políticos não é um problema só brasileiro. Houve um caso famoso na Alemanha, de Helmut Kohl, um dos mais importantes líderes mundiais e responsável pela unificação do país. Descobriu-se que ele havia recebido verbas não contabilizadas para sua campanha eleitoral, e ele acabou perdendo o pé na política. Houve casos semelhantes na França e na Itália. Neste último país, diretores da Fiat chegaram a ser presos por suborno a políticos. No Brasil é uma questão ainda em aberto. O Congresso está discutindo uma legislação para penalizar as empresas por atos de improbidade. Hoje elas não podem ser responsabilizadas, e quem é penalizado é o administrador. No máximo ela poderá ser considerada inidônea. Se aprovarem isso, não vai sobrar uma.

Temos um Congresso constituído basicamente por pessoas ignorantes e que estão lá com intenções de enriquecimento pessoal. É claro que há exceções. Então, qualquer lei votada corre o risco de ser de má qualidade, porque os parlamentares não têm noção do que estão votando.

Temos defendido, através do PNBE [Pensamento Nacional das Bases Empresariais] e pessoalmente, em artigos, uma reforma política que aumente o poder da sociedade. Isso implicaria o voto distrital misto, para que pudéssemos conhecer o deputado em quem votamos. Outra proposta é reduzir o Senado ao que era seu histórico, ou seja, dois senadores por estado. Uma questão, ainda, é a vereança paga, um dos graves problemas criados no Brasil. Municípios sem recursos recorrem ao Fundo de Participação dos Municípios para pagar o salário de vereadores, que se tornam a ponta de uma cadeia de interesses políticos que estimula a corrupção. Não são mais representantes de grupos sociais, mas de deputados, alimentando essa cadeia.

Nunca vivemos uma fase de corrupção tão grande como a que temos hoje no Brasil, e com tão má qualidade da representação política. Acredito, entretanto, que a generalização da educação, embora ainda de má qualidade, e os avanços das organizações sociais e ambientais vão fazer com que a relação entre a ética na política e na empresa evolua. Apesar de ler jornais, mantenho o otimismo.

Debate

NEY FIGUEIREDO – Sabemos que todos os escândalos surgidos no Brasil nos últimos 30 anos têm como base a campanha eleitoral e seu financiamento. Pergunto: por que não se instalou o financiamento público de campanha? É evidente que isso não acabaria com a corrupção, mas iria melhorar muito. Outra questão: não entendo por que até hoje a imprensa brasileira não adotou um código de ética ou de autorregulamentação, a exemplo do que fez a publicidade com o Conar. Recentemente o Instituto Fernando Henrique Cardoso fez um seminário a respeito disso, os jornalistas que conheço são favoráveis e todo mundo acha que há necessidade da autorregulamentação para combater os excessos da imprensa sem chegar ao Poder Judiciário.

MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Hoje já existe um financiamento público, mas é mal aplicado. São os programas gratuitos dos partidos, que na verdade não são gratuitos porque nós os pagamos na forma de deduções de impostos das empresas que os transmitem. E os partidos recebem uma bela soma de dinheiro do fundo partidário. O financiamento público de campanha está nas propostas hoje em discussão no Congresso, mas o problema é que não é possível ou não é viável realizá-lo com o sistema eleitoral que temos. O financiamento público tem de ser feito para os partidos, não para cada candidato. Enquanto mantivermos esse sistema proporcional em que cada candidato faz sua campanha individualmente, isso não poderá ser feito. Os projetos que estão no Congresso implicam o voto em lista ou em lista mista, com financiamento público. O que está mais avançado estabelece o voto em lista com uma segunda votação para o candidato e financiamento exclusivamente público de campanha.
Não acredito que resolva a questão, mas melhora e certamente vai ajudar ainda mais se tivermos uma forma de votação mais adequada. A individual é muito ruim e a quantidade de dinheiro de que se precisa para ser candidato é muito grande, o que dá margem à corrupção.
Quanto à segunda questão, concordo que a imprensa deveria ter uma autorregulamentação. E não só a imprensa como outros setores. É a melhor forma de estabelecer limites éticos ou comportamentais para as organizações.

ROBERTO MAGALHÃES – É muito mais fácil moralizar uma empresa que um estado, um município e mais ainda a União. Fui advogado praticamente só de empresas, também ensinava direito comercial e posso dizer que os problemas das empresas familiares apareciam mais na terceira geração. Hoje as famílias estão contratando profissionais. Paulo Maluf me disse que paga mais a profissionais que ao filho dele em sua empresa.

Quanto à questão da ética na política, afirmo que o caixa 2 no Brasil tinha de ocorrer porque o Código Eleitoral vigente, hoje alterado, estabelecia que as doações eleitorais só podiam ser feitas por pessoas físicas e não por pessoas jurídicas. Quando me elegi deputado, encontrei essa situação, e todos nós, para sermos eleitos, tínhamos de ser criminosos. Quem é que pode dar dinheiro para uma campanha se não o empresário? E como não podia doar, utilizava o caixa 2.

Chegando à Câmara, fui designado presidente de uma comissão interpartidária para preparar um projeto de lei eleitoral para o ano de 1994. Na comissão de orçamento, em que fui relator, houve uma reunião preliminar e todos os partidos concordaram que ninguém seria punido por ter usado caixa 2, porque ninguém tinha autoridade moral para punir. José Dirceu apresentou uma proposta nessa comissão e foi tão bem feita que até hoje só sofreu uma modificação. Passou a haver recibo e conta bancária vinculada. Então quem quiser ser honesto como candidato a deputado hoje pode ser. Não há nenhuma lei que o obrigue a praticar irregularidades.

É muito ruim a imagem do Congresso, a corrupção é hoje indiscriminada, a maioria está sob suspeita, embora nada se prove. As grandes empresas, que não querem fazer doação a pessoa física, encontraram uma solução inteligente: doam ao partido e este doa ao candidato. O gasto eleitoral, por sua vez, está ficando altíssimo. Como admitir que em Pernambuco candidatos possam gastar R$ 6 milhões para ter o mandato de deputado federal? Existe tanta coisa boa para se fazer com R$ 6 milhões, como explicar que alguém queira um mandato de um poder que nem é poder mais, já que quem manda no Congresso é o Planalto, onde Lula conseguiu fazer uma maioria esmagadora? Lula, na realidade, acabou com a oposição no Brasil. Só vai haver oposição quando esses partidos todos acabarem e a democracia entrar na normalidade, porque não pode haver democracia sem oposição.

Estive nos anos 1990 na Alemanha para conhecer o voto distrital misto, que estava na moda. Existe um projeto muito bem feito, mas antigo, do deputado Adhemar de Barros Filho. Fiz um novo, não digo que é melhor que o dele, mas apenas para ficar registrado. Outro deputado paulista do PSDB fez também um projeto de voto distrital. É a única forma que vejo de conciliar os que não admitem a lista única.

HUMBERG – Fui diversas vezes à Alemanha, tive contato com o processo eleitoral e penso que o sistema de voto distrital misto seria o ideal para o Brasil, porque tanto estabelece uma ligação com a comunidade através do distrito como possibilita termos representantes da elite intelectual e política.

ZEVI GHIVELDER – Nos últimos anos, as grandes empresas parecem ter tomado certa consciência de devolver para a sociedade um pouco do que recebem dela. Passaram assim a patrocinar eventos culturais, esportivos, artísticos etc. Há nisso um benefício fiscal, e pergunto: trata-se de ética empresarial ou de marketing? Outra questão: será que as deduções fiscais que as empresas recebem com esses patrocínios não são praticamente ínfimas e representam muito pouco? Nos Estados Unidos qualquer doação, para qualquer finalidade, é abatida direto no imposto de renda. No Brasil, se eu fizer uma doação para alguma entidade não cadastrada não poderei usar o benefício. Não seria importante modificar essa legislação?

HUMBERG – A responsabilidade social empresarial surgiu como resposta às exigências da sociedade. Isso passou a ser cobrado das empresas, e então nasceu um grupo de estudo internacional, depois transformado em entidade, o Global Reporting Initiative (GRI), que estabeleceu determinados padrões de comportamento envolvendo o que se chamou de triple bottom line, ou seja, a tripla sustentabilidade – social, ambiental e econômica. A empresa, além de preocupar-se com a sobrevivência econômica, deveria voltar-se também para o meio ambiente e a sociedade. Foi assim que surgiram os orçamentos voltados à área cultural etc.

Antigamente existiam algumas coisas também, mas mais como filantropia. É o caso das Santas Casas, que nasceram de doações empresariais. Hoje são mantidas pelos governos, mas durante muito tempo dependiam de pessoas ricas que doavam dinheiro ou deixavam heranças para elas.

É evidente que as empresas hoje usam isso como marketing, pois essas atitudes ajudam a vender mais, a valorizar suas ações e a manter uma boa imagem. Um caso que se tornou até padrão mundial é o da Natura, fabricante de cosméticos, que adotou essas posturas e hoje vale na Bolsa algo como dez vezes seu valor patrimonial.

LUIZ GORNSTEIN – Nos últimos anos cresceu no Brasil o número de ONGs, mas na prática elas estão usando dinheiro público. Será que isso é benéfico?

HUMBERG – As ONGs nasceram como entidades não governamentais que recebiam dinheiro de particulares e faziam ações independentes do governo. O WWF, na década de 1990, tinha um orçamento da ordem de US$ 300 milhões anuais, tudo graças a doações, a maior parte de pessoas físicas. Era de fato uma organização não governamental, como aconteceu com o Greenpeace, que apareceu pouco depois e também vivia de contribuições individuais. No Brasil o termo foi deturpado e surgiram entidades que na verdade são organizações de desvio de recursos públicos. Hoje há uma mistura, temos ONGs de vários tipos, e existe a “pilantropia”, que é muito comum.

O certo seria separar essas entidades, que não deveriam receber dinheiro oficial, das Oscips, um tipo de entidade a que são destinadas verbas públicas para fazer um serviço em nome dos governos. As Oscips muitas vezes têm uma administração melhor – a exemplo de hospitais como o Santa Marcelina e o Albert Einstein, que recebem verba oficial para administrar hospitais públicos. Trata-se de outro tipo de organização, que tem toda uma regulamentação de transparência. As ONGs não têm transparência nenhuma, então se transformaram em um meio de desviar dinheiro.

JOSEF BARAT – Quanto ao Congresso Nacional, eu citaria um grande “pensador marxista”, Grouxo Marx, que dizia: “Esse é o melhor Congresso que nosso dinheiro pode comprar”. Falando sério, penso que estamos vivendo uma espécie de fascismo light. Todo o período Lula se caracterizou pela ideia de que democracia é eleição, democracia é voto. As instituições estão cada vez mais frágeis, vejam o exemplo deprimente do STF [Supremo Tribunal Federal]. O poder está altamente concentrado no Executivo e a oposição está ausente.

HUMBERG – O ex-presidente Lula, com o mensalão e outros processos, conseguiu cooptar a maior parte dos deputados. Sobraram alguns, que não puderam ou que não quiseram entrar no bolo. A oposição é exercida mais pela imprensa que pelos políticos. Espero que isso tenda a mudar. É como ocorre com o uso de drogas: chega-se a um determinado nível em que ou a pessoa para ou morre. Na maioria dos casos, infelizmente, morre.

PAULO LUDMER – Tenho uma angústia em relação ao conceito de ética, que está em franca discussão em todo o planeta. A ética, segundo a Escola de Paris, engloba a moral, que é, assim, um de seus segmentos. Nós tratamos aqui foi mais de moral que de ética. Segundo os preceitos filosóficos mais dominantes, a moral deve ter algumas características para ser considerada como tal. Uma delas é a exigência de que os critérios sejam universais. Estamos então diante de um problema universal. Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, começou a mostrar ao mundo que a moral – assim como a economia – se afasta cada vez mais da ética.

Vejamos alguns exemplos. No Afeganistão é moral apedrejar até a morte uma mulher infiel. Na Guiné-Bissau é moral extirpar o clitóris de uma menina de dez anos em festa religiosa familiar. No Ártico é moral o marido oferecer a esposa em seu iglu, e a recusa é uma grave ofensa. É moral no Irã obrigar a mulher estuprada a casar com o estuprador. E nós, eurocêntricos, achamos que sabemos o que é o bem. Como entender essa questão até mesmo conceitual?

HUMBERG – A discussão sobre ética e moral é permanente. Em meu trabalho uso a expressão “ética empresarial”, porque, no conceito que considero melhor, a moral é uma questão individual ou de determinado grupo, é local. Temos assim a moral confuciana, a dos islamitas, a judaico-cristã, que é a predominante entre nós. Há a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que deveriam refletir uma ética universal, mas isso acaba não acontecendo. A distinção que faço é esta: a moral é individual ou de determinados grupos e a ética é aquilo que deveria ser o conjunto das morais. Por isso gostaria de dizer “conduta” ou “comportamento empresarial” em vez de “ética empresarial”.

NEY PRADO – “Ética” é uma palavra prostituída, já que é um campo da filosofia. Tive o cuidado de perquirir todas as escolas e encontrei mais de 20, todas elas defendendo princípios e, dentro da sistematização dos filósofos, quando se aceitam os pressupostos, necessariamente temos de aceitar as conclusões. Então temos a aristotélica, a platônica, a epicurista, a cristã, a hedonista e por aí vai. Como a palavra é polissêmica, cada um dá à ética seu conceito próprio. Na verdade, a ética é sempre a busca por universalizar algum princípio e a moral, como você disse, é a ética vis-à-vis a determinado comportamento.

Quando trabalhamos com palavras ou conceitos polissêmicos, ensejamos uma série de dúvidas. É como a política, que pode ser substantiva ou adjetiva. Então o grande problema nosso quando defendemos a ética é que criamos confusões conceituais e a partir daí surgem as dúvidas.

HUMBERG – Para encerrar, gostaria de dizer que minha mulher sempre reclama quando falo de “ética”. Ela prefere “integridade”, “equidade” ou outro termo, pois “ética” está muito desgastado. Na verdade, a palavra é utilizada de maneira indiscriminada. Outro dia ouvi esta pérola, da boca de um candidato em um programa eleitoral de um desses partidos metidos em confusão: “Somos um partido ético em defesa do Brasil”.