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O barulho nas grandes cidades

Som nas discotecas: 95 decibéis e perda auditiva momentânea / Foto: Marlene Bergamo/Folhapress
Som nas discotecas: 95 decibéis e perda auditiva momentânea / Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

Por: SILVIA KOCHEN

Um mal invisível está transtornando o dia a dia nas cidades. Seres humanos ficam irritadiços, animais mudam o comportamento e tantos outros problemas ocorrem devido ao ruído urbano, que fica cada vez mais intenso à medida que a vida moderna avança. É o barulho dos motores dos carros, de aparelhos de som, de sirenes, britadeiras, buzinas, celulares. A situação é grave e, como tal, reconhecida mundialmente: a Organização das Nações Unidas caracteriza a poluição sonora como uma das mais danosas, ao lado do ar e da água por produtos químicos.

“Atualmente, quem vive nas grandes metrópoles normalmente está exposto a níveis elevados de ruído, um fenômeno conhecido como socioacusia”, explica Sérgio Roberto de Lucca, especialista em medicina do trabalho e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele esclarece que o limite aceitável de ruído é de 65 decibéis (dB) e que, quando o ruído ultrapassa 85 dB, há o risco de lesões no sistema auditivo, que podem ser temporárias ou permanentes, conforme a exposição.

Para se ter uma ideia do que de fato anda acontecendo basta citar que o nível usual de ruído da Avenida Paulista, em São Paulo, está em 79 dB, o mesmo que na Avenida Champs-Élysées, em Paris, e só abaixo dos 80 dB registrados na Times Square, em Nova York, segundo compilação feita pelo geógrafo Thiago França Shoegima para sua dissertação de mestrado, um estudo de caso sobre o nível do barulho no distrito paulistano de Pinheiros. Em termos de comparação, o nível de ruído na Union Square, em San Francisco, é de 65 dB; na Praça da Paz Celestial, em Pequim, de 70 dB e na Praça do Mercado de Hong Kong, de 78 dB.

Por conta disso, habitantes de grandes cidades brasileiras são vítimas frequentes de estresse. Não raro, brigas entre vizinhos por causa de barulho são resolvidas apenas com a presença da polícia. Algumas vezes, o resultado é uma tragédia, como a ocorrida em um condomínio de luxo em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo, em maio passado, quando as constantes discussões sobre a altura do som levaram um morador de 62 anos a invadir, armado, o apartamento que ficava acima do seu e matar a tiros o casal de vizinhos. O assassino, um empresário que tinha uma doença crônica, suicidou-se em seguida.

Shoegima conta que resolveu estudar a poluição sonora urbana por ser um tema inédito no Brasil. Mas ele não imaginava que fosse se deparar com um silêncio absoluto sobre os dados relativos ao barulho. “No começo, busquei o Programa de Silêncio Urbano (Psiu) da Prefeitura de São Paulo, que fiscaliza a poluição sonora, mas eles só tinham informações sobre as denúncias”, diz. O geógrafo observa que o Psiu foca sua atuação em locais fechados, como casas noturnas e templos religiosos, mas ignora completamente a principal fonte de ruído urbano, que é o tráfego, principalmente de veículos pesados como caminhões e ônibus, e de motocicletas. O barulho produzido por indivíduos que resolvem compartilhar seus gostos musicais com toda a vizinhança também é ignorado pelo programa municipal.

Além disso, o Psiu só é acionado mediante queixas dos cidadãos. A partir do momento em que alguém reclama, é preciso chamar um técnico com equipamento, o motorista da subprefeitura e uma equipe de apoio da Polícia Militar (PM) para ir ao local. Normalmente, quando isso acontece, o problema já passou. Diante dessa situação, Shoegima se colocou a campo para mapear o ruído no distrito de Pinheiros, o mais barulhento de São Paulo, depois da Sé, no centro histórico da cidade. A média anual de reclamações ao Psiu naquele distrito – que compreende Pinheiros, Alto de Pinheiros, Itaim Bibi e Jardim Paulista – chegou a quase 2,5 mil por ano no período de 2002 a 2008.

O geógrafo conta que teve problemas quando levou o medidor de decibéis para as cercanias das casas noturnas da Rua Fradique Coutinho, ponto que alguns já consideram como pertencente ao badalado bairro da Vila Madalena. “Quando tentei medir o barulho noturno por lá, seguranças dos bares locais me abordaram de forma intimidadora”, relata. Ele acrescenta que, em conversas com pessoas da vizinhança, soube que moradores do local já foram ameaçados por frequentadores ou seguranças das casas noturnas. Esses paulistanos, não raro, são acordados às quatro horas da manhã, quando os bares fecham suas portas e os participantes de baladas ficam conversando na via pública.

Obras do monotrilho

Shoegima fez o mapeamento acústico do bairro de Pinheiros medindo o ruído encontrado em 40 pontos, um levantamento realizado em três anos consecutivos, de 2010 a 2012, durante os dias de semana. Ele observa que áreas normalmente barulhentas durante a semana, como o centro das cidades, são silenciosas no sábado e no domingo, e o inverso é verdadeiro nas áreas mais periféricas. A seleção dos locais medidos levou em conta a distribuição de pontos ao longo do distrito e os limites de ruí­do dados pela lei de zoneamento, que estabelece um máximo de 50 dB para áreas residenciais, de 50 a 65 dB para zonas mistas e de 65 a 70 dB para áreas predominantemente industriais.

Dos locais medidos, 26 deles apresentavam um nível de ruído crítico, acima de 70 dB, em média. Apenas um dos pontos estava abaixo do limite estabelecido pela lei. O geógrafo aponta entre as principais fontes de barulho, além do trânsito, as obras de engenharia do monotrilho. Ele afirma também que o ano de 2010 foi o mais crítico em termos de poluição sonora, mas o ruído diminuiu ligeiramente e se estabilizou em 2011 e 2012. Já em 2013, em uma medição feita recentemente, ele constatou um ligeiro avanço de 1 dB no barulho local.

Segundo Shoegima, os motivos para que o barulho se estabilizasse em 2011 e 2012 são, basicamente, dois. O primeiro é a lei que restringe o tráfego de caminhões e veículos pesados, que são os mais barulhentos, nas áreas mais centrais de São Paulo no horário diurno. O segundo é a adoção da inspeção veicular ambiental, que passou a ser obrigatória no município de São Paulo (e que vem gerando controvérsias por causa da concessão de responsabilidade pela realização do trabalho, a uma única empresa, a Controlar). Embora a inspeção veicular verifique a produção de ruídos de forma aleatória e atue em apenas 10% da frota, visto que seu foco é o controle da emissão de poluentes atmosféricos, só o fato de obrigar o proprietário do veículo a fazer uma manutenção mais regular já ajuda a conter o barulho dos motores, avalia o pesquisador.

Shoegima lembra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera São Paulo uma das cidades mais barulhentas do mundo, ao lado do Rio de Janeiro, Nova York, Tóquio e San Francisco. Vale lembrar que na capital paulista o tráfego aéreo também contribui muito para a poluição sonora, devido à circulação constante de helicópteros.

Embora ignorado pela maioria da população, o impacto da poluição sonora sobre a saúde é perverso, pois o ruído atua de forma traiçoeira e a exposição acumulada provoca estresse, distúrbios de sono, problemas cardiovasculares, reduz a concentração e altera o comportamento psicossocial, entre outros problemas, segundo reconhece a OMS. O organismo humano começa a sofrer o efeito do ruído quando ele ultrapassa 50 dB, nível do limite estabelecido na lei paulistana para regiões residenciais. De 55 a 65 dB, equivalente ao barulho normalmente presente em um escritório de uma grande empresa, a pessoa começa a ficar em estado de alerta constante, não relaxa, e a concentração necessária para um trabalho intelectual começa a ficar comprometida. De 65 a 70 dB (nível de ruído encontrado em um terminal rodoviário, por exemplo), o organismo começa reagir para se adaptar ao ambiente – o nível de cortisona no sangue aumenta, reduzindo as defesas imunológicas, e há uma indução à liberação de endorfinas, tornando o organismo dependente (como no caso de pessoas que só conseguem dormir com o rádio ou a TV ligados). Acima de 70 dB – nível usualmente encontrado em ruas de tráfego intenso –, a pessoa fica sujeita a um estresse degenerativo, com aumento de risco de enfarte e infecções, entre outras doenças, e o equilíbrio emocional é abalado.

Acasalamento dificultado

O ruído excessivo pode também causar perda auditiva, alerta o médico de Lucca, e por essa razão é fundamental levar em conta a intensidade da exposição. Uma pessoa não pode ficar exposta a um ruído acima de 85 dB por mais de oito horas; indivíduos que trabalham em ambientes assim devem ter uma jornada de trabalho menor. Ele cita como exemplo o motorista de uma ambulância, cuja sirene chega a 105 dB. Quando o ruído é muito intenso, pode até mesmo provocar um trauma que resulta imediatamente em surdez permanente. Mas fontes de ruído intensos também estão presentes em muitos outros lugares. Um martelete pneumático, usado em construção civil, faz barulho acima de 100 dB, e uma moto potente chega a 95 dB quando alcança a velocidade de 80 quilômetros por hora.

“Na balada, em uma discoteca, por exemplo, o normal é um ruído de 90 a 95 decibéis”, diz de Lucca. “Por isso, os jovens saem dali falando alto e com uma perda auditiva temporária, mas no dia seguinte já estão recuperados. O mesmo não se pode dizer em relação ao DJ, que estará trabalhando em outra balada no dia seguinte e não terá tempo para essa recuperação. Em cerca de cinco anos esse indivíduo já apresenta uma perda auditiva irreversível.” O médico alerta que esse processo começa com certa irritabilidade e maior esforço para ouvir outras pessoas; depois, fica difícil conversar em grupo, pois a pessoa precisa estar diante do interlocutor para ouvir; após algum tempo, deixa de ouvir sons de frequência alta (agudos) e vai perdendo gradativamente a capacidade de distinguir outros sons.

Os animais também são afetados pelo ruído excessivo nas grandes cidades. Cães, que têm audição muito mais sensível que a dos humanos, frequentemente acordam no meio da noite e latem devido a ruídos que seus donos dificilmente escutam. Outros bichos domésticos – como pássaros, hamsters, gatos, peixes de aquário etc. – também ficam estressados. São situações que podem motivar brigas e discussões entre vizinhos. Mas animais considerados silvestres já estão sob a ameaça da poluição sonora. Como a reprodução dos pássaros começa com o canto dos machos para atrair as fêmeas, o barulho interfere na comunicação entre os casais. Os machos deixam de ser ouvidos ou modificam timbre e horário usual de seu canto na primavera, época de acasalamento.

Pesquisadores da Universidade de Alberta, no Canadá, descobriram que de sete espécies comuns de pássaros na cidade de Edmonton, três estavam com uma população reduzida e corriam o risco de desaparecer por causa do barulho. Como o ruído das rodovias se sobrepõe ao canto de espécies que têm timbre grave, as fêmeas não ouviam o chamado dos machos para o acasalamento ou o interpretavam como um indício de que o pretendente não seria um bom pai por ter um canto fraco.

Na verdade, a poluição sonora é prejudicial a todas as espécies. Na Alemanha, cientistas da Universidade de Bielefeld chegaram à conclusão de que o ruído do trânsito também está prejudicando o acasalamento de grilos silvestres. A constatação foi feita a partir do estudo de uma espécie de grilos muito comuns na Europa Central, que cortejam a fêmea com sons dispostos em uma sequência de duas a seis frases, com duração de dois a três segundos, compostas por sons graves e agudos. Para se fazer ouvir pelas fêmeas, os grilos machos, que vivem em áreas ruidosas, vêm aumentando o volume dos sons graves. Como eles produzem esses sons estalando as pernas, estas estão engrossando especialmente em locais onde há grande interferência de sons gerados pelo homem.

Asfalto-borracha

Enquanto o barulho urbano cresce, desenvolvem-se novas tecnologias para diminuir o ruído dos produtos. As montadoras estão colocando no mercado carros com motores cada vez mais silenciosos (quem não se lembra do barulho dos carros de 50 anos atrás, que mais parecia uma britadeira?) e com isolamento acústico no interior do veículo. Também não faltam meios para diminuir o barulho dentro das casas, como janelas duplas, por exemplo, ou barreiras acústicas representadas por muros ou por materiais especiais. Mas a principal fonte de poluição sonora ainda é a provocada nas ruas e nas estradas.

Foi pensando no problema que um pesquisador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), o engenheiro Sérgio Copetti Callai, resolveu estudar medidas de redução do ruído causado pelo tráfego de veículos. Ele conta que escolheu esse tema para sua dissertação de mestrado por ser um assunto interessante e ainda pouco explorado. O engenheiro avaliou o ruído em três tipos de pavimentos asfálticos: o microrrevestimento, muito usual em estradas brasileiras, como a Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo; o asfalto-borracha, que aproveita pneus descartados em sua composição; e o concreto betuminoso usinado a quente (CBUQ), presente na pista de testes da Pirelli, em Sumaré (SP). Como esta última fica próxima a uma rodovia de grande tráfego, não foi possível avaliar corretamente o ruído externo produzido por esse tipo de revestimento devido à impossibilidade de isolar os dados obtidos.

Em seu estudo, Callai comprovou que o asfalto-borracha é o que tem menor impacto em termos de ruído, tanto no interior quanto fora do veículo. Usando um automóvel modelo Palio 1.8 a uma velocidade de 100 quilômetros por hora, o pesquisador mediu o ruído interno, que ficou em 71 dB no asfalto-borracha e em 73 dB nos outros dois tipos de revestimento. Em termos de ruído externo, o microrrevestimento apresentou ruído de 83 dB, 3 dB a mais que o asfalto-borracha. Outro dado interessante observado é que há uma redução significativa do ruído interno com a diminuição da velocidade do veículo: 67 dB a 80 km/h, 63 dB a 60 km/h, 60 dB a 40 km/h e 57 dB a 20 km/h.

Callai salienta a importância de medidas de contenção da poluição sonora e observa que hoje as queixas dos motoristas nas estradas mudaram. “Antes eram buracos, mas, hoje, com a melhoria das pistas e o consequente aumento da velocidade, as reclamações se concentram em trepidações e ruído, isso no estado de São Paulo.” Ele também ressalta a importância da questão para a saúde pública, citando várias pesquisas realizadas ao redor do mundo. Entre os vários exemplos, Callai relata a constatação de que ambientes sem ruído contribuem para a melhoria de pacientes em unidades de terapia intensiva (UTI) hospitalares, ou um estudo que mostrou que gestantes australianas que vivem nas proximidades de rodovias tendem a ter gestação mais curta.

A poluição sonora tem, ainda, impactos econômicos. Além de prejuízos à produtividade, o excesso de ruído também pode desvalorizar um imóvel, como acontece nos apartamentos ao lado do quilométrico Elevado Costa e Silva, o Minhocão, em São Paulo, cujos moradores têm dificuldade para dormir. Callai observa que há normas técnicas de construção que visam limitar o nível de ruído em residências, mas essas recomendações não têm o poder de lei.

Muitos governos começam a se empenhar na adoção de legislações que restrinjam o barulho por meio de soluções de engenharia. Todavia, esse é um caminho muito longo, pois parte da população ainda não se sensibilizou para o problema e suas consequências. Equipamentos de som estão cada vez mais potentes, seja em carros ou em residências. E com o avanço dos condomínios de apartamentos, crescem na mesma proporção as discussões entre vizinhos motivadas justamente pelo barulho. “Começa como um problema de engenharia e acaba virando uma questão social”, diz Callai.