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Aninha Franco

Foto por Werner Schulz
Foto por Werner Schulz


A dramaturga e escritora fala sobre o cenário da produção teatral em Salvador e alguns dos destaques da criação artística baiana


Dramaturga e escritora baiana, Aninha Franco escreveu e dirigiu sucessos do teatro como Dendê & Dengo, Os Cafajestes, Oficina Condensada e Esse Glauber. Além disso, foi uma das idealizadoras e administradoras do Teatro 18, criado em 1997 em Salvador, referência na democratização da cultura por oferecer programação a preços populares. Nesta entrevista, ela fala sobre a criação do projeto, a produção teatral em Salvador e sua obra dramatúrgica: “Aprendi com Nietzsche que é com o riso que se alcança o inimigo. O meu temário é a Bahia. Eu e a Bahia somos coladas. É o meu grande temário e a minha grande musa”.


Como foi essa sua escolha de fazer teatro em Salvador?
Quando eu tinha uns 24 anos e ganhei o meu primeiro prêmio nacional, me perguntavam em entrevistas quando eu iria para o Rio de Janeiro, que na época era o grande polo de cultura, e descobri que não queria sair daqui, porque aqui existiam pessoas que queriam consumir o que eu fazia. Eu sabia que existiam, e é só isso que você tem que ter: consumidores culturais. Fiquei, e começamos a fazer um movimento de permanência e criação cultural em várias áreas. Agora é mais confortável. Essa aterritorialidade como atemporalidade vai aumentar cada vez mais. Então aqueles que criam estarão em todos os lugares e todos os lugares serão visitados.

De que forma você vê a produção teatral em Salvador nos últimos anos?
Ela se perdeu. Sou historiadora cultural, pesquiso Salvador, tenho pesquisado o século 20 inteiro, e vivi os 14 anos do século 21. Depois de uma efervescência enorme nos anos 1990, nós regredimos e voltamos aos anos 1960, mais ou menos. Em 1990 nós fazíamos dramas, comédias, havia novas obras, jovens aparecendo e tudo isso era muito consumido. De repente, isso foi perdido, com os últimos governos. Eu tinha cinco espetáculos em cartaz, criações coletivas, a minha casa foi comprada com dinheiro de bilheterias de teatro. Havia uma diversidade, e a sociedade imediatamente reconheceu isso. Porque a culpa nunca é da plateia, do espectador, a culpa é do artista. Quando ele não é consumido, a culpa é dele. A cultura e a criação brasileira estão passando por um momento complicado. Não tenho lido, ouvido ou visto criações que motivem a sociedade. Os teatros de Salvador estão profundamente vazios, porque esse sistema de edital é uma censura econômica terrível. Para você passar no edital você precisa escrever aquilo que interessa.

Você acha que atualmente a cultura baiana pode  ter se diluído?
O que aconteceu foi o seguinte: nós entramos na era digital, em que tudo podia ser consumido ao mesmo tempo aqui e agora. Ao mesmo tempo, os criadores foram combatidos pela burocracia, pela política partidária, e a gente não deu conta dessas duas frentes de batalha. O Axé Music, por exemplo, vendia no mundo inteiro, vendia um milhão de discos em um estalar de dedos. Perdemos. Eu saí do carnaval nos anos 1970 porque virou um carnaval de mentira, que não me interessava mais. No carnaval de 2014 eu fui ver os camarotes e é inacreditável no que se transformou o carnaval da Bahia. É uma das coisas mais chatas que eu já vi na vida. Era um grande bacanal romano, e hoje é o céu. Eu criei uma música para um espetáculo chamado Esse Glauber para homenagear o Glauber Rocha, porque quase ninguém na Bahia sabe quem ele é e ninguém viu sua obra. O tema do espetáculo é um carnaval que se chama Deus e o Diabo na Terra do Sol e dois cordeiros discutindo em torno disso, vivendo o carnaval inteiro. Quando eles entram no camarote e veem aquilo, os dois cordeiros miseráveis, que saíram do fim do mundo, cantam “quando eu morrer, eu não quero ir pro céu, quero ir pra um camarote”. É isso. O povo saiu do carnaval e a elite não sabe fulejar.

Como essa conexão provocada pelo meio digital  reflete em um local como Salvador, que tem uma cultura muito forte?
Ela reflete igual no mundo inteiro, mas eu acho que a Bahia ainda não soube utilizar essa força. O Olodum consegue isso, porque nossa voz ainda é a percussão. O Brasil ainda não tem uma voz coesa, não temos filósofos, sistemas filosóficos. Essas últimas eleições foram deslumbrantes. Nós nos politizamos e agora falamos de política em todos os lugares. Isso foi a era digital que apressou. Estamos começando a engrossar a voz. Nossa adolescência de mudança de voz já está saindo para uma voz segura. Eu vi todo mundo discutindo política, algo que eu nunca tinha visto antes, e foi lindo. Eu chorava, porque eu amo política. Eu sofria muito com essa despolitização do Brasil, sou um animal político. Todos os meus textos são políticos, mesmo os cafajestes, mesmo Éramos Gays.

A arte baiana de representação e de criação de texto teatral é forte. Há o Dias Gomes, por exemplo. Qual a influência de alguém como Dias Gomes no teatro?
Naquele momento dos anos 1990, nada. Eu sou apaixonada por ele, acho que é o grande dramaturgo do século 20. Ele continua mais contemporâneo do que nunca, mas não é montado em Salvador, não é lido em Salvador nem homenageado em Salvador. A baianidade do Dias é talvez mais profunda que a de Jorge Amado. Os personagens dele estão todos ainda vivos nos municípios mais interiorizados. Em Salvador já há uma diluição disso, mas no sertão eles estão lá, eles existem. Existe um sertão muito triste, muito feio, agreste, sofrido, miserável, mas há um que consegue ter um humor no meio de todo o sofrimento. Esse é Dias Gomes.

Como nasce esse teatro do Dias Gomes, do que ele é resultado?
Dias Gomes saiu daqui muito cedo e nunca falou de outro assunto. A Bahia o permeia o tempo todo. Os grandes sucessos dele saíram daqui. O Pagador de Promessas ainda existe, daquela maneira, em algum lugar da Bahia. As pessoas continuam a se flagelar, a sofrer, a martirizar o corpo para resolver os problemas da alma, e isso é uma loucura brasileira eterna. Aquela história de Roque Santeiro é genial. A Bahia e o Brasil tentam fazer aquilo todos os dias com alguém, com um milagreiro, uma santa, uma irmã. O Brasil ainda é o território do milagre. Foi muito milagre de 1500 para cá, e a gente não consegue escapar dele.

Aquela geração criou um imaginário que ajudou a moldar o Brasil. O que provocou esse olhar?
Essa geração de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Dias Gomes e Carybé, que é argentino e vira baiano, é de uma Bahia que já acabou, e essa turma registrou essa Bahia como ninguém. Talvez nenhuma outra tenha feito isso com o seu território como eles fizeram cantando, desenhando e contando histórias de uma Bahia que não há mais. É maravilhoso que isso tenha sido feito.

Hoje em dia, tanto no cinema quanto na televisão, existe uma geração de atores baianos expressivos, como Lázaro Ramos, Wagner Moura e Vladimir Brichta. De onde eles vieram?
Todos saíram dessa movida muito expressiva dos anos 1990. A baianidade é uma coisa muito forte na nossa vida. É uma maneira de ser, de interpretar, agir, pensar, andar, que perpassa tudo o que a gente faz. Mesmo quando você passa muito tempo longe da Bahia, ela é algo que te frequenta, mas ninguém passa muito tempo longe daqui. Todos vêm buscar uma espécie de ração aqui. Por exemplo, Ivete Sangalo, que é a grande estrela pop do Brasil. Nada daquilo é falso, aquilo é verdadeiro, é uma maneira de ser que está em toda a nossa criação e eu não sei muito bem como se formou. Digo que o primeiro baiano foi Caramuru, porque ele ficou do lado dos índios, deu duro dos portugueses, era casado com dezenas de índias, teve dezenas de filhos e eles já nasceram com a lógica da baianidade, com uma maneira temporal de ver as coisas muito descansada e muito feliz.

Você e Augusto Boal foram os dois brasileiros a participar dos três volumes de dramaturgia latinoamericana feitos recentemente pelo Instituto Argentino? O que une você e o Augusto Boal?
Nosso teatro tem uma proximidade estética e também é muito distante. Nós falamos sobre Brasil, sobre o oprimido, mas eu uso muito o humor para falar da opressão. Aprendi com Nietzsche que é com o riso que se alcança o inimigo. O meu temário é a Bahia. Eu e a Bahia somos coladas. Eu acho que é o meu grande temário, é a minha grande musa.

Como é o público de Salvador?
Comecei fazendo espetáculos de entretenimento, então só quem podia pagar ingresso entrava no espetáculo. O secretário de cultura da época me pediu pra cuidar de uma casa aqui no Pelourinho, que tinha sido reformado e existia dificuldade de trazer soteropolitanos pra cá, e eles quiseram atrair as pessoas pela arte. Criei o Teatro 18, que era uma produção extraordinariamente boa e estreou com preço possível a quem recebesse o salário mínimo. Começamos a R$ 2,18 em 2000. Nosso problema era ter ingresso suficiente para oferecer para as pessoas. Se você fizer uma coisa ruim e oferecer de graça as pessoas não querem, mas havia a qualidade e o preço acessível. Nós trouxemos de volta, a partir de 1998, uma coisa que hoje todo o Brasil faz, que era o sarau. Eu criei um texto, e que Maria Bethania gravou, para abrir todos os dias essa casa. Dizia assim: “Eu conheço um lugar onde pretos e brancos, ricos e pobres, comunistas e capitalistas, eruditos e populares dividem o mesmo espaço. Todos porque podem, todos porque desejam. Desejar é tudo que um espectador tem que fazer. Se ele deseja e paga, está tudo ok”.

E, além do seu grupo em Salvador,  como você vê as demais junções?
Nós trabalhávamos muito juntos até 2006, e éramos combatentes juntos contra o “carlismo”, que era o nosso inimigo mais próximo. ACM era um apaixonado pela arte e é um dos políticos mais importantes que a Bahia teve nos últimos cem anos. Teve também Otávio Mangabeira, que é muito importante, que é o homem que facilita as escolas de teatro. ACM e Mangabeira eram nossos políticos mais importantes, mas ACM era o nosso inimigo, e tinha que ser mesmo. A dissonância faz parte da arte e é isso que falta hoje ao Brasil. Sem dissonância não existe arte. Éramos todos muito próximos até que, em 2007, uma dessas pessoas se tornou secretário de cultura e a partir daí tudo ficou meio desmantelado. O que se vê hoje são as pessoas tentando reagir ao desmonte. Tem uma pessoa que faz aqui uma coisa, outra lá, mas aquela vida intensa, a mentalidade, a pulsação, isso acabou. Agora eu não sei como a gente vai retomar. Estamos tentando.

Como se coloca um espetáculo de pé hoje em Salvador?
Estou trabalhando com uma produtora e captadora paulista. Aqui a gente está tentando se organizar de várias maneiras. Eu tenho um projeto com alguns intérpretes maravilhosos, o “ABCDE”. “A” de Rita Assemany, e a gente vai falar de liberdade. Estou criando a partir da origem da palavra liberdade, de Lucy, a primeira bípede, Rebordosa, Mafalda... essas coisas. O “B” é Ricardo Bittencourt, eu vou trazer Macunaíma de volta. “C”, com Bete Coelho, a gente vai fazer uma visita de Hannah Arendt [cientista política alemã] ao Brasil e ela vai ver uma outra banalidade do mal. “D” de Regina Duarte, a gente vai falar sobre ressentimento sob a ótica de Iago, de Otelo, com Iago explicando por que é que ele tinha que destruir Otelo. E, por último, “E”, com Elias Andreato – vou fazer um Friedrich Hölderlin [poeta alemão] para ele. Só ele para fazer aquele poeta. Não sei onde nem como vai ser. Mas estou fazendo o primeiro texto.


“Descobri que não queria sair daqui [de Salvador] porque aqui existiam pessoas que queriam consumir o que eu fazia, e é só isso que você tem que ter: consumidores culturais”

“A geração de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Dias Gomes e Carybé é de uma Bahia que já acabou, e essa turma registrou essa Bahia como ninguém”

“A baianidade é uma coisa muito forte na nossa vida. É uma maneira de ser, de interpretar, agir, pensar, andar, que perpassa tudo o que a gente faz”

“A dissonância faz parte da arte e é isso que falta hoje ao Brasil. Sem dissonância não existe arte”