
Os sistemas alimentares quilombolas demonstram uma racionalidade própria, na qual o alimento não é mercadoria isolada, mas elo de pertencimento.
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*Por Aline Guedes
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A alimentação deve ser compreendida como fenômeno social total: não apenas ato biológico, mas prática cultural, política e identitária. No Brasil, as culturas alimentares afro-brasileiras e indígenas não são adições periféricas, mas matrizes fundadoras da cozinha nacional. Seus legados estão inscritos no cotidiano, do feijão ao dendê, da mandioca ao milho e, ao mesmo tempo, permanecem invisibilizados por uma narrativa histórica que privilegiou a herança europeia e silenciou saberes tradicionais.
As comunidades quilombolas revelam, de maneira singular, a potência dessas matrizes. Seus territórios constituem verdadeiros centros de diversidade agrícola e cultural, onde se praticam formas de cultivo e preparo transmitidas por gerações. Essas práticas articulam saber ecológico, memória ancestral e espiritualidade, expressando um modo de vida que resiste à homogeneização alimentar imposta pela colonização e, hoje, imposta também pela lógica globalizada dos ultraprocessados. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam a existência de mais de 7,6 mil comunidades quilombolas em todo o país, as quais abrigam aproximadamente 1,3 milhão de pessoas. Apesar da relevância social e cultural, muitos desses territórios ainda não possuem reconhecimento oficial, o que fragiliza a proteção de seus modos de vida e limita o acesso a políticas públicas.
Os sistemas alimentares quilombolas demonstram uma racionalidade própria, na qual o alimento não é mercadoria isolada, mas elo de pertencimento.
A roça, o quintal, as sementes crioulas, as plantas alimentícias não convencionais, a partilha coletiva das colheitas e das refeições revelam uma lógica de sustentabilidade e solidariedade. Como defende Nêgo Bispo, tais práticas não são resquícios do passado, mas estratégias contracoloniais: formas de afirmar existências que recusam a invisibilidade e reivindicam o direito de se manterem íntegras.

É preciso compreender que o apagamento das culturas alimentares afro-indígenas não se deu apenas no plano histórico, mas persiste em discursos contemporâneos que reduzem a comida à soma de nutrientes ou à lógica de mercado. Contra isso, a comida quilombola e a comida indígena recordam que comer é também habitar o território, reverenciar a ancestralidade, fortalecer vínculos comunitários e exercer soberania alimentar.
Portanto, pensar a alimentação no Brasil implica necessariamente reconhecer esses povos como protagonistas. Mais do que valorizar a diversidade gastronômica, trata-se de assegurar direitos territoriais, promover políticas públicas consistentes e criar condições para que esses saberes continuem a florescer. A ancestralidade afro-indígena não apenas explica o passado da alimentação brasileira, mas oferece caminhos urgentes para um futuro mais justo, sustentável e plural.
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