Cozinhar, herdar da família receitas e modos de preparo dos alimentos, comer um famoso PF, com arroz, feijão, bife, batatas fritas e salada, entre outras práticas e costumes relacionados à alimentação, são a área de estudo das culturas alimentares. Por ser uma abordagem interdisciplinar, combina antropologia, sociologia, culinária, nutrição, estudos culturais entre outros campos do saber que nos ajudam a explicar por que preferimos um determinado alimento, por que deixamos de fora certos ingredientes ou por que voltamos a inseri-los no dia a dia.
Um exemplo é a banha de porco, que faz parte da culinária caipira, mas também de outras culinárias brasileiras. A partir dos anos 1960, a banha foi taxada de prejudicial à saúde e passou a ser substituída por gorduras processadas de vegetais, como óleos e margarina. Até que, no começo do século 21, novos estudos comprovaram que a banha de porco, usada com moderação, pode ser mais benéfica que alternativas do mercado. “Muitas vezes, ao refletirmos sobre nossa cultura alimentar, pensamos imediatamente em alimentos tradicionalmente associados ao Brasil, como mandioca, milho, feijão, arroz e café, ainda que alguns, como o café e o arroz, não sejam nativos. No entanto, a cultura alimentar não se restringe ao passado – ela é um processo vivo que é produzido e produz a sociedade a qual ela pertence”, explica Adriana Salay, doutora em história e professora do departamento de história da Universidade de São Paulo (USP).
A cultura alimentar também está no simples ato de flanar pelas feiras de rua em São Paulo, observando as frutas da estação; nas idas e vindas à padaria do bairro; nos almoços em família. “Nós podemos abordar temas como produção de alimentos, técnicas culinárias, identidade cultural, questões de gênero, raça e poder, impactos ambientais e saúde pública. O objetivo é entender como a alimentação é parte integrante da cultura de um povo, e como pode mudar em resposta a fatores sociais, políticos e econômicos. Uma explicação bonita para afirmar a nossa capacidade de xeretar a sacola da feira ou o carrinho do mercado”, descreve Patty Durães, pesquisadora de culturas alimentares, com especialização na análise da influência das heranças afro-diaspóricas na comida brasileira.
Neste Em Pauta, Salay e Durães despertam o “apetite” sobre o que é cultura alimentar, qual o papel do indivíduo e da sociedade nessa história, e por que precisamos refletir sobre como nos alimentamos.
O que é a tradição alimentar? Por Adriana Salay
Muitas vezes, ao refletirmos sobre nossa cultura alimentar, pensamos imediatamente em alimentos tradicionalmente associados ao Brasil, como mandioca, milho, feijão, arroz e café, ainda que alguns, como o café e o arroz, não sejam nativos. No entanto, a cultura alimentar não se restringe ao passado – ela é um processo vivo que é produzido e produz a sociedade a qual ela pertence. Isso significa que o aumento do consumo de ultraprocessados não deve ser visto simplesmente como uma “não cultura” alimentar ou uma mera perda cultural, mas como uma transformação da nossa cultura alimentar, inserida em mudanças sociais mais amplas. O crescimento progressivo do consumo desses alimentos é um reflexo da sociedade contemporânea – uma cultura alimentar dos nossos tempos. Vivemos em uma sociedade marcada pela hiperconectividade, pela globalização,por cadeias produtivas que oferecem cada vez menos biodiversidade, e na qual o tempo se tornou uma das mercadorias mais valiosas. Nesse contexto, o consumo de ultraprocessados faz sentido.
O preço a ser pago, no entanto, é alto. E a solução para essa rápida transformação da nossa cultura alimentar também já é conhecida: precisamos incentivar o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, optar por alimentos locais e mais biodiversos, provenientes de pequenos produtores e, sempre que possível, orgânicos e agroflorestais, garantindo a preservação do planeta como o conhecemos. Uma das orientações muito replicadas é: “façamos como nossos avós”. A classificação proposta pelo professor Carlos Monteiro e pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP) foi fundamental nesse sentido, ao introduzir o conceito de ultraprocessados e evidenciar seus impactos.
Entretanto, como um produto e produtora do cotidiano atual, a cultura alimentar não está isolada dos fatores materiais que condicionam sua prática. Isso significa que não é simples colocar em prática todas essas recomendações e que, se encararmos a alimentação apenas como uma escolha individual, acabamos por torná-la acessível somente àqueles que possuem mais tempo e renda – ou seja, os mais ricos da sociedade. Uma alimentação saudável e sustentável exige condições adequadas de reprodução, razão pela qual a discussão sobre a divisão das tarefas domésticas, frequentemente levantada por Rita Lobo, é tão relevante. Comer feijão e arroz em todas as refeições não depende apenas da nossa boa vontade.
A dupla arroz e feijão é a mais citada quando o assunto é tradição alimentar e, muitas vezes, essa discussão se limita a uma simples enumeração de ingredientes e pratos, como a feijoada. No entanto, a tradição é feita por pessoas e não deve ser reduzida apenas aos alimentos em si. Tradição, substantivo feminino, pode ser entendida como herança cultural, um conjunto de valores morais ou aquilo que se perpetua pelo hábito. Por isso, quando falamos em tradição alimentar, devemos considerar não apenas os ingredientes e os pratos, mas também as técnicas de plantio, colheita e preparo e, por que não, os modos como a sociedade se organiza em torno da alimentação.
Quando falamos em tradição alimentar, devemos considerar não apenas os ingredientes e os pratos, mas também as técnicas de plantio, colheita e preparo e, por que não, os modos como a sociedade se organiza em torno da alimentação.
O crítico literário e professor Antonio Candido (1918-2017) chamou atenção para essas formas tradicionais de organização social em seu mais que recomendado livro Os parceiros do Rio Bonito (1964). Ele demonstrou que, antes da consolidação do sistema capitalista de acesso aos alimentos no interior de São Paulo, no século 20, a produção e o consumo de alimentos eram, em grande parte, atividades coletivas. O plantio e a colheita eram compartilhados, e um porco abatido também era dividido entre os membros da comunidade. O historiador e antropólogo húngaro Karl Polanyi (1886-1964) discutiu essa questão em A grande transformação (1944), no qual analisou como as trocas materiais, antes da consolidação do capitalismo, eram regidas em diferentes sociedades por regras morais e coletivas e não apenas pela lógica tida como impessoal do mercado.
Embora essas formas de organização estejam cada vez mais raras, ainda é possível encontrar resquícios dessa noção ampliada de família e grupo social em alguns lugares e práticas. A solidariedade expressa no ato generoso de compartilhar alimentos tem raízes em uma tradição centenária de organização coletiva da vida cotidiana. E essa tradição, que pode ser entendida também enquanto alimentar, é essencial para enfrentarmos os desafios do acesso à alimentação nos tempos atuais. A coletivização da produção e do consumo de alimentos pode ampliar o acesso a uma alimentação saudável para um número maior de pessoas, rompendo com a lógica do individualismo que muitas vezes marca nossa relação com o comer e com a solução dos problemas.
Um exemplo contemporâneo dessa tradição é a cozinha solidária. Descentralizada, gerida pela comunidade e baseada na coletividade, ela retira da mulher, especialmente da mãe, a responsabilidade exclusiva da produção cotidiana de alimentos – uma tarefa que historicamente recai sobre as mulheres como um trabalho de cuidado não remunerado. As cozinhas solidárias, que chamaram atenção na pandemia, não surgiram nos últimos anos. Mas a crise provocada pela Covid-19 evidenciou essa forma de organização comunitária que diminuiu o sofrimento causado pelo aumento da fome. Essa tecnologia social pode ser vista como uma fagulha de modos tradicionais de organização da vida cotidiana e mostra que podemos, sim, sentir orgulho da nossa cultura alimentar. Apontam uma direção de como os desafios para acesso à alimentação saudável devem ser enfrentados atualmente. Afinal, não há solução individual para problemas coletivos. E pensar coletivamente também é tradição alimentar.
Adriana Salay é doutora em história e professora do departamento de história da Universidade de São Paulo (USP). Criou o projeto Quebrada Alimentada, junto com o restaurante Mocotó, para promover assistência alimentar. É coautora do livro Fome e assistência alimentar na pandemia (2022), uma iniciativa do Sefras – Associação Franciscana de Solidariedade, disponível para download gratuito na página: sefras.org.br/publicacoes.
Sou do camarão ensopadinho com chuchu Por Patty Durães
Para entender o que é cultura alimentar, precisamos nos permitir um mergulho nas fruteiras, despensas, geladeiras, quitandas, mercearias, bodegas, mercados, feiras livres e barracas de venda de comida a fora. Quando eu era criança, meus olhos brilhavam com bacias de bife à rolê que minha avó me ensinou a preparar com maestria: uma fatia de carne, um pedaço de cenoura, outro de linguiça defumada, ramo de salsinha, fatia de bacon e depois enrola apertadinho, espeta palito de dente para fechar e volta para a marinada. A gente recheava hoje para preparar amanhã. Minhas lembranças mais amorosas são também da adolescência, na busca da catalônia mais verdinha na feira, a compra do corte certo de acém no açougue, as frutas da quitanda e o horário de comprar pão na padaria.
Dei muitas voltas profissionais até perceber que precisava trabalhar com comida, uma vez que sempre pensei em comida o dia todo. Como viver dessa vontade de falar de comida e entender o Brasil a partir dela? Há um provérbio africano que diz: “Quando não souber para onde ir, olhe para trás e lembre-se de onde veio”. Nesse processo, entendi que sempre fui o que hoje chamo de pesquisadora de culturas alimentares. Minha avó diria que sou xereta mesmo e eu não poderia discordar dela. Me interesso por saber se você compra mandioca no mercado ou do rapaz que vende no carrinho de mão na rua. Se guarda o pó de café na porta da geladeira ou num vidro no armário, se refoga arroz com alho, com cebola ou com os dois. Se faz salada de escarola, se escalda a couve, se pica o tomate na tábua ou na mão, em cima da panela na hora de cozinhar.
Cultura alimentar é uma área de estudo que investiga práticas, costumes, rituais e tradições relacionados à alimentação em diferentes culturas e sociedades. É uma abordagem interdisciplinar que combina antropologia, sociologia, história, nutrição, gastronomia e outros campos para entender a relação das pessoas com a comida em diferentes contextos. Nós podemos abordar temas como produção de alimentos, técnicas culinárias, identidade cultural, questões de gênero, raça e poder, impactos ambientais e saúde pública. O objetivo é entender como a alimentação é parte integrante da cultura de um povo, e como pode mudar em resposta a fatores sociais, políticos e econômicos.
Uma explicação bonita para afirmar a nossa capacidade de xeretar a sacola da feira ou o carrinho do mercado. Esse é o nosso campo de estudo. E como amante da comida brasileira, meus instrumentos de trabalho também têm nomes bonitos como cumbuca, caneca, tabuleiro, peneira, pilão, tipiti, cesto, caçarola. E muitas das palavras que permeiam nossas cozinhas existem para contar a história do nosso país a partir do que comemos. Nossa comida é afro-indígena com influências europeias. Dos que aqui já viviam, preservamos o consumo de pescados e de mandioca em suas diferentes formas. Tapiocas, açaí, moquecas e pirões não me deixam mentir.
Muitas das palavras que permeiam nossas cozinhas existem para contar a história do nosso país a partir do que comemos. Nossa comida é afro-indígena com influências europeias.
Com a chegada de africanos escravizados, essa diáspora que em nada nos orgulha, sementes e preparos fincaram raízes aqui. Dendê, quiabo, café, feijão fradinho, melancia, maxixe, inhame… Os menos avisados pensam que são frutos brasileiros e são surpreendidos quando descobrem que vieram da costa. E que também de lá, de onde o sol brilha forte, costumes como caldos, fermentações e macerações descobertas ou inventadas nos permitem beber cafezinho coado, vinhos e cervejas, e comer pães bem assados em fornos ancestrais. Para te deixar com água na boca, conto que com eles vieram mingaus, canjicas, mungunzá, sarapatel, caruru, xinxim, cuscuz (sim, o cuscuz é uma técnica africana), vatapás, cozidos e muito mais.
Essa busca por domínio de terras férteis para plantações de cana-de-açúcar fortaleceu a economia das grandes navegações entre os continentes e da construção de engenhos por vários estados. E não tem como falar de engenho e não citar a “boazinha” mais “marvada” do Brasil: a cachaça ou pinguinha. Com europeus, aprendemos a consumir açúcar através de compotas, geleias, bolos, tortas e docinhos. Pernambucanos e mineiros entendem muito bem de quitandas, rapaduras e doçarias portuguesas. Baianos e cearenses são mestres nas misturas com frutas nativas. Licores de jabuticaba e jenipapo são bebidas festivas assim como cajuadas, figadas, mangadas, goiabadas e tantas outras “adas” que encontramos nas vendas.
Comida da terra, da costa, do reino. Comida de festas católicas e de terreiros de religiões de matriz africana encantam nossos paladares. Somos comensais de merenda, farnel, matula ou marmita. Especialistas em “PF” (lê-se pê éfe), o amado prato feito do brasileiro, que vai mudando de nome de acordo com a região. Comercial, executivo, quentinha, prato do dia, à la minuta. Arroz e feijão é de lei, tem sempre. E com a duplinha mais famosa vêm os acompanhamentos como fritas, salada, espaguete ao sugo, farofa e as misturas: bife de carne, filé de frango, ovo frito, carne de panela, fígado acebolado, bisteca de porco.
Passei muito rápido por um preparo que diz muito da nossa cultura alimentar: a farofa. Cada família tem a sua receita – sequinha ou molhadinha, com bacon ou sem, com farinha de mandioca torrada grossa ou fina, com farinha de milho ou de pão, com feijão, com cebola, com alho. Puxada no óleo de soja, no azeite de dendê ou na manteiga de garrafa. Tem coisa mais brasileira do que farofa?
Eu espero que esse texto te encha a boca d’água, te dê vontade de ir para a cozinha preparar algo gostoso, que te faça passear por barracas e gôndolas com o olhar mais atento e que, acima de tudo, te faça sentir muito orgulho de ser brasileiro. Sim, pode continuar comendo macarronadas suculentas nas cantinas italianas, sopas de cebola ao estilo francês, sushi e sashimis asiáticos, pokes vietnamitas, tacos mexicanos, hambúrgueres americanos, esfihas árabes, yakisobas, croissants e temakis.
Mas não deixa de enaltecer nosso pão de queijo, picadinho, galinhada, baião de dois, feijão tropeiro, galinha caipira, pingado de boteco, os peixes dos nossos rios e mares, nossas frutas nativas como caju, cajá, cambuci, pitanga e tantas outras. Porque cultura alimentar é Brasil, mas também é mundo e assim sigo, viajando e comendo. Pesquisando, coletando histórias, registrando saberes e construindo memórias por onde passo.
E para finalizar, peço licença para trazer um trecho de “Disseram que voltei americanizada”, imortalizada na voz de Carmen Miranda (1909-1955): “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.
Patty Durães é pesquisadora de culturas alimentares, especializada na influência das heranças afrodiáspóricas na culinária brasileira. Com experiência em instituições como Masp, Itaú Cultural, Sesc, Senac e Sebrae, autora do curso Muito Além da Boca, e palestrante do TEDx São Paulo. Em 2024, foi professora convidada na Dillard University, em New Orleans, Estados Unidos, para falar de comida brasileira.
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