“As buganvílias estão bonitas”, conto inédito de Natália Borges Polesso

31/03/2023

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Por Natalia Borges Polesso 
ilustrações Pri Wi

— Olha essas buganvílias! Estão muito bonitas nessa luz da manhã.

— Verdade – Magali fez uma careta. – E nem é primavera ainda. Se adiantaram – suspirou.

— Que animação é essa?

— Ah, não sei, acordei com uma sensação estranha. – olhou para a Diana e sorriu – mas já vai passar.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Naquela manhã, Diana e Magali saíram para trabalhar, como faziam todas as manhãs. Sempre se encontravam na parada de ônibus em frente à praça, de onde podiam ver, caindo pelo muro da igreja matriz, as flores cor de rosa. O nariz de Diana doía quando o ar gelado entrava. Usava as mãos, devidamente enluvadas, para cobrir as orelhas. Tinha os ouvidos sensíveis. Magali gostava dela e todos os dias, quando a via na parada de ônibus, planejava lhe dizer isso, mas nunca conseguia. Diana também gostava de Magali, mas era tímida demais para dizer qualquer coisa. Conversavam sobre trivialidades todas as manhãs e trocavam alguns sorrisos encorajadores.

— Fim de agosto.

— Ainda bem! Logo vai esquentar.

— Mas sempre demora mais do que a gente imagina.

— Verdade.

Riram

O ônibus chegou e acabaram por se separar. Diana se sentou num lugar vago, na janela. Magali ficou em pé, mas atrás. O dia passou lento e estranho. Trabalhavam numa fábrica de fusíveis e termostatos, trabalho minucioso, que exigia muita paciência, delicadeza e exatidão. O trabalho enfadonho, a vida monótona dava a elas a impressão de que sempre viviam o mesmo enorme dia.

— Olha essas buganvílias! Estão mais bonitas ainda nessa luz da manhã.

— Estão mesmo! E nem é primavera ainda.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Naquela manhã saíram para trabalhar, como em todas as manhãs faziam, e se encontraram na parada de ônibus em frente à praça. O nariz dela doía quando o ar gelado saía. O ônibus estava demorando demais e o frio fazia com que Diana desse pulinhos sobre a pedra fria da calçada.

— E se formos a pé? Caminhamos um pouco e, ao menos, nos esquentamos – Magali sugeriu.

— A pé? Será? – olhou o relógio e estranhou que fosse tão cedo ainda – Pode ser, eu acho, fazer algo diferente.

O vento castigava. Os dedos de Magali estavam rachados nas juntas e a lã grossa das luvas grudava um pouco nas feridinhas, provocando mais dor. Dentro das botinhas de couro, os pés dela estavam brancos, gélidos. Pensou que um escalda pés seria a glória. Faria um à noite, quando chegasse em casa, e prometeu a si mesma que na manhã seguinte colocaria meias mais grossas. E depois pensou que se fizesse aquilo, teria que comprar sapatos maiores.

— Ideia ruim essa de ir a pé.

— Ao menos é a rua do ônibus, quando ele passar, a gente ataca – Magali ficou um pouco frustrada, queria muito tentar algo diferente, tentar dizer algo.

Um minuto depois, o ônibus passou. Entraram e conseguiram se sentar juntas. Magali tirou as luvas e Diana viu suas mãos lanhadas.

— Meu deus, o que aconteceu.

— É do frio, eu sempre tenho isso.

— Eu tenho uma pomada aqui, pra assadura mesmo – abriu a bolsa, e antes que Magali pudesse dizer algo, já tinha pegado sua mão com delicadeza e espalhado uma generosa quantidade de pomada na pele.

— Por que tu tem isso na bolsa?

— Eu passo na boca, meus lábios são sensíveis.

— Tá bom assim, obrigada – Magali ficou olhando os lábios de Diana e um calor bom invadiu seu corpo, sentiu seu coração se aquecer junto com os pés e todo seu corpo luziu. Se despediram ao chegar no portão da fábrica e cada uma foi para o seu setor.

— Olha essas buganvílias! – Diana hesitou com algum estranhamento, mas depois continuou – não cansam de ser bonitas.

— É, não cansam – Magali fez uma careta, como se tivesse sonhado com aquilo, mas não disse nada.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Começavam a ter uma sensação esquisita, como se há muito fizessem aquele mesmo ritual de observar as flores cuja cor imitava seus lábios.

— Fim de agosto. Estou velha.

— Já vai esquentar, e tu não está velha.

— Estou sim, olha as minhas mãos.

Mostrou-as.

— Esse horário nunca tem ninguém na cidade.

— É cedo demais.

— Que horas são?

— Não tenho relógio, mas deve ser seis e pouquinho, eu saí de casa umas quinze pras seis, e leva uns 15, 20 minutos pra chegar.

— Tu vem a pé?

— Aham, só quando tá chovendo demais, que daí eu pego a lotação até ali na esquina.

— Entendi. Tu mora ali pra baixo do parque, então.

— Mais ou menos, é mais pra dentro do bairro, na parte mais pra baixo.

— Nossa, é um morrão.

O ônibus demorava a passar.

— E se formos a pé? Caminhamos um pouco e, ao menos, nos esquentamos.

— Pode ser, fazemos algo diferente. Dizem que fazer algo diferente é bom, porque ajuda a cabeça a ficar jovem.

Na metade da primeira quadra ela reclamou que estava velha demais e que os pés doíam.

— Tem uma padaria logo em frente, podemos entrar e tomar um café.

— Que horas são?

— Não sei. É quase primavera.

— Isso sim é bom.

— Às vezes eu tenho a impressão de que a primavera nunca vai chegar – ficou de repente soturna. – Que horas tu saiu de casa?

— Não lembro. Estava bem frio. Mas sempre que a gente se encontra aqui, parece que fica menos ruim viver – tentou animar a outra.

Se olharam e sorriram sem graça, depois continuaram andando até a padaria. Magali tirou a luva para verificar as frieiras. Colocou a luva de volta rapidamente. Um de seus dedos tinha se desprendido da mão. Ela quis pedir ajuda, mas era tímida demais para dizer qualquer coisa. Pediram dois cafés com leite e dividiram um pão na chapa. Mais quentes, seguiram de volta para o ponto de ônibus. A cerração começou a baixar e muito rapidamente a névoa encobriu a rua toda. Entraram no ônibus silenciosas.

— Olha essas buganvílias! Estão muito… bonitas – Diana deixou escapar.

— Bom dia – Magali se assustou um pouco, depois disse – é verdade! E nem – parou de falar.

Era um dia ensolarado, mas muito frio. Começavam a ter uma sensação esquisita, como se se conhecessem há muito tempo. Não eram mais jovens mesmo. Estavam muito cansadas. Ficaram em silêncio. O ônibus demorava a passar. Estavam quietas, até que uma disse:

— Parece que a gente já… nada.

— Fala.

— Prefiro esperar o ônibus. Tenho a sensação de que não vai demorar hoje.

— Está bem. Mas por que diz isso?

Ficou um tempo calada.

— Tem uma padaria logo em frente, podemos entrar e tomar um café.

— Eu sabia que tu ia dizer isso.

— Como sabia? Nem eu sabia.

— Eu sabia. Porque tenho a sensação de que estamos nos repetindo. De que estamos vivendo o mesmo dia, há tempos.

Ela se sentou no meio-fio e tirou uma das botinhas com muita dificuldade. Não entendeu quando viu apenas o toco de sua canela. O pé estava dentro da bota. Branquinho. Diana viu. Ela ficou sentada um tempo, olhando para o pé dentro da bota. Magali não sentia dor, nem vontade de chorar, nem nada. Não entendeu. Estava cansada. Olhou para Diana, que cobria as orelhas com as mãos meio retorcidas, mas devidamente enluvadas.

— É que… tu sabe o que aconteceu. A gente –

— Essas buganvílias! – Diana hesitou com algum estranhamento, mas depois continuou – estão aqui.

— Verdade. Sempre estão aqui, nunca mudam – Magali fez uma careta.

— Será que nada nunca muda? Que dia é hoje? Queria que já fosse verão. Estou mofando – mostrou um pedaço do braço mofado.

— Eu já não sei mais. Tenho a sensação de que – e se impediu de falar o que sentia – não sei.

— Não lembro também. Será que estamos mesmo?

— Não diga.

— Eu acho que sim.

— Tu lembra o que aconteceu?

— Não lembro de nada.

— E agora? Não tem uma barca que nos leve?

— Dizem que a morte é como nascer, que a gente não lembra de nada, do trauma, da dor, de nada do que aconteceu antes, que precisamos nos desprender para que tudo aconteça como tem que acontecer.

— Dizem quem?

— Como assim?

— Tu disse “dizem”… quem dizem?

— Não sei. Dizem. Eu lembro que disseram.

— Olha as buganvílias!

— Estão bonitas – parou.

— Não, olha, não estão mais ali.

— É verão?

— Não sei.

— Vamos atravessar?

Natalia Borges Polesso é escritora e autora de Amora (Não Editora, 2015), vencedor do prêmio Jabuti de 2016 na categoria Contos e Crônicas, Controle (Companhia das Letras, 2019) e A extinção das abelhas (Companhia das Letras, 2021), finalista do prêmio Jabuti de 2022 na categoria Romance Literário, entre outros livros.

Pri Wi é artista visual e, em 15 anos de ilustração, já trabalhou com várias mídias: animação, editorial, literatura e trabalhos autorais. Atualmente tem se dedicado ao lápis de cor em seus acabamentos, inclusive em histórias em quadrinhos.

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