DE MACABÉA A PACARRETE | Depoimento da atriz Marcélia Cartaxo

01/05/2023

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Prestes a celebrar 60 anos de vida, atriz e diretora paraibana Marcélia Cartaxo reflete sobre protagonismo feminino, estereótipos e maternidade

Por Luna D’Alama

Leia a edição de maio/23 da Revista E na íntegra

Filha de uma costureira com um agricultor, Marcélia Cartaxo nasceu e cresceu em Cajazeiras, no interior da Paraíba. Aos 12 anos, encontrou o teatro e, de maneira improvisada, na rua, revelou-se numa trupe que percorreu o país. Foi nessa itinerância, em São Paulo, que a atriz foi descoberta, aos 19 anos, pela cineasta Suzana Amaral (1932-2020), que a convidou a interpretar a protagonista Macabéa no filme A hora da estrela (1985), baseado na obra homônima de Clarice Lispector (1920-1977). Em seu papel de estreia na tela grande, Marcélia foi indicada ao prêmio de melhor atuação no Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em 1986 – e venceu, trazendo um Urso de Prata para o Brasil.

Depois de um período em São Paulo, onde morou com a amiga e atriz Rosi Campos, residiu no Rio de Janeiro (RJ), e hoje vive em João Pessoa. Desde o longa-metragem que a consagrou, vem trabalhando em dezenas de outras obras premiadas, como Madame Satã (2003) e O céu de Suely (2006), ambas dirigidas por Karim Aïnouz, além de Batismo de sangue (2006, de Helvécio Ratton), Pacarrete (2019, de Allan Deberton), Helen (2021, de André Collazzo) e A mãe (2022, de Cristiano Burlan).

Pelo papel em Pacarrete, Marcélia foi eleita como melhor atriz nos festivais de cinema de Gramado e Vitória, além de conquistar prêmios no Festival Sesc Melhores Filmes e no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. E, pela Maria de A Mãe, levou um Kikito em Gramado e mais uma estatueta em Vitória, em 2022. Na televisão, a atriz participou de novelas da Manchete e atuou em Mico preto (1990), da Globo. Em 2003, Marcélia incursionou pela direção, com o curta-metragem Tempo de ira, obra que entrou na seleção de Gramado. Este ano, estará na série Cangaço novo, da plataforma Amazon Prime Video. Na produção, gravada na Paraíba e no Rio Grande do Norte, ela interpreta uma líder social, tia de um dos protagonistas. “É como se fosse um Robin Hood nordestino: a gente rouba dos ruralistas para dar aos pobres”, resume. No ano em que completa seis décadas de vida (em 27 de outubro), Marcélia fala sobre momentos e personagens marcantes da carreira, protagonismo feminino, estereótipos, maternidade e novos voos que ainda pretende alçar.

telona

Sou muito atraída pelo cinema. Minha experiência toda vem dele, embora, quando fiz Macabéa em
A hora da estrela, eu ainda não tivesse experiência nenhuma com a câmera. Suzana [Amaral] me viu no teatro e disse que eu era muito sensível, não tinha gestos largos. Porque, no teatro, você tem que se expandir para conseguir se comunicar com a plateia, que [muitas vezes] está te vendo distante [do palco]. Quando ela me viu nessa peça, eu fazia uma personagem bem contida, um pouco próximo do que fiz depois com Macabéa. O cinema brasileiro, aliás, tem uma leva que me deixa extremamente orgulhosa, como Central do Brasil [de 1998, dirigido por Walter Salles], Madame Satã [2002, de Karim Aïnouz], A história da eternidade [2014, de Camilo Cavalcante], Que horas ela volta? [2015, de Anna Muylaert], A vida invisível [2019, de Karim Aïnouz], Helen [2021, de André Collazzo] e Paloma [2022, de Marcelo Gomes]. Gosto de ver filmes que falam de política, de questões sociais, humanas e familiares. Assisto ao Canal Brasil, à TV Cultura, a reportagens e documentários sobre todos os temas.

protagonismo

Acho que nós, mulheres, estamos avançando bastante, ocupando espaço em todas as áreas do audiovisual, na atuação, na parte técnica, na direção. Estou muito feliz. É extremamente importante e necessário alcançarmos esse espaço e conquistarmos nossos direitos. Em todos os sentidos, a mulher é um ser muito sensível. E com essa sensibilidade e habilidade que temos, conseguimos tocar o coração das pessoas e fazer com que todos respeitem nosso trabalho. Algo que me impressionou positivamente foi o desempenho da [roteirista de A mãe], Ana [Carolina Marinho], lá dentro do Jardim Romano [na zona leste de São Paulo], numa casa para guardar equipamentos, [que virou] um espaço de encontro com crianças, jovens e idosos. Foi por meio disso que a gente teve acesso àquele lugar.

maternidade

Sempre tive a sorte de não ser invadida no meu espaço [com pressões familiares ou sociais para ser mãe]. Até uns 30 anos, tive o desejo de ter filhos, mas sempre adiei, viajava muito. Achava que isso poderia me atrapalhar e, nos momentos em que pegava algum trabalho, ficava muito tempo fora. Tive um casamento que durou 12 anos, mas nessa relação não tinha muita compreensão de dividir a questão do trabalho e [de lidar com a] da ausência. Passou o tempo, não me casei mais e fui muito feliz. Porque já tinha a minha família, meus pais, que estavam ficando idosos, [e quatro irmãos]. Tenho sobrinhos, e um deles, hoje com 34 anos, tem esquizofrenia, depende da minha irmã, e eu os ajudo. Também já sou tia-avó de uma moça de 17 anos. Os filhos não vieram, então não quis forçar a barra com nada nem ninguém. Se [um dia] eu puder, mais para a frente, quem sabe adoto [alguma criança]. Há tantas delas necessitadas de educação, saúde, cuidados e de uma convivência mais feliz.

perdas

Para interpretar Maria em A mãe, tive um encontro com [integrantes do movimento] Mães de Maio [rede de mães, familiares e amigos de vítimas de crimes cometidos por agentes do estado de São Paulo, em maio de 2006], que foi muito forte. Quando aquelas mães perderam seus filhos, todas ficaram doentes, perderam as forças para a vida. E não só as mulheres, mas os pais e demais filhos também. Na estreia do filme [no CineSesc, em outubro de 2022, durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo], foi maravilhoso ver todas aquelas mães reunidas ali. Além de terem passado por essas perdas, elas foram totalmente desassistidas pelo Estado, só têm umas às outras para encontrar forças. Elas veem outras mães falando: “Meu filho estudou, se formou, teve filho, tem família”. Agora na velhice, quando precisam de ajuda, da luta dos filhos, eles não estão mais aqui. Tudo isso faz falta. É muito doloroso você imaginar que esses rapazes, por quem suas mães fizeram todo o esforço para trabalhar, ganhar dinheiro e comprar comida, [estão mortos]. Contracenei com a Débora Silva [fundadora do movimento], e foi uma das cenas mais lindas que já fiz. Ela conta como perdeu o filho e como entrou na luta após ter sonhado com seu filho dizendo: “Agora, mãe, a senhora tem que enfrentar, ajudar outras pessoas”.

violência

[Quando foi à Alemanha, em 1986, para receber o Urso de Prata no Festival de Berlim, Marcélia foi atacada num ônibus por um homem antissemita que achou que ela fosse judia]. Vejo [a escalada da violência no Brasil e no mundo] com muito medo. Medo às vezes de ir para a rua. A gente fica o tempo todo tentando se proteger. Com a internet, a gente está conectada com o mundo. Então tudo que acontece em qualquer lugar já é noticiado, como esses atentados terroristas no Rio Grande do Norte [ocorridos em março contra ônibus, prédios públicos, unidades de saúde e supermercados], esses crimes em escolas, que antes aconteciam só lá fora, mas hoje em dia têm aqui. [Quando gravou A mãe, no Jardim Romano] ficção e realidade se misturaram muito. Não podíamos passar em algumas ruas, porque não estavam liberadas. Estavam sob domínio do tráfico, que ficava muito incomodado [com a nossa presença] quando a gente precisou gravar, por exemplo, cenas em que havia policiais e viaturas, além da nossa segurança [real]. A cena que eu faço com o traficante é extremamente realista. Só quem mora ali é que sabe. Você se depara com o Brasil desassistido, as casas coladas umas nas outras, a falta de saneamento, crianças brincando no esgoto. Por outro lado, o rap [Antígona, feito pelo ator Dustin Farias e reproduzido nos créditos finais] conta a realidade daqueles jovens, que não querem ser vistos como bandidos, mas como estudantes e trabalhadores.

estereótipos

Ao dirigir meu primeiro curta-metragem [Tempo de ira, de 2003, em parceria com Gisella de Mello] pensei exatamente isto: “Quero dirigir e atuar para poder diversificar meus personagens”. Porque, senão, vou ficar só nessa batida, fazendo [papéis de] nordestinas. Na época em que morei no Rio de Janeiro, cheguei a fazer exercícios para perder o sotaque. Acho que, quando você interpreta um personagem, independentemente do sotaque, do que for, ele pode ser grande, tocar o coração das pessoas através do sentimento e do que realmente se deseja contar. Já fiz prostituta, freira, bailarina, imigrante. Em Madame Satã, tive a oportunidade de viver a garota de programa Laurita, uma mulher para cima, para frente – bem distinta dos personagens muito sofridos que sempre me chamavam para fazer. Eu dizia ao Karim: “Não vou chorar, podem me bater, me matar, não vou chorar”. Ela era uma mulher muito forte, que ao mesmo tempo dava muita força ao Madame Satã [protagonizado por Lázaro Ramos], aguentava os trancos. Ainda há muitos estereótipos e preconceitos [contra os nordestinos]. Somos um povo trabalhador, construímos Brasília, São Paulo [e várias outras cidades do país].

idade

Tenho recebido muitos convites para falar sobre a questão do idoso [tema do filme Pacarrete, por exemplo], como é que se recepciona uma pessoa nessa idade. Eu, a atriz Soia Lira e [o diretor] Allan Deberton fomos para a China lançar o filme num festival gigantesco em Xangai, em 2019. Concorremos ao prêmio e eu estava bem cotada. Fiquei impressionada que, na língua deles, me chamavam de “senhorinha”, achando que eu tinha uns 70 anos [por conta da personagem]. Na internet, dizem que já sou avó, por causa do meu papel em Helen [de 2021, dirigido por André Collazzo]. Agora, interpreto mãe, tia, avó.

voos

Sou muito grata por esse olhar especial pelo meu trabalho, por esse espaço e visibilidade. Quando fui à [46ª] Mostra [Internacional de Cinema em São Paulo], havia uma fila enorme [para ver A mãe], e pensei: “Nossa, que orgulho!”. Tenho ideias de direção, mas ainda não as coloquei no papel. Também recebo convites para dirigir, com roteiros de outras pessoas. Acho essa uma experiência incrível, mas, quando um filme está em processo, sempre me vem a vontade de atuar, de fazer determinada personagem. E ainda tenho o desejo de que aconteça de novo comigo [uma indicação e uma vitória internacionais, como no Festival de Berlim]. Seria importante para mim e para o cinema brasileiro. Torço muito para que filmes nacionais alcancem essa visibilidade mais ampla. O Urso [de Prata] eu já ganhei, mas quero alçar outros voos nos grandes festivais.

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