ECOS DE UM GÊNIO ATEMPORAL | Perfil do escritor Lima Barreto

30/11/2022

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Confira a edição de dezembro/22 da Revista E na íntegra

O brilhantismo literário de Lima Barreto e a dura realidade que conduziu sua vida e obra 

Por Manuela Ferreira

Viver no Rio de Janeiro do início do século 20 significava ter grandes chances de adoecer em meio a epidemias de febre amarela, gripe espanhola, peste bubônica e varíola. Esta, por exemplo, vitimou, somente em 1904, cerca de 3.500 moradores da então capital federal. Outras enfermidades ceifavam talentos artísticos cujos destinos eram definidos ao nascer no seio da pobreza e da marginalidade. À população negra estava designada uma existência ainda mais excludente, mesmo com o movimento abolicionista e o governo republicano que emergiam. Esse cenário hostil e desigual viu surgir, porém, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), definido pelo historiador Caio Prado Júnior (1907-1990) como “o maior e mais brasileiro dos nossos romancistas” – e um gênio marcado pelo racismo e pelas tragédias que transpassaram sua trajetória.

“Lima Barreto foi um ferrenho denunciador da discriminação étnica e de classe, do colonialismo cultural, do bacharelismo e de outros males ainda reinantes na sociedade brasileira. Isso é constatado tanto em sua obra ficcional quanto nos artigos e crônicas de sua obra jornalística. E seu posicionamento foi a causa principal do boicote a seu trabalho, por muito tempo, e de sua morte prematura, aos 41 anos”, afirma o pesquisador Nei Lopes. A trajetória do autor de Clara dos Anjos (1948), nascido em 13 de maio de 1881, sete anos antes da promulgação da Lei Áurea é, portanto, pontuada por obstáculos dolorosos que seguem evidenciando sua brilhante resiliência e espírito de vanguarda.

LABIRINTOS PARTIDOS

Filho de João Henriques de Lima Barreto e Amália Augusta Pereira de Carvalho, tipógrafo e professora, respectivamente, o pequeno Afonso foi alfabetizado em casa, pela mãe – que morreu de tuberculose quando o garoto tinha oito anos. Seu primeiro biógrafo, Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), autor de A Vida de Lima Barreto (1952), aponta uma particularidade determinante na vida do escritor: João Henriques era próximo aos liberais partidários da monarquia, em especial de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto (1936-1912), padrinho do escritor. Tal proximidade permitiu ao jovem ingressar no prestigioso Colégio Pedro II, de alto padrão para a época. Na instituição educativa, pôde sentir, diariamente, a origem humilde contrastar com a dos colegas secundaristas oriundos da elite carioca – todos brancos.

Anos antes, João Henriques foi nomeado almoxarife das Colônias de Alienados da Ilha do Governador [que funcionaram de 1888 a 1924], obrigando a família a se mudar para as proximidades dos anteriormente chamados manicômios – uma imagem recorrente na vida e obra do escritor, conforme relatou a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz na biografia Lima Barreto – Triste Visionário (Companhia das Letras, 2017). “Em cima de um dos morros da Colônia São Bento se destacava a casa dos Barreto, agora arranjada como um novo lar. (…) O que o encantava, mesmo, era o terreno que cercava a residência e o bambuzal verde. O certo é que os arredores da ilha serviram de inspiração para seu romance mais conhecido, Triste Fim de Policarpo Quaresma (publicado pela primeira vez em 1911, na forma de folhetim). O Curuzu, o lugar para onde o protagonista da história se muda, apresenta muitos paralelos com a imagem que Lima guardou do local de infância”, descreve a autora. 

Ao entrar na Escola Politécnica, em 1897, Lima Barreto já colaborava com jornais e outras publicações, como a revista Fon-Fon. O curso de engenharia, no entanto, seria interrompido antes da conclusão. Aos 21 anos, testemunhou um intenso surto psicótico do pai, de quem dependiam financeiramente os três irmãos, menores de idade. A grave doença mental de João Henriques o fazia oscilar entre picos de euforia e meses de profundo silêncio, e representou um trauma na vida do futuro escritor – que mergulharia no alcoolismo pouco tempo depois e experimentaria, ele próprio, duas internações em instituições psiquiátricas. 

OLHARES TENAZES

A saída econômica para a família veio com a admissão de Lima para o cargo de escrevente no quartel-general do antigo Ministério da Guerra. O ano era 1903, e o escritor passou a se dedicar ao serviço público à medida em que conquistava visibilidade como jornalista – especialmente pela veia irônica, contundente. Sobre a passagem pelo ensino superior, por exemplo, escreveria uma crônica mordaz, publicada no livro póstumo Bagatelas (1923). “E todos eles, ignorantes e arrotando um saber que não têm, vêm para a vida, mesmo fora das profissões a cujo exercício lhes dá direito o título, criar obstáculos aos honestos de inteligência, aos modestos que estudaram, dando esse espetáculo ignóbil de diretores de bancos oficiais, de chefes de repartições, de embaixadores, de deputados, de senadores, de generais, de almirantes, de delegados, que têm menos instrução do que um humilde contínuo; e, apesar de tudo, quase todos mais enriquecem, seja pelo casamento ou outro qualquer expediente, mais ou menos confessável.”

Lima Barreto assinou centenas de crônicas e contos nos jornais Correio da Manhã, Gazeta da Tarde e Jornal do Commercio até a estreia literária, em 1909, com o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Na obra, fazia uma sátira aos principais nomes do jornalismo carioca. Entre 1910 e 11, publicou os contos O Homem que Sabia Javanês e A Nova Califórnia, tidos como expoentes do gênero. Nas obras, denunciava os falsos valores da elite política e intelectual, que considerava cínica, provinciana e vulgar. Tal como Machado de Assis (1839-1908), Lima Barreto somou a literatura à atuação na imprensa. Os escritores possuíam outros pontos em comum: ambos eram afrodescendentes, retratavam um Rio de Janeiro que se modernizava, eram críticos ferrenhos da atividade jornalística, apreciavam a vida boêmia e faziam uso do humor em suas narrativas.

ROTAS ANTAGÔNICAS

Para além das convergências, Lima e Machado tiveram prestígio e aceitação social díspares. O autor de Dom Casmurro (1899), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), foi reconhecido, ainda em vida, como um dos nomes fundamentais da literatura em língua portuguesa. Lima Barreto, por sua vez, era visto como ressentido, amargo e problemático. Quando tentou filiar-se à mesma ABL, em 1917, teve o anúncio da candidatura rejeitado antes mesmo de se tornar oficial, em evidente boicote. As diferenças entre duas figuras tão potentes se tornaram explícitas em 1921, quando o escritor Austregésilo de Athayde (1898-1993) assinou uma carta aberta – elogiosa – destinada a Lima Barreto. Publicado no periódico A Tribuna, Athayde procurava, em seu texto, delimitar distinções entre as duas obras.  

A resposta de Lima Barreto, entretanto, foi categórica: “Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet – vá lá; mas Machado, nunca! Até em Turguêniev, em Tolstói podiam ir buscar os meus modelos; mas, em Machado, não! (…) escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto”, desabafou Lima. A carta-resposta, publicada na década de 1940 na Revista do Brasil, é parte do acervo de missivas do Instituto Moreira Salles (IMS).


Litografia de Pieter Godfred Bertichem / Acervo Biblioteca Nacional / Domínio público

A FLOR E O ESPINHO

Após a primeira internação, em 1914, Lima Barreto seria aposentado compulsoriamente do serviço público. Àquela altura, era conhecido por episódios desencadeados pelo alcoolismo. Circulava pelo subúrbio carioca e pelos cafés literários com a mesma destreza, apesar do estigma dado aos portadores de transtornos mentais à época. No final de 1919, passou a se corresponder com as principais figuras do modernismo em São Paulo, como Mário de Andrade (1893-1945) e Di Cavalcanti (1807-1976). Já com Monteiro Lobato (1882-1948) estabeleceu uma troca de cartas consistente a partir de 1918.

Em 1920, um novo surto. Levado ao Hospital Nacional de Alienados [em atividade entre 1841 e 1944], às vésperas do Natal, permaneceu internado por dois meses. Ao deixar a instituição de saúde, Lima voltou a publicar na imprensa, escrevendo sobre questões de seu tempo. Em seus textos, ele criticava o futebol [herança dos ingleses], os estrangeirismos na língua portuguesa [provenientes do inglês e do francês] e os projetos de reforma urbana iniciadas pelo presidente Rodrigues Alves (1848-1919).

Mesmo não participando da Semana de Arte Moderna de 1922, Lima foi convidado pelo historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) para resenhar a revista Klaxon, dedicada à difusão das ideias fomentadas pelos modernistas paulistas. A crítica – encarada como negativa – desencadeou forte reação. Na edição seguinte da Klaxon, ele foi chamado, em tom pejorativo, de “escritor de bairro”, em texto cuja autoria é atribuída a Mário de Andrade. Uma injustiça final entre todas as que experimentou Lima Barreto. 

Vozes livres

Seleção de obras, publicadas em vida e postumamente, atesta a importância de Lima Barreto

Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909): Em seu romance de estreia, Lima explora temas como racismo e exclusão social. Embora tenha sido publicada em meio a um certo “otimismo” pós-Lei Áurea, a história de Isaías mostra um cotidiano bastante cruel para os negros. Apesar de o protagonista ser um jovem culto, isso não basta para que ele seja inserido na sociedade. Na introdução da versão editada pela Penguin e Companhia das Letras, em 2010, o crítico Alfredo Bosi defende que esse é um dos grandes romances da literatura brasileira. 

Diário do hospício & O cemitério dos vivos (1953): Publicada postumamente, em 1953, essa obra é dividida em duas partes (autobiografia e ficção), resultado da experiência de Lima como interno no Hospital Nacional de Alienados. Relançada em 2017 pela Companhia das Letras, a edição conta com notas e imagens inéditas, que oferecem uma nova contextualização do ambiente manicomial, além de incluir, ao final, uma reportagem de Raymundo Magalhães, datada de 1920.

Contos completos de Lima Barreto (Companhia das Letras, 2010): O volume reúne todos os contos publicados em vida por Lima Barreto, resgatados por meio de pesquisa em edições originais, jornais e revistas da época, e mais dezenas de inéditos, retirados de seus manuscritos. A organização, apresentação e notas são da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.

Passado e futuro

100 Anos Sem Lima Barreto, no Sesc Mogi das Cruzes, lança luz sobre o legado do escritor

Lima Barreto inovou em estéticas e temáticas que anteciparam, em algumas décadas, a crítica elaborada pelo modernismo da Semana de 1922. No centenário do evento-marco das artes no país, o legado do literato carioca também vem sendo celebrado e recuperado por estudiosos do pensamento e da vasta produção do autor. No Sesc Mogi das Cruzes, o projeto 100 Anos Sem Lima Barreto reúne diversas ações até dia 9/12. 

MOGI DAS CRUZES

Lima e os novos Barretos

Composto por artistas mogianos – Jô Freitas, Aline Piovan, Juruá, Pamela Carmo, Poeta Seu Zé, Edvan Mota, Luan Charles e Helô Ferreira –, o sarau discute a importância do escritor no contexto atual. Com microfone aberto ao público, os artistas navegam pela poesia e a música de maneira cenopoética
para evidenciar os novos “Barretos” partindo das perguntas: Quem são os jovens “barretianos”? Como as obras do escritor refletem hoje? 

2/12, sexta, às 20h. GRÁTIS. 


Integrantes do Sarau Lima e os novos Barretos apresentam-se no Sesc Mogi das Cruzes. Foto: Anubis

Lima Barreto na ideia e brasas serenas no lápis

Conduzida pelo escritor e historiador Allan da Rosa, a oficina online instiga uma reflexão sobre projetos nacionais, sonhos, lucidez e delírios a partir das análises políticas, crônicas, críticas literárias e trechos dos diários de hospício escritos por Lima Barreto.

6 a 9/12, terça a sexta, das 19h30 às 21h30. GRÁTIS. Inscrições online. 

Clara dos Anjos, de Lima Barreto

Com base no romance de 1948, o Clube da Leitura de Sesc Mogi das Cruzes discute como se constrói uma personagem para alertar sobre os riscos da ingenuidade numa sociedade racista e injusta. O encontro é conduzido pelo poeta e escritor Cuti, pseudônimo de Luiz Silva.

9/12, sexta, das 19h às 22h. GRÁTIS. Inscrições online. 

Rua Rogério Tacola, 118, Socorro, Mogi das Cruzes.

Programação: sescsp.org.br/100anossemlima

SESC DIGITAL

Tragam-me a cabeça de Lima Barreto

O espetáculo protagonizado por Hilton Cobra começa após a morte de Lima Barreto e acompanha uma imaginária sessão de autópsia na cabeça do escritor, conduzida por médicos eugenistas, defensores da higienização racial no Brasil. O registro em vídeo é resultado da live realizada pelo Sesc São Paulo no dia 12/7/2020, transmitida pelo canal do Sesc São Paulo no YouTube. 

Assista: bit.ly/cabeca-lima

A EDIÇÃO DE DEZEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, discutimos como os cursos livres de EAD (educação a distância) democratizam o acesso ao conhecimento, aproximam especialistas em diversas áreas de alunos interessados em se capacitar em novos saberes, e com isso ampliam o repertório cultural. A reportagem principal de dezembro aproveita o crescente número de matriculados em espaços de educação a distância, principalmente depois da pandemia, para apresentar a plataforma EAD do Sesc São Paulo, onde estão disponíveis, gratuitamente, 13 cursos livres.

Além disso, a Revista E de dezembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que mostra como manuscritos borram a fronteira entre documento e obra de arte, propondo um olhar possível por entre frestas do tempo; uma entrevista com o diretor Miguel Rubio Zapata sobre as convergências do teatro peruano com o Brasil e a defesa da criação coletiva como atitude, e não método; um depoimento com a atriz Julia Lemmertz sobre os 40 anos de carreira e a dedicação ao teatro; um passeio visual por imagens que celebram o legado do pensador utópico Darcy Ribeiro no ano em que ele faria um século de vida; um perfil do romancista Lima Barreto, morto há 100 anos e um dos mais brilhantes nomes da nossa literatura; um encontro com o canto sagrado da cantora Virgínia Rodrigues; um roteiro por cinco espaços culturais da capital paulista que mantêm lojas e livrarias abertas ao público; um conto inédito da escritora e poeta Eliane Potiguara; e dois artigos que refletem sobre a coragem.

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