Freud ainda explica?

28/02/2025

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Psicanalista Tales Ab’Sáber reflete sobre as crises civilizatórias da atualidade, a ascensão do autoritarismo e o advento da Inteligência Artificial 

POR LUCIANA ONCKEN

FOTOS NILTON FUKUDA

Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra

A obra do médico austríaco Sigmund Freud (1856-1939), pai da psicanálise, lançou as bases para compreensão do mal-estar da modernidade. Mas como será que essas ideias de cem anos atrás dialogam com os desafios do século 21? Tales Ab’Sáber, psicanalista, cineasta e escritor, debruça-se sobre as crises contemporâneas, abordando em suas pesquisas temas como o hiperconsumo, o narcisismo nas redes sociais e o impacto das novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial.

Com a sensibilidade de um intelectual fora dos moldes tradicionais, ou “um intelectual fora de moda”, como ele mesmo se define, o psicanalista fala, nesta Entrevista, sobre o impacto da obra de Freud na contemporaneidade, o legado de seu pai, o geógrafo Aziz Ab’Sáber (1924-2012), e reflete ainda sobre como a psicanálise, a cultura e a política se entrelaçam em um mundo marcado por instabilidades na esfera ambiental, social e psicológica.

Seria possível dizer que Freud ainda explica, em suas obras, o mal-estar na contemporaneidade?
O mundo contemporâneo é o resultado de um processo de mais de 120 anos desde a publicação de A interpretação dos sonhos [Editora Franz Deuticke, Leipzig & Vienna, 1899]. A obra sobre os sonhos foi o guia fundamental de Freud e reflete uma experiência específica: a do homem moderno, que se tornou autônomo, assumindo a responsabilidade pelo seu destino. Esse sujeito rompeu com explicações divinas sobre si mesmo e sobre a vida, mas enfrentava novas pressões advindas das relações de classe, das modalidades de trabalho, da exploração e da racionalização características do século 19. Foi nesse contexto que emergiram fenômenos humanos e psíquicos que deram origem ao pensamento de Freud e à psicanálise, entre eles a crise de histeria do século 19. Na época, essas manifestações – que hoje chamamos psicossomáticas – não eram compreendidas como expressões de sofrimento psíquico. Foi Freud quem percebeu, em sua prática clínica, que essas condições tinham raízes emocionais e estavam conectadas aos afetos, aos desejos e, frequentemente, ao campo amoroso e sexual. Freud desenvolveu sua teoria em um contexto de contradições. Por um lado, o mundo moderno valorizava a liberdade e a autonomia; por outro, impunha uma repressão sexual intensa, especialmente às mulheres. A histeria, a neurose obsessiva e a paranoia eram manifestações muito específicas daquela época. Hoje, vivemos um processo contínuo de transformação cultural, que inclui o desrecalque de muitos aspectos da sexualidade. No entanto, surgiram outras formas de controle e violência, como as que afetam as comunidades LGBTQIA+, marcadas por conflitos de identidades, discriminações e disputas de poder. Os desafios centrais do nosso tempo já não são os mesmos enfrentados por Freud. Os problemas da sexualidade permanecem, mas agora coexistem com novas questões que refletem as mudanças culturais, sociais e políticas da atualidade.

Quais são os problemas centrais da nossa época?
A questão central da nossa época, ao que me parece, está em uma crise contemporânea generalizada, de alcance mundial e marcada pela gestão de uma vida organizada pela tecnologia, que permeia praticamente toda a existência humana. Essa organização se desdobra em duas grandes frentes, que lembram, de certa forma, as dinâmicas do mundo de Freud, onde coexistiam a autonomia do sujeito e a repressão. Uma é a crise universal do trabalho, uma vez que vivemos em um mundo onde todos são pressionados a trabalhar e a encontrar meios de produzir riqueza. Contudo, essa mesma sociedade está em constante processo de liquidação do trabalho, seja eliminando postos de trabalho, com o avanço da tecnologia, seja atacando sistematicamente os direitos trabalhistas. Essa contradição gera uma pressão imensa: enquanto o trabalho é essencial para a sobrevivência, ele está permanentemente em crise. A outra frente diz respeito à sociedade técnica e ao hiperconsumo. Ao mesmo tempo, nossa sociedade foi moldada pela técnica e pela tecnologia, que criaram um universo imagético e algorítmico global. Plataformas que atuam em escala mundial alimentam as pessoas continuamente com imagens, experiências excitantes e irreais que promovem a ideia de que o mundo é consumível. Somos constantemente convidados a nos tornar produtos: o ser humano não apenas vende um produto, mas vende a si mesmo. As redes sociais nos transformaram em propagandas de nós mesmos, e há quem viva exclusivamente para isso – influenciadores, coaches e outros agentes desse mercado imaginário. Isso seduz profundamente, criando narcisismos espetaculares, em que cada pessoa se torna o centro do próprio show, uma peça da indústria cultural.

Ou seja, vivemos o ápice do narcisismo do consumo?
Tudo se resume à projeção de um show no âmbito do imaginário técnico e industrial. Esse desejo de consumir e de ser consumido como imagem reflete uma aspiração pelo reconhecimento e pelo sucesso no mercado. Nada disso era imaginável no tempo de Freud, nem mesmo há 30 anos. A aceleração exponencial proporcionada pela tecnologia moldou essa nova realidade, transformando completamente nossas dinâmicas sociais, econômicas e subjetivas. Vivemos em um mundo onde a ansiedade pela reprodução da vida e a participação no hiperconsumo mundial coexistem, e onde a pressão para existir dentro desse sistema parece não oferecer alternativas. Freud não poderia prever essas questões, mas sua obra nos ajuda a compreender as bases dessas transformações, que permanecem profundamente conectadas às dinâmicas culturais e psíquicas da humanidade.

Recentemente, um jovem tirou a própria vida após interagir com uma Inteligência Artificial. Além disso, pessoas têm usado ferramentas generativas, como o ChatGPT, para terapia, preferindo a máquina por se sentirem mais acolhidas. Por um lado, há um entusiasmo com o avanço exponencial da IA, e por outro, medo. Como você enxerga o impacto dessas tecnologias nas relações humanas?
Essa é uma questão para a qual ainda não temos respostas claras. Vamos perceber os efeitos mais profundos da IA nos próximos 10, 15 ou 20 anos. Esse tipo de tecnologia tem modificado nossas relações com o eu e com o mundo. Deixamos de utilizar a memória, transferindo essa função para máquinas, enquanto nos envolvemos em uma “imaginosfera”, formada por redes sociais, onde as pessoas buscam, frequentemente, um reflexo de si mesmas, o que muitas vezes as paralisa psiquicamente. Nesse cenário, a Inteligência Artificial generativa surge como uma novidade inquietante. Recentemente, um líder do Vale do Silício alertou para a necessidade de frear o avanço descontrolado dessas tecnologias, apontando que elas já estão dissolvendo milhões de empregos. Karl Marx [economista e sociólogo alemão (1818-1883)] chamava isso de “mais-valia relativa”: o aumento da produtividade por meio da tecnologia reduz a relevância do trabalho humano. Isso daí tem um impacto gigantesco. A IA seduz, dando a ilusão de que tem alguma inteligência ali, porque ela, na verdade, está simulando a inteligência humana a partir de dados criados pelo trabalho humano. Esse processo, por um lado, elimina empregos e, por outro, empobrece a cultura, já que a IA se alimenta apenas do que já foi produzido. Sem crítica ou formação adequada, as pessoas perdem a capacidade de avaliar a veracidade das informações, desviando a conexão com a realidade e caindo em falsificações que também são exploradas por movimentos autoritários.

Parece que cada vez mais temos menos tempo e vivemos em um estado de urgência permanente. O imediatismo das comunicações – como mensagens enviadas pelo WhatsApp – elimina a noção do tempo do outro. Esse é outro mal-estar na civilização atual?
Na internet, estamos em temporalidades mágicas: com um clique, falamos com um amigo na China e, ao mesmo tempo, com nossa mãe. Essa ubiquidade dissolve as barreiras do espaço e multiplica os lugares psíquicos em que estamos espalhados. Contudo, continua existindo o tempo real da vida, a partir do qual as coisas ainda precisam ser construídas e vividas. Esse contraste gera um choque. De um lado, há o “tempo mágico”, onde tudo parece instantâneo, como o pensamento. De outro, o tempo real está saturado e exige além do limite. Trabalhar pela internet ou aplicativos parecia libertador, mas descobrimos que isso significa nunca parar de trabalhar. O e-mail chega às duas da manhã, e a ocupação do tempo se torna constante. Há uma sensação de que nunca se está fazendo o suficiente, mesmo quando se está no celular. Um dos grandes papéis da psicanálise contemporânea é justamente reivindicar o direito de sair dessa máquina de exploração do tempo: o direito de parar.

Um dos grandes papéis da psicanálise contemporânea é justamente reivindicar o direito de sair dessa máquina de exploração do tempo: o direito de parar.

(foto: Nilton Fukuda)

Como você enxerga o legado do seu pai [o geógrafo Aziz Ab’Saber (1924-2012)]?
Meu pai foi um pensador e produtor de outra época. O mundo dele não é o mesmo que vivemos hoje, assim como o de Freud também não era. No entanto, ele faz parte de uma geração de intelectuais e cientistas, fortemente ligados à Universidade de São Paulo (USP), que tinham um projeto: construir e democratizar um Brasil crítico, inventivo e autossuficiente. Esse projeto, que começou no século 19, se desdobrou em várias frentes intelectuais e científicas no século 20. Um exemplo importante dessa tradição foi Darcy Ribeiro (1922-1997), que acreditava no potencial utópico e civilizatório do Brasil. Contudo, desde 1964, esse sonho foi esmagado. O país se tornou periférico, reproduzindo desigualdades e enfrentando crises ambientais profundas. Meu pai, nesse contexto, foi um grande pensador. Ele criou conceitos como os domínios morfoclimáticos, que analisavam as grandes estruturas do Brasil – como o Planalto Central – em relação ao clima e aos ambientes que ele moldava. Foi pioneiro em conectar a formação da Terra à formação do ambiente.
Em 1973, ele criou um mapa revolucionário, que retrocedia 11 mil anos no tempo para representar os domínios morfoclimáticos. Isso temporalizou a geografia e antecipou, de maneira científica, a ideia de que o futuro seria catastrófico se o modelo de exploração ambiental continuasse. Nos anos 1980 e 1990, ele deixou de ser apenas um cientista e tornou-se um ambientalista com uma visão ampla, passando a abordar o processo ambiental como um todo, sempre considerando a escala global e a temporalidade da Terra.

Desde então, você acredita que evoluímos nas discussões socioambientais?
Os debates mudaram, é claro. Hoje, há cientistas no mundo inteiro dedicados à crise climática, e temos dados muito mais precisos sobre suas consequências. Mas o Brasil de então era um país em pleno desenvolvimentismo. A industrialização era vista como a solução para tudo. Lembro-me de ouvir quando era criança: “O dia em que pudermos plantar no Cerrado, o Brasil vai explodir”. Isso aconteceu. O Cerrado foi tomado pela soja, mas a que custo? Tornamo-nos mais ricos, mas continuamos profundamente desiguais e enfrentamos uma crise ambiental gigantesca. Meu pai defendia que o Brasil, com o patrimônio ambiental mais importante do mundo, deveria desenvolver uma economia que preservasse nossos biomas. Ele acreditava que o conceito de desenvolvimento sustentável era insuficiente. Para ele, a Amazônia tinha que ficar de pé. A exploração deveria ser pensada de outra forma, respeitando o patrimônio natural e os povos indígenas, que são os verdadeiros guardiões desse ambiente. Infelizmente, a exploração predatória continua. O ouro ilegal, por exemplo, alimenta um mercado global, enquanto destrói florestas, expulsa populações indígenas e promove violência.

Como funciona o seu trabalho na Casa do Povo, onde você conduz um projeto social em psicanálise, atendendo em formato de clínica aberta?
É uma espécie de psicanálise pública ou social, voltada para esferas coletivas e acessíveis. Essa transformação vem de uma inquietação antiga na psicanálise, que remonta à década de 1920, com Freud já discutindo a criação de clínicas que ultrapassassem o modelo tradicional de consultório. A psicanálise, dentro desse modelo, acaba sendo acessível apenas a uma classe privilegiada. Após refletir bastante, formulei, junto a outros colegas psicanalistas, a ideia da Clínica Aberta de Psicanálise e do grupo analista, que traz uma inovação teórica e prática nesse campo. A proposta é atender uma pessoa com um grupo de analistas, que se revezam no atendimento. Esses analistas trabalham dentro do método analítico, em um mesmo regime de escuta, e depois discutem coletivamente a experiência do atendimento. Esse formato tem várias vantagens: permite uma psicanálise constante, sustentável, gratuita e acessível. Além disso, enriquece tanto os pacientes quanto os analistas, já que há uma troca constante de experiências e perspectivas. Atendemos pessoas que dificilmente teriam acesso ao consultório tradicional. Essa proposta tem também um aspecto político, pois desafia a dependência do mercado, que gera tantas tensões e sofrimentos. A iniciativa está baseada em algo que o antropólogo Marcel Mauss (1872-1950) chamava de “economia da dádiva”: trabalhamos e oferecemos nosso trabalho gratuitamente. E, ao dar, recebemos – seja em experiências, conhecimentos ou novas relações.

Recentemente, houve uma polêmica sobre a psicanálise ser ou não uma ciência. Qual é seu entendimento nesse debate?
Na minha visão, que é freudiana, sim, a psicanálise é ciência. Quando lemos Freud, percebemos que ele tratava a psicanálise com muito rigor epistemológico na forma de delinear e descrever os objetos que trouxe para a clínica psicológica por meio da linguagem. Esses objetos eram reais, e o esforço para sistematizá-los foi preciso e congruente. Entretanto, a questão mais polêmica está na natureza da teorização, o que levou Freud a propor o conceito de metapsicologia. Ele reconhecia que essa esfera teórica era necessária porque o inconsciente não pode ser observado diretamente; apenas seus efeitos são visíveis, como sonhos e sintomas. A partir desses efeitos, deduzimos as razões do inconsciente, suas lógicas regressivas, infantis, e até irracionais. Freud dizia que essa teorização sempre seria aberta, especulativa, pois o objeto da psicanálise não tem materialidade em si, mas é acessado indiretamente. Ainda assim, isso não desqualifica a psicanálise como ciência. São processos racionais de construção de um objeto complexo. O cerne da psicanálise é a ideia de que podemos ter transformações emocionais e psíquicas por meio da relação com o outro e da linguagem, ordenando racionalmente essa experiência para produzir conhecimento. Se isso não é ciência, então, o que seria? Não é superstição, não é especulação vazia, não é fé, nem religião. Por outro lado, não é uma ciência mensurável como aquelas voltadas para o mundo das coisas. A psicanálise não trabalha com mensuração no sentido tradicional, mas possui suas próprias precisões.

Assista a trechos da entrevista com Tales Ab’Sáber, realizada em novembro de 2024.

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