Leia O BARBA, conto de Marcelo Maluf ilustrado por Tainan Rocha

31/08/2023

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Leia a edição de setembro/23 da Revista E na íntegra

Por Marcelo Maluf
Ilustrações de Tainan Rocha

“Mas porque és morno, nem frio nem quente,vou vomitar-te da minha boca”
APOCALIPSE, 3:16

Ele abriu os olhos e estava morto.

Não viu anjos ou demônios. Nem túnel ou luz. Aquele lugar não se parecia em nada com o céu ou com o inferno, retratado nos filmes a que ele assistia na tevê. Imaginar como seria, ele nunca imaginou. Também não era o limbo. Ele também nunca imaginou o limbo. Imaginar era como sonhar. Ele não sonhava. Dormir para ele significava se desligar de si mesmo e do mundo. E só.

A primeira coisa que viu foi uma porta de madeira, igual a porta do escritório em que trabalhava como auxiliar. Na porta do escritório, tinha apenas uma guirlanda de Natal pendurada, que ficava ali o ano todo. Naquela porta, não havia guirlanda. Apenas a frase:

OS MORNOS SERÃO VOMITADOS

Um pouco abaixo, tinha uma folha de sulfite fixada com durex. Dava para ler, com alguma dificuldade, o texto escrito à mão: “Entre logo antes que a gente se arrependa”.

Ele abriu a porta. Não queria que ninguém se arrependesse por sua causa.

A respeito do seu nome, os colegas do trabalho (amigos ele nunca teve) o chamavam de Barba. De fato, ele usava uma barba toda desgrenhada, rala e malcuidada, mas preferia viver com a barba do que sem. Ela escondia as marcas, minicrateras, das espinhas remanescentes da sua adolescência. Seu nome no RG era Asclépio Nathaniel. Aqui iremos chamá-lo apenas de Nathan, que era como sua avó materna o chamava. Aliás, sua avó era a única a chamá-lo desse modo. Os pais preferiam se dirigir a ele como “ô, garoto, menino, moleque, rapaz, homenzinho, palerma, inútil, besta e filhote de cruz credo”. Mesmo assim, quando os pais morreram afogados num barco de passeio que naufragou nos mares de Cancún, no México, ele chorou durante uma semana. Ele não tinha ido viajar com eles porque a viagem ficaria muito mais cara caso ele fosse.

Você entende, né, filhote? É para o seu bem. Estamos economizando para os seus estudos – a mãe segurava a ponta dos dedos de Nathan e olhava para o tapete persa no chão da sala. Ele tinha quatorze anos na ocasião.

Foi morar com a avó. Aos finais de semana, ela fazia o bolo de laranja que ele adorava. Ela estava com oitenta e nove anos quando começou a esquecer das coisas. Certo dia, num lampejo de lucidez, ela se lembrou do seu esquecimento, subiu no terraço do prédio e voou, sem paraquedas ou asa-delta. Deixou para ele o pequeno apartamento como herança e um bilhete:

“Cuide do Drácula”.

Drácula era um gato preto que não saía de perto da velha. Ela o segurava no colo, levantava as bochechas do bichano, expondo as gengivas e os dois caninos, e dizia: “Olha o vampirinho”, “Quem é o vampirinho da mamãe?”. Drácula morreu cinco meses depois numa manhã ensolarada. Deitou-se no meio da sala e se entregou à luz do sol que entrava pela janela. Virou-se de barriga para cima, suspirou. Morreu iluminado.

Com vinte e seis anos de idade e sozinho no mundo, Nathan ia de segunda a sexta ao escritório em que trabalhava desde os seus dezessete anos, das 9h às 18h, organizava papéis e tirava cópias, preparava planilhas, digitava relatórios, engavetava, organizava, entregava encomendas no correio, atendia ao telefone, fazia o cafezinho. Nunca se perguntou se poderia ou não ocupar outro cargo. Apenas continuava fazendo.

Em suas noites, esquentava um congelado no micro-ondas, tomava um litro de refrigerante e ouvia os vizinhos brigando. Às vezes, ele se debruçava na janela e via as pessoas na rua sem muito interesse.

Depois de entrar por aquela porta com a frase “Os mornos serão vomitados”, a sua história deixou de ser a sua vida no escritório ou em casa. Mas também não foi um deleite no paraíso ou castigo no inferno. Ele estava numa dimensão intermediária, que é para onde vão as pessoas que viveram suas vidas mornas.

Quanto ao modo como ele morreu, e é importante relatá-lo aqui, foi o seguinte: ao sair do banho, Nathan pisou com os pés molhados num fio desencapado do ventilador que sempre mantinha ligado no banheiro – costume herdado da sua avó, que era para não mofar o teto e evitar que o espelho ficasse embaçado. Mas não foi o choque que o matou, foi o escorregão e a batida da sua testa no bidê.

Três dias depois, seu corpo nu foi encontrado pelo síndico do prédio. Os moradores tinham reclamado do mau cheiro que vinha do apartamento 33. Quando o síndico ligou para avisar o pessoal do escritório sobre o ocorrido, apenas disseram que nenhum Asclépio Nathaniel trabalhava lá e desligaram o telefone. Também não sentiram falta do Barba. Só perceberiam a ausência dele, dias depois, quando a pilha de papéis sobre a mesa em que Nathan trabalhava se transformara numa espécie de barricada.

Quando o corpo foi encontrado, o ventilador do banheiro ainda estava ligado e girava, lentamente, da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Toda vez que o vento atingia a cabeça, um fio de cabelo se sustentava no topo e ficava em pé por três segundos.

Agora, Nathan estava sentado diante de uma espécie de conselheiro que dava apoio às pessoas com vidas mornas e anônimas como ele. Estar naquela condição o fez pensar sobre o fato de ter vivido sem nenhum propósito. Ser um morno e estar ali foi a pior coisa que poderia ter acontecido a ele. Não porque o lugar fosse repulsivo, nada disso. Tinha até uma mesa com quitutes: bolos de laranja iguais aos bolos de sua avó, goiabada, lanches de metro e pães de queijo à vontade. O problema era: mais dia, menos dia, todos os mornos seriam vomitados por Deus. Essa era a promessa. Isso era o que se falava no corredor da pós-vida.

Mas o que ele poderia fazer? Como poderia mudar aquela situação? O conselheiro não tinha nenhum conselho para lhe dar. As pessoas encostadas na grande mesa com quitutes comiam e conversavam sobre qualquer coisa e não se questionavam se ou quando seriam vomitadas. Havia a promessa. Sempre houve.

Nathan, morto e morno, adaptou-se àquele novo mundo, naquela dimensão intermediária em que as coisas não atam, nem desatam. Fechou e abriu portas, caminhou sem saber para onde, comeu pedaços e mais pedaços de bolos de laranja, bebeu litros de guaraná, também discursou sobre amenidades. Reparou que os recém-mortos logo se adaptavam. Tudo estava tão certo. Tudo seguia como sempre fora. Não havia ontem, hoje ou amanhã. Só o terrível agora.

Diante do conselheiro, sem perguntar, dizer ou ouvir nada, pensou em sua avó. No bilhete que ela deixara: “Cuide do drácula”. Mas o fato é que ele não cuidou. Deixou o gato morrer de fome e de sede. Sim, essa era a verdade.

Pela primeira vez, Nathan compreendeu que ser vomitado por Deus era o melhor que poderia acontecer a ele. Seria justo. Esforçou-se tentando se imaginar sendo vomitado pelo Criador. Nunca havia desejado que nada de extraordinário acontecesse em sua existência. Mas se cansou de tanto pensar e adormeceu.

Quando acordou, chorando, duas mãos o puxavam pela cabeça, ele estava envolto em sangue e placenta. Havia luz ofuscando a visão.

Tinha sido vomitado por Deus.

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