Várzea do Carmo a Parque Dom Pedro II: de atributo natural a artefato

16/03/2022

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A partir de imagens que acompanham as transformações de um pedaço da capital paulista entre as décadas de 1890 e 1960, livro revela como essas representações visuais podem moldar e modificar a cidade

Por Paulo César Garcez Marins*

Poucos lugares de São Paulo podem testemunhar a saga urbana da capital paulista como aquele hoje ocupado pelo que resta do parque Dom Pedro II. Limite que separa e conecta o centro velho articulado em torno da Sé às planícies que se estendem à leste do rio Tamanduateí, a antiga várzea do Carmo cumpriu diferentes papéis na vida da cidade. Local de chegada dos barcos no Porto Geral paulistano, a várzea também acolheu a lavagem de roupas; a chegada de tropas e pescadores; os passeios em sua ilha dos Amores; exposições no Palácio das Indústrias; jardinagem em seus canteiros; o aprendizado no colégio estadual; festas religiosas de origem italiana; lazeres e emoções no parque Shangai; a velocidade em suas pistas e viadutos; e os embates políticos nos gabinetes oficiais.

Interpretando um amplo conjunto de fontes textuais e iconográficas, este livro instigante de Vanessa Costa Ribeiro reúne centenas de imagens do parque Dom Pedro, que são aqui seriadas de maneira sincrônica e diacrônica, de modo que seja possível perceber os contrastes pelos quais seus diferentes usuários e gestores o representaram e também se fizeram representar. A várzea e o parque são, assim, reconstituídos na complexa trama de relações sociais urbanas que os configuraram. As múltiplas apropriações de seu sítio natural, de seus edifícios e de sua paisagem artificialmente modelada são definidoras desses espaços como dimensões definidas coletivamente, mas sempre de maneira plural e diversa. As hierarquias que atravessam a sociedade estão também presentes nas imagens aqui reunidas, que sinalizam uma várzea e um parque em constante disputa pelos diferentes segmentos sociais e agentes políticos da cidade.


De cima para baixo:  Panorama da cidade de São Paulo (aquarela) – 1821 – Arnaud Julien Pallière – Fotógrafo Edouard Fraipont – Acervo Banco Itaú | Inundação da várzea do Carmo em 1892 (óleo sobre tela) – déc. 1890 – Benedito Calixto Fotógrafos Hélio Nobre/José Rosael – Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo | Ponte do Carmo sobre o Tamanduateí em 1830 (óleo sobre tela) déc. 1920 – Enrico Vio – Fotógrafos Hélio Nobre/José Rosael – Acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo | Panorama do Carmo e parque D. Pedro (cartão-postal fotográfico) déc. 1920 – Fotógrafo Gustavo Prugner – Acervo de Apparecido Salatini | Panorama do parque Dom Pedro II (cartão-postal fotográfico) déc. 1950 – Fotógrafo Sulpizio Colombo/Foto Postal Colombo – Acervo de Apparecido Salatini | Parque Dom Pedro II – 1940 – Fotógrafo Sebastião Assis Ferreira – Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo | Complexo viário parque Dom Pedro II – vista aérea dos viadutos Mercúrio e 25 de Março – 1969 – Fotógrafo Ivo Justino – Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo.

Notícias de jornais, entrevistas, álbuns fotográficos privados, iconografia de viajantes, postais, pinturas, fotografias realizadas por determinação pública, por empresas como a Light ou pelo desejo de fotógrafos particulares formam o corpo documental deste livro fascinante, que permite que percebamos os muitos parques Dom Pedro que a cidade experimentou, construiu e, também, destruiu. Sem qualquer sentimentalismo nostálgico, Vanessa Costa Ribeiro nos defronta com esse ponto de encontro social que a cidade festejou, ornou de belos prédios e também dos jardins projetados na década de 1910 pelo francês Félix Cochet, um conjunto urbano que foi incontáveis vezes um cartão–postal da cidade. De um pantanoso local de passagem a ser vencido, tornou-se parte do desejo de europeizar a cidade, emulando os jardins românticos de Paris até tornar-se uma moldura privilegiada de um centro que concentrava os mais importantes arranha-céus da metrópole que seguia a verticalização norte-americana. 


Sesc Parque Dom Pedro II: estrutrura temporária que funcionou de 2015 a 2021; projeto da nova unidade elaborado pelo UNA Arquitetos.

Foram muitos os fatores a atrair os olhares, pincéis, lápis e lentes dos paulistanos, até que a fúria automobilista da cidade e de seus governantes ferisse o parque em sua condição de ambiente de encontro de seus cidadãos e de representação da própria cidade. Mas a cidade, o parque e seus habitantes estão sempre em constante renovação.

A chegada de uma unidade do Sesc São Paulo, no terreno antes ocupado pelos edifícios São Vito e Mercúrio, acrescenta mais uma vez novas práticas e, sobretudo, pluraliza ainda mais o perfil dos usuários do parque Dom Pedro, reiventando uma diversidade complexa de imagens e experiências sociais que este livro de Vanessa Costa Ribeiro examina com grande sensibilidade e rigor metodológico.

Trecho do livro

*Paulo César Garcez Marins é professor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e dos programas de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Museologia da mesma universidade. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

Veja também:

:: Live de lançamento do livro 

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