Cofundador da Alma Preta defende o jornalismo como ferramenta de transformação social

27/10/2023

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FOCADO EM PAUTAS ANTIRRACISTAS, O PAULISTANO PEDRO BORGES
ACREDITA NO JORNALISMO COMO INSTRUMENTO PARA MUDAR A REALIDADE 

POR LUNA D´ALAMA

Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra

O sonho de infância de Pedro Borges era ser jogador de futebol. Frequentava os campos de várzea da Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, e pensava em se profissionalizar. Seus pais, porém, eram ligados a movimentos sociais e insistiam para que ele terminasse a escola e fizesse faculdade. O rapaz decidiu, então, cursar jornalismo na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru (SP). Quis, inicialmente, cobrir a área esportiva, para se manter no meio que sempre admirou. Mas os anos na Unesp o levaram a perceber que ele e seus colegas negros representavam apenas 3% de todos os estudantes do campus. Junto a outros dois alunos de jornalismo e um de design, Borges fundou, em 2015, a Alma Preta, agência de notícias especializada na cobertura de pautas a partir de uma perspectiva negra e periférica.  

“O Brasil é um país superviolento para uma pessoa negra. Então, ser um jornalista negro aqui exige muitos cuidados. Eu ainda cubro uma área muito delicada, que é a segurança pública”, destaca. Hoje, a Alma Preta conta com uma equipe de mais de 30 pessoas em diferentes estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Pará. Além de buscar transformar a realidade da população preta e parda por meio de reportagens combativas, a agência incentiva que seus funcionários concluam o ensino médio e ingressem na faculdade. Mestrando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – onde pesquisa o Movimento Negro Unificado (MNU) – e membro da Rede de Jornalistas das Periferias e da Coalizão Negra por Direitos, Pedro Borges inspira os colegas de trabalho.  

Seu currículo é extenso: compôs, até 2021, a equipe do programa Profissão Repórter, da TV Globo, e é coautor do livro AI-5 50 anos – Ainda não terminou de acabar (Instituto Tomie Ohtake, 2018), que venceu o Prêmio Jabuti 2020 na categoria Artes. Além disso, o jornalista é muito ligado ao samba da Zona Norte, em especial às escolas Camisa Verde e Branco e Rosas de Ouro. Neste Encontros, Borges fala de sua trajetória profissional, da cobertura noticiosa para a construção de um país mais plural e democrático, e do lançamento do Manual de Redação: o jornalismo antirracista a partir da experiência da Alma Preta, que contou com a colaboração de acadêmicos, pesquisadores e jornalistas, e cujas cópias devem ser distribuídas em faculdades públicas antes de serem vendidas em todo o país.  

PRIMEIRAS OPORTUNIDADES

Quando eu ainda estava na faculdade, tinha uma namorada cujo pai era da polícia, creio que tenente. Na época, eu precisava de trabalho, e ele me indicou para estagiar na assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública. Coincidência ou não, um dos temas que mais acompanho hoje é a violência policial. Vivo pedindo notas e posicionamentos para eles. Essa é uma experiência ótima de lembrar, porque sei como a secretaria funciona. Outra experiência que tive, ainda durante a faculdade, foi na assessoria de imprensa de uma produtora cultural. Foi muito legal, trabalhava com artistas ligados ao hip hop, e adorava entrevistá-los, escrever sobre eles.

COLETIVO NEGRO  

O jornalismo feito por pessoas negras inexiste nos cursos superiores do país. Nem estou falando de serem criadas disciplinas específicas sobre a imprensa negra, mas de se incluírem nomes importantes para contar a história da imprensa e para falar de literatura, por exemplo. Então, sempre fiquei nesse lugar do quase não pertencimento à profissão. Estudei na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, e as universidades públicas paulistas foram as últimas a adotar políticas de cotas para candidatos pretos, pardos e indígenas no Brasil. Durante a minha graduação, houve um intenso debate sobre esse tema e, em 2014, eu e alguns colegas articulamos a construção de um coletivo negro. Na época, nós representávamos somente 3% dos estudantes da Unesp. Nesse coletivo, havia uma presença forte de alunos de jornalismo. Ao nos reunirmos com frequência, eu, o Vinicius Martins e o Solon Neto – cofundadores da Alma Preta – ficamos amigos e pensamos em criar algo nesse sentido. Chamamos também o Vinícius de Araújo, estudante de design, e assim criamos a Alma Preta, em 2015, no fim da faculdade. 

NEGÓCIO SUSTENTÁVEL 

A construção da Alma Preta foi uma virada de chave muito importante na minha vida. Naquele momento, eu ainda não acreditava que esse poderia ser meu ganha-pão. Tivemos o apoio do professor Juarez Xavier, da Unesp, que foi fundamental para a gente conseguir uma orientação teórica e conceitual do que queria fazer. Também acessamos os livros da Ana Flávia Magalhães Pinto, que hoje está à frente do Arquivo Nacional e é uma das grandes historiadoras da imprensa negra no Brasil. A gente foi se formando a partir daí, com o desejo de construir um modelo de negócio sustentável. Hoje, a Alma Preta reúne uma equipe com mais de 30 pessoas. Se me falassem na faculdade que isso aconteceria, eu acharia que era mentira. A gente tem uma equipe bem diversificada, com produção de reportagens em texto, um setor audiovisual (que faz documentários e podcasts) e a parte de comunicação que cria a nossa newsletter e os conteúdos para as redes sociais.  

SAINDO DA ADOLESCÊNCIA

Considero que a Alma Preta está no final da adolescência. Sabe aquela pessoa que está crescendo, desenvolvendo o corpo, cheia de hormônios e coisas novas, aprendendo, se surpreendendo, perguntando para os pais, conversando com os amigos? Acredito que a gente passou por essa “puberdade”, uma fase de muito crescimento, de um estirão repentino, ao mesmo tempo que ainda é muito franzino, magrinho. E aí, então, vamos ganhar corpo, musculatura. Estamos pensando menos em ampliar a equipe e mais em informá-la e especializá-la. Também queremos encontrar alternativas de negócio que sejam mais rentáveis, para que haja mais possibilidades de construir nossos projetos. Isso exige uma necessidade de mudança, principalmente da minha parte. Venho com a cabeça de movimento social e tendo a achar dinheiro feio, mau. Hoje, a Alma Preta vive um momento de amadurecimento. Podemos não ganhar mais tanta altura, mas vamos ficar mais fortes, nos desenvolver.

FURAR A BOLHA 

Acredito que hoje a gente tem conseguido furar a bolha da internet, sobretudo a partir dos números que temos conquistado nas redes sociais. É um extenso trabalho de circulação de notícias. A gente está tentando se especializar nisso e desenvolver uma linha maior de difusão em outros canais. Nosso negócio é adotar estratégias para furar a bolha e fazer coisas, por exemplo, com rádios comunitárias, que são da quebrada. De maneira geral, nosso público é de maioria negra, feminina, com idade entre 18 e 30 anos, e que teve acesso à universidade. É o perfil que mais aparece nas nossas pesquisas. Varia um pouco em cada plataforma: o Instagram é mais feminino, o YouTube, mais masculino e o site, mais equilibrado. Mas a gente quer ampliar o público. Para isso, estamos criando estratégias para divulgar conteúdos pelo WhatsApp, Telegram e outras plataformas.  

DESAFIOS DA PROFISSÃO 

O Brasil é um país difícil para ser jornalista. Aliás, Brasil, Colômbia e México são muito violentos e estão entre os países que mais matam jornalistas na América Latina. O Brasil é um país superviolento para uma pessoa negra. Então, ser um jornalista negro aqui exige muitos cuidados. Eu ainda cubro uma área muito delicada, que é a segurança pública. Existe, portanto, essa dificuldade na prática, no exercício da profissão, e também no que diz respeito ao negócio, porque todo mundo ainda está patinando e tentando encontrar o melhor modelo de negócio para o jornalismo digital no século 21. A Alma Preta tem conseguido dar respostas para o seu próprio modelo, inclusive temos prestado consultoria. A gente vive num país onde o dinheiro chega com uma frequência muito menor para as pessoas negras. O dinheiro ainda é um tabu, porque a gente aprendeu a fazer as coisas em guerrilha, na pobreza. Nossa palavra-chave no modelo de negócio é diversificação. A gente não tem nenhuma fonte de receita que corresponda a mais de 40% do orçamento. Recebemos apoio de fundações internacionais e nacionais, prestamos consultoria, vendemos serviços, fazemos produção de conteúdo, publicidade etc. 

Presente em redes sociais como o Instagram, a Alma Preta é uma agência de notícias especializada na cobertura de pautas a partir de uma perspectiva negra e periférica.
Presente em redes sociais como o Instagram, a Alma Preta é uma agência de notícias especializada na cobertura de pautas a partir de uma perspectiva negra e periférica. Fotos: Montagem/Divulgação

RACISMO ESTRUTURAL 

Tenho na memória muitos processos de discriminação, desde quando eu era pequeno, nem sei precisar qual idade eu tinha. Lembro que meus pais chegaram a fazer uma reclamação no Conselho Tutelar, porque uma vizinha falou comigo de maneira discriminatória. Atualmente, cubro temas de violência e segurança pública, e vira e mexe estou na rua com crachá de imprensa. É muito comum policiais me abordarem dizendo: “Você não tem cara de jornalista, mostra aí que você é jornalista”. Aí tenho que abrir meu celular, apresentar os trabalhos que já fiz, para comprovar que sou mesmo um profissional da mídia. A gente fica nesse lugar da não existência. 

PROFISSÃO REPÓRTER

Quem é jornalista admira o Profissão Repórter. Desde a faculdade, eu já assistia ao programa e sentia vontade de trabalhar nele. A obra do Caco Barcellos [Abusado – O dono do morro Dona Marta e Rota 66] é leitura obrigatória em muitos cursos de jornalismo. Por acaso, um colega me perguntou se eu tinha interesse em trabalhar lá, eu fiz uma entrevista com o Caco e aconteceu. Fiquei um ano na equipe do programa. Se eu já tinha admiração pelo Caco Barcellos antes, depois de trabalhar com ele ficou dez vezes maior. Além de um jornalista consagrado, é um ser humano sensacional, que trata todo mundo com cuidado, carinho e atenção de alguém que está começando na profissão. Pergunta, quer saber o que as pessoas acham. É um cara completamente único, diferente na área. Ainda mais em TV, onde os jornalistas que ganham muito destaque acabam perdendo a habilidade de ouvir o outro. Foi uma escola para mim, aprendi demais. Uma das coisas de que mais sinto falta é do dia a dia com o Caco, porque ele senta, conversa, troca ideias. É uma pessoa única na profissão.

SELO DE QUALIDADE

O Profissão Repórter tem uma digital, que hoje está muito impressa na Alma Preta, que é a questão da investigação. A gente ainda tem poucas referências negras que fazem isso. E o Profissão foi uma oportunidade de aprender e fazer, para pôr em prática hoje na nossa equipe e ajudar jornalistas mais jovens que eu nesse processo. A gente vê campanhas que muitos jornais fazem em defesa do jornalismo profissional e, infelizmente, acabam colocando como se agências do tipo da Alma Preta não fossem profissionais. Como se fôssemos apenas militantes, enquanto eles são neutros e imparciais. É por essa razão que ter o carimbo do Profissão Repórter foi muito importante para a minha carreira, para a agência, para a gente abrir portas. O Profissão é quase uma produtora dentro da TV Globo, tem muita autonomia. Foi uma experiência bem rica, uma dinâmica sensacional. Até que precisei fazer uma escolha e acabei optando pela Alma Preta, pela mídia negra.

BASTIDORES VS EXPOSIÇÃO

Eu tinha muito medo de pôr meu rosto em evidência na profissão. Sempre fui mais do texto, assinava meu nome nas reportagens, mas ninguém sabia quem eu era. Só fui perder esse medo depois do Profissão Repórter, porque não tinha como não me expor na televisão. Infelizmente, acho que existe uma ideia construída de que quem se destaca toma porrada. Como nós, negros, historicamente passamos por situações de violência, acabamos muitas vezes não querendo ver nosso rosto exposto, para “apanhar” menos. Essa foi uma virada de chave difícil para mim. Antes, eu era um “bicho do mato” nas redes sociais; hoje trabalho melhor meu perfil pessoal. Algumas integrantes da Alma Preta me incentivaram a mexer mais nas redes, mobilizar as pautas. Acho que nós passamos muito por esse processo de ficar nos bastidores, algo que nos é empurrado socialmente e que nos faz ter medo de mostrar a cara. Hoje, defendo e fomento que as pessoas da minha equipe se apresentem no vídeo.

ACREDITO QUE HOJE A GENTE TEM CONSEGUIDO FURAR A BOLHA DA INTERNET, SOBRETUDO A PARTIR DOS NÚMEROS QUE TEMOS CONQUISTADO NAS REDES SOCIAIS

Pedro Borges, COFUNDADOR DA AGÊNCIA DE NOTÍCIAS ALMA PRETA

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 

Acho que o jornalismo é uma ferramenta de transformação da realidade. Adoro fazer reportagens, estar na rua, inclusive de madrugada, acompanhando pautas, conversando. É onde sinto que, de alguma maneira, meu trabalho faz a diferença. Quando penso nas reportagens que mais me marcaram, lembro de um menino que foi preso injustamente e que saiu da cadeia após uma denúncia nossa. A família estava desesperada, e a matéria repercutiu muito. Ele jogava futebol de várzea e me disse o seguinte, quando foi solto: “A sensação de liberdade é melhor do que ganhar um campeonato”. Sempre encontro a mãe dele no samba, e toda vez ela faz questão de me abraçar, falar comigo e agradecer. Essas coisas ficam gravadas na memória. Além disso, temos feito a diferença na vida de jornalistas negros. Parte da nossa equipe, quando começou a trabalhar na Alma Preta, não tinha terminado a escola, pois a evasão escolar é muito grande entre o nosso povo. Mas a gente estabeleceu como condição que eles tinham que concluir os estudos e fazer faculdade depois. Uma turma nossa, que atua na área audiovisual, vai fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) este mês. Então, a gente consegue promover uma mudança de vida para o nosso pessoal. É a melhor coisa que a gente pode fazer. 

Capa do Manual de Redação: o jornalismo antirracista a partir da experiência da Alma Preta. Foto: Divulgação

MANUAL DE REDAÇÃO 

Desde o início, a gente tinha o desejo de fazer reportagens, mas jamais imaginaria o lançamento, anos depois, de um manual de redação. Esse projeto surgiu a partir do apoio de uma fundação e de uma emenda parlamentar da Câmara Municipal de São Paulo, que pagou parte da operação e possibilitou pôr o manual para rodar. Vamos distribuir todas as cópias que fizemos e, depois, colocar uma segunda edição para vender em todo o Brasil. A Alma Preta quis fazer um documento com tudo o que entende por jornalismo, quais são seus critérios de noticiabilidade, como os jornalistas devem cobrir os assuntos, qual é a nossa linha editorial. Não temos dicas de como não ser racista, é um manual de redação, ponto. Propomos uma discussão geral sobre o jornalismo. Inclusive, a gente quer que ele também chegue às mãos de estudantes universitários brancos. Temos um compromisso com os direitos humanos, com a transformação da realidade. Vamos tentar, ainda, colocar esse manual na grade de algumas faculdades. 

COBERTURA ESPORTIVA

Meu primeiro sonho profissional foi com o jornalismo esportivo. Entrei na faculdade com a ideia de que, já que eu não seria jogador de futebol, ao menos cobriria as partidas. Mas, conforme fui estudando e me envolvendo com o curso, minha trajetória migrou mais para o social. Acho o esporte uma delícia, inclusive penso que precisamos mudar a noção de que jornalismo investigativo é só cobrir crimes [de segurança pública]. Dá para investigar e ter um jornalismo de qualidade no esporte, na cultura. A gente tem visto hoje uma maior entrada de mulheres negras na cobertura esportiva no Brasil, e isso tem transformado a área, com mais reportagens sobre casos de assédio, estupro etc. Mas ainda tem muita coisa ainda a ser feita, e a entrada dos negros na cobertura desses temas é fundamental. Em dezembro, por exemplo, teremos a primeira Copa São Paulo de Futebol Júnior Feminina. A meu ver, o esporte tem o potencial único, uma abertura que permite conversar com gregos e troianos. Pessoas de diferentes partidos e visões ideológicas dividem os estádios e se abraçam na hora que sai um gol. Os brasileiros amam futebol, e a gente precisa de profissionais cada vez mais qualificados – do ponto de vista teórico, conceitual e político – na cobertura do jornalismo esportivo. Acho que há um espaço enorme para se desenvolver nesse campo.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o jornalista Pedro Borges, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 22 de setembro de 2023. A mediação do bate-papo é da jornalista Lilian Ambar, coordenadora de Comunicação do Sesc Pompeia.

Ouça, em formato de podcast, o bate-papo com Pedro Borges para a edição de novembro da Revista E. Edição: Carol Mendonça

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