Mestre Manelim do sertão do Urucuia

06/03/2024

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Nascido em 1939 na Fazenda Santa Cruz, no povoado Porto de Manga, onde ainda criança aprendeu a tocar o instrumento com a sua mãe de criação, Manoel de Oliveira era agricultor, marceneiro e violeiro. Agora, o Selo Sesc lança o álbum digital Deixa a viola me levar, com o intuito de apresentar sua obra como tocador de viola e preservar seu legado. A homenagem ao mestre falecido em janeiro de 2020 é fruto da união do violeiro e escritor Paulo Freire com Cacai Nunes, também violeiro e pesquisador da música brasileira, que, juntos, produziram esse álbum com gravações inéditas de Manelim.

Essas gravações que estão disponíveis nas plataformas de streaming e no Sesc Digital foram feitas em três momentos diferentes da vida de seu Manoel. Uma parte delas (as faixas 01 a 08) foi gravada em 2012 por João Arruda no estúdio VentaMoinho em Campinas, no interior de São Paulo. As faixas 09 a 12 foram gravadas em 2010 por Cacai Nunes no Parque Olhos D’água em Brasília, para o Projeto “Um Brasil de Viola”. Já o último grupo – das faixas 13 a 17 – foi gravado em 2002 por Roberto Corrêa e Juliana Saenger na cidade de Urucuia em Minas Gerais, para o projeto “Tocadores”.

A música de Mestre Manelim é considerada a trilha sonora do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, que se passa pelas cercanias das Gerais. Em 1977, após ler o livro, Paulo Freire viajou para o sertão do Urucuia, norte de Minas Gerais, buscando a música do universo roseano. Lá conheceu Seu Manelim e o adotou por mestre, convivendo com o violeiro e sua família por algumas temporadas. Como escreveu para o texto que apresenta esse projeto: “A música de Manoel de Oliveira, o mestre Manelim, é considerada uma das mais belas expressões artísticas e culturais do sertão do Urucuia. Carrega dentro de si as belezas da natureza e os mistérios que transitam no imaginário violeiro.”

Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada. Viemos pelo Urucúia. Rio meu de amor é o Urucúia.
João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas

Deixa a viola me levar é formado por 17 músicas, das quais 15 são composições do próprio Manelim e outras duas (“Toada de Reis” e “São Gonçalo”) são de domínio público. Os toques de viola representam a relação do violeiro com a natureza, lundus e também músicas tradicionais como folias de reis. Seu Manoel trabalhava na roça durante o dia e à noite ponteava a viola no terreiro da casa. Lá vinham as inspirações: da inhuma, da lagartixa, do pica pau, do papagaio. Na época em que viveu no Urucuia, Paulo Freire também trabalhava na roça e, à noite, aprendia com Seu Manelim os segredos da viola.

“Eu sempre dou força para as pessoas que querem aprender, porque não podemos deixar a viola morrer”, disse o mestre.

A capa do álbum ilustra Manoel de Oliveira sentado na casa onde morava com sua viola

Eventos de lançamento

Os violeiros Paulo Freire, Roberto Corrêa e Cacai Nunes apresentarão as músicas do Mestre Manelim em 5 unidades do Sesc São Paulo: 1 na capital e as demais no interior do estado. O grupo, que passará por Jundiaí, Piracicaba, Campinas e Mogi das Cruzes, apresentará arranjos inéditos concebidos especialmente para o show. Além de tocar o repertório de Manoel de Oliveira, os violeiros contarão causos vividos com Manelim, relatarão como foram concebidas as gravações para a confecção do álbum Deixa a Viola me Levar, e mostrarão como os mestres do sertão influenciam suas próprias composições.

Antes da sequência de shows, Paulo Freire dará uma oficina no Sesc Vila Mariana. Nela, falará como a viola é tocada no sertão mineiro e o mundo que cerca a viola – desde o santo padroeiro dos violeiros (São Gonçalo), até o famoso pacto com o diabo. Não é necessário um pré-conhecimento do instrumento.

PROGRAMAÇÃOUNIDADEDATAHORÁRIO
Oficina – Uma viola em rio abaixo com Paulo FreireSesc Vila MarianaTerça, 12/03/202419h
Show de lançamentoSesc Vila MarianaQuarta, 13/03/202420h
Show de lançamentoSesc JundiaíQuinta, 14/03/202420h
Show de lançamentoSesc PiracicabaSexta, 15/03/202420h
Show de lançamentoSesc CampinasSábado, 16/03/202416h
Show de lançamentoSesc Mogi das CruzesDomingo, 17/03/202416h

Deixa a viola me levar, por Paulo Freire

A música de Manoel de Oliveira, o mestre Manelim, é considerada uma das mais belas expressões artísticas e culturais do sertão do Urucuia. Carrega dentro de si as belezas da natureza e os mistérios que transitam no imaginário violeiro. 

Conheci o mestre em 1977. Encantado pelo romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, viajei para o noroeste de Minas Gerais, juntamente com três amigos, buscando a música do universo roseano.  

Na Serra das Araras conhecemos o seu Juquinha, vaqueiro, formidável cantador de batuque. Conversa vai, conversa vem, ele nos disse que em Porto de Manga, pequeno povoado à beira do rio Urucuia, iríamos encontrar o que queríamos. Chegando na Manga, encontramos um homem construindo um carro de boi, João da Mata, mestre das veredas, das árvores e dos rios. E o João foi logo dizendo: vocês precisam conhecer o compadre Manoel.  Pronto. Vertentes e afluentes nos conduziram ao mestre. 

Manelim era um homem doce e firme ao mesmo tempo. A seriedade extrema com o serviço da roça andava junto com os cuidados que tinha com todos à sua volta. Já no primeiro encontro, percebi que ali havia um mundo. Seu jeito de tocar viola, as músicas ligadas aos fenômenos da natureza, o ponteado bonito, também doce e firme. Encostei nele, no encaminhamento que um discípulo procura no mestre. 

Agora, imaginem só. Na década de 70, quatro jovens de São Paulo mudando-se para o sertão em busca de conhecimento. Ninguém fazia isso. No tempo que moramos lá, não encontramos nenhuma pessoa com esse objetivo. Para os moradores da região, era incompreensível. Ué, se todos do interior almejam ir para São Paulo, para vencer na vida, por que esses meninos faziam o sentido inverso? Como aceitar que estavam ali para aprender com eles, para ser alguém nesse mundo?  

Tempos depois, seu Manoel me confessou que ele também não entendeu. “Mas vi logo de cara que vocês eram boas pessoas”. Para ele isso bastava. Não demorou para que eu, devagarinho, fosse passando umas temporadas em sua casa, na Taboca. Dona Vicentina, esposa de seu Manoel, me acolheu como uma mãe. Suavemente eu ganhava uma nova família: um pai, uma mãe e mais sete irmãos. 

Trabalhava na roça de dia, com toda a família, e de noitinha ponteávamos a viola no terreiro da casa. Lá vinham os toques de viola da inhuma, lagartixa, papagaio, a corrida do sapo e o veado, o lundu, as toadas de Reis, São Sebastião, o agradecimento à mesa, o São Gonçalo. Um universo se abria para mim, com uma força e encantamento dignos do Grande Sertão.  

Produzi o primeiro disco do seu Manoel, “Urucuia”, em 2006. Foi muito elogiado na época, as pessoas perceberam a riqueza da viola do Manelim, remetendo à prosa de Guimarães Rosa. Fizemos viagens de apresentações pelo SESC no interior de São Paulo, e também tocamos em algumas capitais. Passamos por programas de rádio e TV. Vivendo tantas novidades, depois de um certo nervosismo, o mestre logo se acalmava frente às reverências que todos lhe prestavam. 

Seu Manoel, quando ia me mostrar alguma música, dizia: “Paulo, tenho uma besteirinha aqui”. Pronto, eu já sabia que viriam muitas importâncias. Pois então, em 2012, aproveitei uma vinda dele para Campinas, “demos um treino”, como ele dizia, e levei-o ao estúdio do grande e querido violeiro João Arruda. Junto conosco estava Márcio Lopes, meu irmão por parte de Manelim, e também violeiro. Ali no estúdio VentaMoinho gravamos as “besteirinhas” do seu Manoel.  

Em 2018, voltando com Cacai Nunes de uma viagem pelo Urucuia, contei a ele destas gravações. E disse que faltava pouco para um novo disco do mestre. Cacai tem um extenso trabalho de pesquisa e gravação com seu “Acervo Origens”, é um violeiro fantástico, e também apaixonado pelos mestres de nossa terra. Então foi ligeiro e deu a solução. Ele tinha algumas gravações do seu Manoel, que havia realizado para seu projeto “Um Brasil de Viola”.  

E ainda lembrou que meus parceiros de vida, Roberto Corrêa e Juliana Saenger, haviam gravado o mestre Manelim para o projeto “Tocadores”, de Lia Marchi, querida amiga, que também tem um trabalho fundamental sobre nosso Brasil profundo.  

Ali mesmo, na estrada, resolvemos tocar juntos o projeto. Agora tínhamos material suficiente para um novo disco de Manoel de Oliveira. Organizamos as músicas, escolhemos as gravações. Enquanto isso, acompanhamos à distância uma piora na saúde do mestre. Ainda fomos visitá-lo em Brasília, no final de 2019, já bem adoentado. 

Manelim faleceu em janeiro de 2020. 

Depois que nos aprumamos com o baque de sua partida,  voltamos ao trabalho e finalizamos o projeto. 

O Selo Sesc teve a sensibilidade de ver a abrangência deste universo e topou a empreitada de apresentar o disco do Manelim. Ligeiro nos juntamos ao Guto Ruocco, com sua impecável produção. E convidamos o grande André Magalhães, com toda sua sensibilidade e categoria, para fazer a masterização do disco. 

 A família do seu Manoel sempre apoiou e estimulou muito a realização do disco. Todas as pessoas envolvidas no projeto “Deixa a Viola me Levar”, nutrem um profundo amor por nossos mestres. Assim, Cacai e eu nos sentimos realizados por compartilhar este trabalho tão fundamental. 

Manelim me encaminhou para ter coragem na vida. Aprendi que seus toques de viola, que representam os fenômenos da natureza, funcionam como as palavras geradoras do mestre educador Paulo Freire. Vivendo no sertão, com a família do seu Manoel, fui alfabetizado através do voo dos papagaios e do canto da inhuma. 

Vai ouvindo, vai ouvindo!  


Ouça Deixa a viola me levar gratuitamente no Sesc Digital e nas principais plataformas de streaming.

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