MORADAS DE UM SÁBIO | Perfil do escritor português José Saramago

01/11/2022

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Leia a edição de novembro/22 da Revista E na íntegra

Os caminhos que uniram o português José Saramago ao Brasil, país que amou como seu 

Por Manuella Ferreira Colaboração: Maria Julia Lledó

Em meio aos turistas que visitavam Salvador para a Festa de Iemanjá, em 1996, havia um escritor que, dois anos depois, se tornaria o primeiro e, até hoje, único autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura. A identidade do viajante começava a ser mundialmente popularizada — por isso, foi possível a ele conhecer, sem alarde, ícones da capital baiana, como o Elevador Lacerda. No centenário Mercado Modelo, o visitante ficou impressionado com o artesanato popular, e observava, demorado e curioso, os mínimos detalhes das figuras de barro expostas nas lojas de artigos típicos. Perto do centro de compras, teve a chance de assistir a uma roda de capoeira e, uma vez mais, encantou-se com o que presenciou. O passeio foi, aos poucos, intercalando-se com o vai e vem da multidão que atravessava o centro histórico soteropolitano naquele 2 de fevereiro. Ali, em silencioso respeito a tudo o que acontecia à sua volta, estava José Saramago (1922-2010). E foi assim que o autor de Ensaio sobre a Cegueira (1995) se entrelaçou, um pouco mais, com a nação e o povo que tanto admirou, e que considerava, também, como seus.  

A relação profunda do português com o Brasil ganhou novos contornos com o passar do tempo.
Desde que conheceu as terras brasileiras, em 1983, Saramago colecionou visitas e amizades por aqui. Tamanho afeto poderia ter representado um desvio de rota – algumas décadas antes do reconhecimento internacional, o romancista chegou a cogitar sair de Portugal para viver além-mar. A jornalista e escritora Pilar del Río, esposa do autor, rememora o episódio. “É verdade que ele amava tanto o Brasil que, em 1962, pensou em imigrar para o país. Mas, não foi possível. A princípio, não era universitário e não poderia vir, como lhe foi sugerido que viesse, para trabalhar em uma universidade. Como ele viria e de que maneira? O processo de imigração acabou não se concluindo. O que não significa que ele não estivesse sempre atento ao Brasil”, revela Pilar [Leia mais em Herança adelante].  

PAISAGENS DA MEMÓRIA 

Em carta ao escritor e diplomata Nataniel Costa (1924-1995), Saramago também confidenciou o desejo de mudança: “Estou a encarar francamente a hipótese de ir para o Brasil, à busca de vida melhor, não de melhor vida”. O jornalista Ricardo Viel, em artigo publicado na revista Palavra, detalhou as motivações do escritor: “Na mensagem escrita ao amigo (e patrão) Nataniel Costa, que vivia na França, José lista a falta de perspectiva, os problemas pessoais e a vida cheia de obrigações como os motivos que o fazem pensar em abandonar a ‘amargurada e infeliz’ terra onde vive. Portugal estava sob a ditadura de António de Oliveira Salazar (1889-1970) fazia décadas. Após ter escrito um romance aos 24 anos, Saramago havia abandonado vários projetos de livros e não voltara a publicar. Trabalhava numa editora, exercendo uma atividade maçante e burocrática que terminava por ser um peso, mais um. Não enxergava nem para o país, nem para si, um futuro melhor. Enquanto isso, o Brasil era visto como o lugar das oportunidades”, escreveu Ricardo Viel. 

Cabem, então, algumas perguntas: Que vida esperava José Saramago caso ele tivesse concretizado a vontade de criar raízes brasileiras? Teria o escritor, por exemplo, conhecido o amor de Pilar – a leitora, revisora e tradutora primeira de sua obra, a quem dedicava seus livros, singelo e apaixonado, desde que a conhecera, em 14 de junho de 1986? Poderia Saramago – filho e neto de analfabetos – ter se notabilizado como o maior responsável pelo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa? Obteria os prêmios Nobel e Camões de Literatura um José que não frequentou uma universidade – e que apenas pôde comprar seu primeiro livro aos 19 anos? 

A ausência de respostas, contudo, não diminui o brilho, o vigor e a sensibilidade que nortearam a carreira e a trajetória pessoal do autor português, iniciada há um século na cidade de Azinhaga, à época um povoado formado por camponeses. A família se instalou em Lisboa quando Saramago tinha dois anos. Foi na capital portuguesa que, menino, aprendeu a amar as artes e a literatura de tanto frequentar as bibliotecas públicas da cidade, seu lazer. Adolescente, a origem pobre o impulsionaria a se formar numa escola técnica para, assim, garantir o primeiro emprego como serralheiro mecânico.  

Olhares remotos 

Adulto, trabalhou como funcionário público, tradutor, jornalista, editor, crítico literário e comentarista político. O primeiro romance, Terra do Pecado (1947), foi seguido de um hiato interrompido apenas em 1966, com a publicação de Os Poemas Possíveis. Com o romance Levantado do Chão (1980), inaugurou o estilo narrativo único que o consagrou: a escrita corrida, quase sem pontuações e ritmada por longos períodos. As décadas seguintes foram de intensa e consistente produção. Publicou, entre outros títulos, A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), Todos os Nomes (1997), A Caverna (2000) e Ensaio sobre a Lucidez (2004). 

Trabalhos amplamente enaltecidos pela crítica e que congregaram leitores fiéis na comunidade de países de língua portuguesa – em especial no Brasil. Tal popularidade não significa, contudo, que o autor esteja distante do hermetismo, conforme explica a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Salma Ferraz. “Alguns de seus livros, como O Memorial do Convento (1982) e O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), exigem um aparato cultural intertextual, pois não são obras fáceis de adentrar – elas requerem um leitor ruminante, na definição do escritor Machado de Assis (1939-1908). Ou seja, essas obras demandam um leitor que tenha todo um preparo para entrar no mundo saramaguiano”, analisa a docente, que indica As Intermitências da Morte (2005) como porta de entrada para o universo do autor. 

Sob o sol perene 

Aquelas que seriam algumas das mudanças mais impactantes no caminho do escritor estavam por vir com a publicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Por causa da obra, José Saramago enfrentou fortes protestos da igreja e de políticos católicos de Portugal, que o acusaram de blasfêmia. As resistências foram além, e culminaram com a censura do governo português, que vetou sua participação no Prêmio Literário Europeu de 1992. Como justificativa para a proibição, o então subsecretário de Estado da Cultura, António de Sousa Lara, afirmou que a literatura de Saramago contrariava o “patrimônio religioso português”. O incidente aborreceu o autor de forma irreparável, levando-o a se mudar definitivamente para Lanzarote, no arquipélago das Ilhas Canárias, na Espanha.  

A nova vida no território insular, cercado por paisagens vulcânicas e parte da costa da África ocidental, é a essência dos Cadernos de Lanzarote, um conjunto de cinco diários lançados pelo escritor entre 1993 e 1998. No mesmo ano em que publicou o último volume, uma nova guinada o aguardava. Era manhã de 8 de outubro e, sempre ao lado de Pilar, Saramago encerrava sua participação na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha. Preparava-se para retornar a Lanzarote quando, na cidade de Estocolmo, a Real Academia Sueca anunciou seu nome como o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. No comunicado, a instituição atribuiu ao autor uma obra de valor fundamental, “cujas parábolas, respaldadas por imaginação, piedade e ironia, nos permitem apreender de forma contínua uma realidade ilusória”.  

TANTO MAR 

A notícia foi festejada por leitores e pelo mercado editorial, como se a vitória fosse brasileira – e era.
A comemoração foi ainda mais emocionante, para um grupo de amigos brasileiros do laureado: o cantor e compositor Chico Buarque, o fotógrafo Sebastião Salgado e os escritores Lygia Fagundes Telles (1918-2022) e Jorge Amado (1912-2001). Doente e sem poder enxergar, o baiano ditou uma última carta felicitando o companheiro tão logo soube da novidade – a missiva foi escrita com a ajuda da filha, Paloma Amado. Saramago afirmava que o autor de Mar Morto (1936) era o verdadeiro merecedor da honraria. Amado, por sua vez, torcia pelo triunfo do colega de ofício, com quem compartilhava visões de mundo e com quem se correspondeu com frequência entre 1992 e 1997. 

Foi a convite de Jorge e Zélia Gattai (1916-2008), ainda, que Saramago visitou Salvador para conhecer a celebração à Rainha do Mar. Testemunha do encontro, o fotógrafo Xando Pereira realizou um registro peculiar do português: em uma cena que comprova como o escritor se permitia, com ternura, imiscuir-se na atmosfera cultural do país que tanto prezava. “A certa altura, os amigos se reuniram na residência do cantor Caetano Veloso, perto da praia. Todos vestem branco, como pede a tradição. Flores são distribuídas e percebo que Saramago caminha em direção ao mar, segurando um ramalhete também. Então, fiz o clique e lancei a pergunta: O senhor vai jogá-las para Iemanjá?”, relata o fotógrafo. Por um momento, o escritor se detém e responde, com simpatia: “Não! Eu sou ateu…”.   

Herança adelante

Presidenta da Fundação José Saramago e viúva do escritor, Pilar del Río ressalta o espírito do tempo no legado saramaguiano

Foi um livro, mais especificamente, Memorial do Convento (1982), que aproximou a jornalista espanhola Pilar del Río do escritor português José Saramago. Provocada pela obra que o alçou internacionalmente, Pilar foi ao encontro do autor em 1986. A partir daí, permaneceram lado a lado, compartilhando vida, projetos, amizades e A Casa de Lanzarote. Além de tradutora da obra do literato para o castelhano, Pilar é presidenta da Fundação José Saramago, criada em 2007 para compartilhar as palavras e o pensamento crítico do autor, além de “contribuir para o processo de humanização de que um mundo em permanente processo de desumanização necessita”, descreve a página oficial da instituição, sediada em Lisboa.

De passagem por São Paulo, em agosto passado, Pilar esteve no Sesc Pinheiros para o evento Saramago – 100 anos, do qual também participaram o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, e o editor e escritor Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, editora responsável pela publicação dos títulos do prêmio Nobel de Literatura. Na ocasião, falou à Revista E sobre a celebração ao centenário do escritor e a atualidade de seus livros. 

Páginas brasilianas 

Vejo a influência do Brasil na obra de Saramago. Não tanto por causa das amizades [com escritores e outros artistas do país], porque elas foram posteriores. No caso de Jorge Amado, por exemplo, essa amizade se deu quando Saramago já tinha uma obra consolidada. Isso não significa, no entanto, que ele não tenha lido tudo de Jorge Amado. Ele era um leitor voraz da literatura brasileira. Alguns livros, inclusive, nasceram no Brasil, como Todos os Nomes (1997) e A Caverna (2000). Ou seja, esse país era uma presença permanente em sua vida e, várias vezes, ele atravessou o oceano para celebrar seu aniversário em São Paulo, com amigos. 

Espírito do tempo

Eu não diria que a obra de Saramago é atemporal, pelo contrário, diria que é temporal. Como podemos dizer que não é atualíssima a obra Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas (2014), se ela se situa em uma fábrica de armas? Agora mesmo, estamos formulando questões sobre Ensaio sobre a Cegueira, por exemplo. Na pandemia, muitas pessoas – e eu também – voltaram a ler essa obra, entre outras, e pensaram: “Quão pouco aprendemos”.

Literatura e cidadania

Saramago não separava literatura de cidadania. Para ele, estética e ética estão juntas, assim como literatura e cidadania. Penso que, para entendermos a obra de Saramago, é preciso sermos cidadãos conscientes. 

Centenário 

No dia 16 de novembro [quando Saramago faria 100 anos], escolas de Portugal, do Brasil [e de outros países da Europa e da América Latina] irão realizar, simultaneamente, a leitura de textos de Saramago, a exemplo do conto A Maior Flor do Mundo. Ele costumava dizer que ler é bom para a saúde do corpo e do espírito e, também, para se conhecer. Pensamos que os jovens não vão ficar o tempo todo atrás das telas, mas atrás de livros, porque a leitura proporciona prazer. 

Palavras que transcendem

Homenagem celebrou os 100 anos do autor que possui passagens memoráveis pelo Sesc São Paulo

Para além da herança literária, José Saramago permanece eternizado pelas reflexões que proporcionava, também, como um intelectual de alcance universal, que não se furtava em aproximar-se dos leitores. “Ele sempre teve um modo de enxergar [a vida] muito equilibrado, adequado e comprometido com a humanização do mundo. Sobretudo com as ideias que fazem com que a gente possa construir um mundo melhor. Esse é o grande legado de Saramago – o de alguém que denunciou quando era necessário, que apontou caminhos quando era necessário e que reflete tudo isso de maneira brilhante na sua literatura”, afirmou o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, durante homenagem ao centenário do autor português, realizada em 15 de agosto, no Sesc Pinheiros. 

Entre 1997 e 2008, Saramago esteve seis vezes nas unidades do Sesc São Paulo, em programações em parceria com a editora Companhia das Letras. Oportunidades nas quais o público pôde ouvi-lo discorrer sobre a própria obra, revelando os caminhos que o conduziram em seus processos de escrita. “Eu não ando a brincar com a morte, a ideia apresentou-se. É um livro extremamente divertido, em que o leitor sorrirá muitas vezes. Algumas vezes, pode acontecer de soltar uma gargalhada. É um livro sobre a morte e, portanto, também um livro sobre a vida”, declarou em 2005, no lançamento de As Intermitências da Morte.

Em novembro de 2008, o escritor faria um balanço da sua trajetória até então, por ocasião da publicação de A Viagem do Elefante. E, diante do público do Sesc Pinheiros, declarou-se à esposa Pilar del Río, seu alicerce. “Fui tendo aquilo que a vida, por razões que eu desconheço, foi pensando que era hora. Por exemplo, em 1986, quando eu conheci a Pilar, foi porque a vida disse: ‘Bom, o rapaz tem 63 anos, vamos fazer aparecer esta mulher, senão depois torna-se demasiado tarde’. A Pilar me apareceu e eu lembro de ter escrito uma coisa que eu posso repetir aqui, com meus 86 anos: Se eu tivesse morrido antes de conhecer a Pilar, tinha morrido muito mais velho do que aquilo que sou hoje”.

A EDIÇÃO DE NOVEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, discutimos a acessibilidade em museus e espaços expositivos. Para além de uma arquitetura acessível, instituições culturais apostam em recursos táteis, auditivos e visuais para ampliar a fruição e acolher públicos cada vez mais diversos. Conheça as políticas de acessibilidade de espaços como a Pinacoteca, Museu do Ipiranga, Museu do Futebol e unidades do Sesc São Paulo.

Além disso, a Revista E de novembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que destaca a potência da criação coletiva e processual nas artes cênicas; uma entrevista com Eliseth Leão, que defende que a conexão com a natureza ajuda na manutenção da nossa saúde; um depoimento de Gilberto Gil, que se reiventa aos 80 e compartilha conosco memórias, vivências e inspirações; um passeio por croquis, desenhos de cenografia e fotos de palco que celebram o legado do italiano Gianni Ratto; um perfil de José Saramago (1922-2010), escritor português que faria um século de vida; um encontro com a diretora e dramaturga Joana Craveiro, da companhia portuguesa Teatro do Vestido; um roteiro por 5 espaços no estado de SP adornados por azulejos; um texto inédito da prosadora mineira Cidinha da Silva; e dois artigos que fazem um balanço sobre os 10 anos de criação da Lei de Cotas.

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