Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Marcos Napolitano

Professor e pesquisador fala sobre os impactos de momentos históricos na produção cultural brasileira


Foto: Leila Fugii

 

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Marcos Napolitano é professor do Programa de História Social da mesma instituição e autor de livros como História e Música (Autêntica, 2002) e 1964 – História do Regime Militar (Contexto, 2013).Nesta entrevista, o pesquisador fala sobre os temas de seus estudos, como motivações e estrutura do regime militar e as relações entre a história e a música popular brasileira: “A música engajada não era uma reação à ditadura. O processo está ligado às contradições da modernização, e a ditadura cria um momento dramático, mas o processo histórico já vinha de antes”.

 

Qual foi o papel da imprensa em 1964 no golpe?
Normalmente se fala em imprensa liberal, imprensa corporativa, os jornalões, como alguns dizem, que foi parte constituinte da conspiração. Ela não apenas apoiou, ela ajudou a desestabilizar o governo de João Goulart, obviamente se aproveitando dos erros do próprio governo e dos problemas reais que existiam no país, mas a imprensa hipertrofiava esses problemas dentro de uma perspectiva de conspiração contra Jango, sobretudo a partir de outubro de 1963, quando os jornais constituíram a chamada rede da democracia. Fizeram uma espécie de pool dos principais jornais do país e resolveram fechar a questão em torno da oposição ao João Goulart. Isso, somado a outros fatores, foi solapando e preparando a opinião pública para o golpe. Vale lembrar que a imprensa, na crise da posse do João Goulart, em setembro de 1961, não foi unânime ao impedimento do presidente. Tratava-se de um candidato que não era muito simpático aos jornais, mas a imprensa se dividiu. Alguns jornais chegaram a defender a posse, outros não, mas a partir de 1963 pode-se dizer que a imprensa passou efetivamente a conspirar contra o governo.
 

Havia também um apoio da sociedade civil?
Esse é um tema que sempre foi tabu na historiografia, sobretudo mais à esquerda. Porém, havia a ideia de que os militares agiram sozinhos com o imperialismo e a sociedade teria sido vítima do golpe. Isso é insustentável hoje. Claro que, quando a gente fala em “sociedade”, houve quem apoiou, quem não apoiou, quem foi vítima e quem não foi, mas houve um apoio importante sobretudo na classe média. A classe média não tinha a mínima simpatia pelo getulismo e pelo João Goulart, que era o herdeiro do getulismo. A classe média tinha muito medo do comunismo, medo real e medo fabricado. A propaganda anticomunista, como vários historiadores, entre eles o Rodrigo Pato, da Universidade Federal de Minas Gerais, têm estudado, era muito forte. Então o medo do comunismo, a crise econômica, o elitismo das classes médias, que viam no getulismo uma forma de ascensão às massas... tudo isso engrossou o caldo de apoio ao golpe. Houve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964, com 500 mil pessoas na rua. No Rio de Janeiro, a Marcha da Vitória colocou 1 milhão de pessoas na rua, então era de fato muita gente. No entanto, havia nesses grupos um consenso sobre derrubar o presidente, mas não havia consenso sobre o tipo de regime que deveria existir depois. Aí é que se deu a ruptura entre uma parte da sociedade e o regime autoritário que se firmou anos depois. O que se desenhava era derrubar o presidente, caçar os direitos de boa parte dos parlamentares de esquerda, controlar a participação das massas no processo político eleitoral e fazer uma eleição asséptica, digamos assim. Isso não aconteceu, os militares tinham um outro projeto, que já estava embutido no golpe, apesar de boa parte da historiografia dizer que não.
 

Qual era esse projeto?
Ficar no poder, mudar a cara do país, a economia, a forma de gerência do Estado. Há uma polêmica muito grande na historiografia. Uma parte dos historiadores diz que não havia projeto, o que houve foi uma reação contra o desgoverno da esquerda e o regime foi acontecendo de maneira quase improvisada até que a linha dura tomou o poder. Eu discordo. Acho que havia já um projeto, não que isso queira dizer que já se sabia quantos anos iriam ficar no poder, mas havia uma ideia de que era preciso reformar leis, afastar uma parte da classe política, inclusive certos conservadores. Os militares não tinham simpatia mesmo por certos políticos conservadores, como Ademar de Barros, por exemplo. Queriam afastar esse tipo de política, estabelecer um governo mais centralizado, mantendo algumas instituições políticas, como o Parlamento, o sistema de partidos, mas sob controle, sob tutela, e mexendo muito na economia. O programa econômico do Castelo Branco era muito ousado para um governo que pretendia ficar pouco tempo, mudou lei de greve, lei salarial, programa de ação econômica do governo, estatuto da terra. É um governo que em oito meses muda toda a estrutura fiscal do país. A minha tese é que a ditadura, do ponto de vista institucional, começa com o Ato Institucional-2, em outubro de 1965, que acaba com os partidos. O AI-5 confirma, mas o AI-2 já tinha um projeto de longo prazo embutido.
 

Qual o papel dos Estados Unidos?
Havia um ponto de convergência com os americanos, que era afastar o populismo, os governos que enfatizam muito a autonomia econômica. A agenda americana tem horror a isso. Houve, então, um apoio importantíssimo dos Estados Unidos, que a partir de 1962 conspiraram para derrubar o João Goulart. Isso não é mais teoria da conspiração, há documentos que provam. A diretriz do Departamento de Estado americano era que o presidente deveria cair, mas deveria parecer que foi algo feito pelos brasileiros. Tanto que esse apoio demorou a aparecer. A documentação histórica só surgiu na década de 1970, foi publicada em 1977 nos Estados Unidos, e na documentação ficava comprovada a operação Brother Sam, que os americanos sempre negaram. E é importante dizer: não há nenhuma documentação histórica comprovando os temores da direita de que João Goulart estava preparando um golpe.
 

No começo do regime militar, havia uma preocupação em dar uma aparência legal?
Eu não acho que isso era só fachada. Acho que os militares tinham uma concepção legalista de exercício de poder. A promulgação de leis que reforçavam o Poder Executivo e principalmente a Presidência da República era toda normatizada. Isso não era fachada. Fachada seria se promulgassem uma lei e não acreditassem nela. Não era isso. A promulgação desses atos institucionais (a reforma constitucional, a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Imprensa) foi um aparato normativo muito importante no regime, porque a partir dele mudaram a cara institucional do país. Isso não tem nada a ver com tortura, sequestro, repressão, que não passavam por essas leis.
 

Essa preocupação normativa seria uma precaução contra o futuro?
O Exército brasileiro, quando dá o golpe, não dá o golpe propondo que um ditador controlasse o país. Pelo golpe, o Exército se tornava o eixo autocrático do Estado, mas o presidente da República não poderia ser um ditador descolado da sua estrutura política. Então, mesmo o poder autocrático que ele tinha era normatizado pelos atos institucionais. Assim, evitava-se algo de que o Exército tinha medo, o personalismo no poder, uma liderança personalista, carismática, que mobilizasse tropa e que mobilizasse massa. Essa é uma hipótese que precisa ser mais investigada, mas estou quase convencido de que o papel das leis era criar uma espécie de regramento do governo ditatorial, porque é diferente você ter uma ditadura completamente imprevisível e um ditador que seja parte do sistema político e militar. A lei ordenava esse tipo de coisa. Ordenava a relação com o Congresso, ordenava o exercício da Presidência da República, as ações que o presidente poderia ter. Tudo isso é ordenado pelos atos institucionais. Era uma ditadura burocrática.
 

E em relação à cultura, qual era o estado da cultura brasileira antes do golpe de 1964?
Nos anos 1950, principalmente, começa a surgir uma espécie de confluência de questões culturais em torno de modernização, superação de subdesenvolvimento, afirmação do Brasil como país que se moderniza sem perder as suas tradições, e isso era compartilhado por vários atores culturais. De modo geral, o grande tema era a superação do subdesenvolvimento. A cultura, em 1964, está em uma fase radicalizada desse processo, sobretudo a cultura de esquerda, voltada para construir as chamadas reformas de base. As reformas propostas por João Goulart em 1962 dão um sentido para a ação cultural engajada de esquerda muito forte, muito convergente, criam uma convergência de projetos. Em 1964, havia uma cultura engajada, moderna, sofisticada, que estava tentando conciliar sofisticação estética com mensagem política, como no Cinema Novo.
 

E a partir do golpe?
Em 1964, quando os militares tomaram o poder, a maior preocupação inicialmente não era reprimir o artista. Era impedir que o artista engajado de esquerda chegasse às massas. É por isso que às vezes existe a confusão de achar que o regime foi brando até 1968 porque tolerava uma cultura de esquerda. Havia uma perseguição aos artistas intelectuais mais engajados, sobretudo os ligados ao Partido Comunista até 1967, mas fundamentalmente o objetivo era cortar o elo desses intelectuais com as massas. Então o CPC foi fechado, o Movimento de Cultura Popular do Recife foi fechado, o Comando dos Trabalhadores e Intelectuais, que havia surgido em 1963, foi dissolvido, e o efeito disso foi isolar os intelectuais que pudessem ter algum espaço de ação na sociedade. Com a modernização geral do país, que os militares estimularam, houve também espaço para a esquerda, que estava sem lugar, porque já havia perdido suas organizações, não podia ir para a porta da fábrica, e eles vão então para os discos.
 

Qual a relação do golpe com a hegemonia da esquerda na produção cultural?
Precisamos tomar cuidado com algumas questões. Primeiro, acho que a memória e a historiografia até os anos 1990 exageraram um pouco essa ideia da hegemonia cultural. De fato, a esquerda estava na mídia, controlava boa parte da produção musical, do teatro, literatura, indústria fonográfica, essas áreas. Porém, a eficácia política dessa hegemonia hoje está em discussão. Existem duas grandes correntes historiográficas que tensionam essa questão. Uma delas diz que, ao ir para a indústria cultural, a esquerda teve uma ilusão de poder que na verdade não era real, porque eles cantavam para a classe média, que no fundo já sabia tudo aquilo, e mesmo que não soubesse não iria agir, e ficou uma espécie de circuito de comunicação fechado sem possibilidade de ir às massas. A outra corrente diz que isso não foi tão politicamente inócuo porque, ao ocupar esses espaços e chegar a uma população urbana importante, solaparam a legitimidade simbólica que o regime militar queria ter, inclusive na classe média. Estou um pouco mais com a segunda, mas acho que o alerta que a primeira corrente historiográfica faz, de que existe um limite de estar no mercado, é importante. Ou seja, a tendência, hoje, é entender se houve uma hegemonia, até onde ela foi, e o que ela produziu de fato. Outro ponto é que o regime não ficou passivo diante dessa questão.
 

Por que a música se destacou na cultura daquele período como porta-voz?
Isso é algo que estudei no doutorado, tentei entender um pouco por que isso foi tão importante culturalmente e politicamente, e por que a canção, que em princípio é uma estrutura muito simples, muito pobre até, abrigou tantas experiências criativas. Tenho uma hipótese, um modelo de análise. No momento em que o mercado entra em crise, ele se abre para novidades, e a estrutura de consumo naquele momento, no final dos anos 1950 e começo dos anos 1960 no Brasil, estava mudando. Havia um novo público, e o mercado também estava se reconfigurando, recrutando criadores novos. Era uma classe média escolarizada jovem e que fazia música para seus semelhantes. Havia uma comunidade de ouvintes e de criadores historicamente muito específica. Inclusive, a música vai ser reprimida duramente quando ela passa não apenas a ser porta-voz da oposição, mas quando ela passa a ser uma espécie de estímulo à guerrilha dessa juventude. Aí não tinha ditadura branda, não. Eles foram reprimidos, censurados, e a parte mais engajada perde espaço. A música engajada dos anos 1970 vai para a linguagem mais sutil.
 

A cultura musical teria caminhado da mesma forma sem o golpe?
Acho que a música engajada não era uma reação à ditadura, tanto que já havia música engajada antes. O processo está ligado às contradições da modernização, a ditadura cria um momento dramático, porque vem a repressão, a censura, eles tornam-se heróis da oposição ao regime, mas o processo histórico já vinha de antes. A música engajada, moderna, no Brasil, é inseparável daquele grande debate dos anos 1950 de se buscar superar o subdesenvolvimento, o que era o Brasil diante do mundo, essas questões. A música, ao seu modo, dava uma resposta a isso e foi um processo que em 1962 e 1963 já estava fundado, como, por exemplo, com Sérgio Ricardo, Carlos Lira e Nara Leão. Ali já havia todos os elementos da música moderna brasileira.
 

E a jovem guarda, como se encaixava nesse momento?
A jovem guarda canta o mundo da juventude de classe média baixa, urbana, e nesse sentido tem um papel de expressão de um mundo provinciano que se moderniza e que, claro, vai cantar algumas extensões dessa modernização. Era o mundo do bairro, do namoro de portão, do carrão, do bailinho. A jovem guarda é atropelada por 1968, e não resiste a 1968. Emerge uma nova juventude muito politizada, urbana, mais intelectualizada, ligada a um projeto de ruptura comportamental radical, vem a questão da droga, que a jovem guarda não dá conta, da liberação sexual, que ela não dá conta, e já em janeiro de 1968 ela acaba.