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Soneto profundo

Ilustração: Marcos Garuti

 

SONETO PROFUNDO

Nadei dez metros sob a correnteza,
e me afoguei no ritmo do mundo.
Levei no bolso um texto, na certeza
de que ele voltaria mais profundo.
Depois eu pretendi nova conquista
a meu soneto ínfimo e pedestre:
coloquei-o na mão de um alpinista,
para ele assim subir ao Everest.
Desejei-lhe uma longa eternidade,
estendendo-se além de minha vida.
A melhor solução foi empalhá-lo,
colocá-lo na sala de visita.
De lá ele me exibe, com descaso,
O riso fundo de um soneto raso.


SONETO AO MOLHO INGLÊS
Para Cony, que deu a mim o verso 1

Mãe, eu quero comer um bife à milanesa,
é tudo o que lhe pede o filho mais ingrato,
e ainda que delícias brilhem em meio à mesa
eu nada além desejo dentro do meu prato.
Um simples bife de patinho, ou chã alcatra,
para este filho mal passado; eu pretendia
passar a limpo o amor que sai pela culatra,
e sem cessar me escapa nesta casa fria.
Agora é tarde, e nada abala a fortaleza
da dura sala hereditária em que deponho
minha esperança, misturada na tristeza
de nunca ter sabido o que é o sabor de um sonho.
Não, mãe, te afirmo então, na insônia da certeza:
não quero um bife, quero o amor de sobremesa.


RECEITA DE POEMA

Um poema que desaparecesse
à medida que fosse nascendo,
e que dele nada então restasse
senão o silêncio de estar não sendo.

Que nele apenas ecoasse
o som do vazio mais pleno.
E depois que tudo matasse
morresse do próprio veneno.


LÍNGUA NEGRA, RIO 30 GRAUS

Bem longe explode em preto
a pele cósmica de uma estrela,
aqui arde em silêncio
a pele grossa de uma vela.
Negra é a língua que se enreda
para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
celebrada na veia aberta das vielas.
Passos que galopam para o abismo,
expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Anoitece no Rio de Janeiro.


A GAVETA

A gaveta está trancada,
a chave levou Maria.
Nela guardados os planos
de quem já fui algum dia?
Decerto aí também mora
a linha da pescaria
que mirou no meu futuro,
mas errou a pontaria.
Desconheço se ela abriga
alguma mercadoria
dispondo de mais valor
que um pardal na ventania.
Mas por que agora eu escuto
numa quase litania
as vozes que dela saem
e se engrossam em gritaria?
Chamo então um bom chaveiro
da Europa, Olinda ou Bahia,
para arrombar a gaveta,
pois lá do fundo eu traria
a chave de algum passado
que aprisionado me espia.
Chega um e chegam dez
chaveiros em romaria.
A gaveta a todos eles,
um por um, derrotaria.
São bem fracos contra a força
E a resistência bravia
Que a tal fechadura impõe
frente a tal cavalaria.
Na madrugada, cansado
pela perdida porfia,
percebo voando no ar
uma dúbia melodia.
Provém daquela gaveta:
ela afinal me induzia
a entrar sem maior esforço,
já que a mim se entregaria,
e dentro de si guardava
peça de imensa valia;
eu agora nem de chave
nem de nada carecia.
Conseguiu me convencer
Com voz bastante macia,
e, pronto para apossar-me
da mais pura pedraria,
abri-a com a mão amante
de quem pisa em joalheria.
O tesouro acumulado
era a gaveta vazia.
Dois insetos passeavam
sobre a superfície fria.

 

Antônio Carlos Secchin é poeta, ensaísta, crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Autor de obras como Ária de Estação (1973), Todos os Ventos (2002) e, a mais recente, Desdizer (2017), que reúne a produção do escritor desde a década de 1970.

 

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