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Bullying na era digital

Fotos íntimas ou difamações compartilhadas em redes sociais tornaram-se manchetes nas últimas décadas. Um cenário que corresponde a uma sociedade imersa no ambiente online, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em fevereiro. No Brasil, foram contabilizados 116 milhões de pessoas conectadas à internet – o equivalente a 64,7% da população com idade acima de dez anos. Dessa forma, tanto o cyberstalking (perseguição praticada na web) quanto o cyberbullying, ou bullying virtual, tornaram-se formas de violência regularmente praticadas. Para o advogado especialista em Direito Digital Alexandre Atheniense, coordenador da Pós-Graduação em Direito e Tecnologia da Informação da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo, o país ainda tem muito que avançar em termos de legislação. “No Brasil, a Lei Antibullying (Lei 13.185/2015) já prevê que a conduta [do bullying] pode ocorrer em ambiente online. O cyberstalking, entretanto, não possui previsão ainda, havendo projetos em trâmite no Congresso Nacional para tipificar essa conduta”, aponta. Por isso mesmo, o coordenador do Comitê de Marketing Político Digital da Associação Brasileira de Agentes Digitais (Abradi), Alexandre Secco, destaca a necessidade de precauções. “A primeira e mais importante de todas elas é ter a consciência de que tudo que cai na rede, todos os tuítes, posts, imagens e vídeos podem ser usados a nosso favor, para interagir com os amigos, ou contra nós”, pondera. Sendo assim, é possível evitar ataques virtuais? Sobre o tema, Atheniense e Secco reúnem exemplos e fazem reflexões.

 

 

Bullying digital e cyberstalking

Alexandre Atheniense

Com o avanço e a popularização das novas tecnologias, o mundo jurídico passou a se preocupar com as condutas ilícitas – costumeiramente praticadas no “mundo real” – que passaram a ser praticadas no mundo virtual. Dentre elas, destaca-se o cyberbullying e o cyberstalking. Apesar de se qualificarem como condutas distintas, o bullying digital e o cyberstalking se associam em muitos casos, de forma a serem tratados em conjunto, de maneira geral.

A Lei 13.185 conceitua o cyberbullying como a “intimidação sistemática na rede mundial de computadores” para “depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial”. O cyberstalking, por sua vez, é definido por Paul Bocij (2004) como: “Um conjunto de comportamentos em que um indivíduo, grupo de indivíduos ou organização usem de informação e tecnologia de comunicação para assediar outro indivíduo, grupo de indivíduos ou organização. Tal comportamento pode incluir, mas não está limitado a, envio de ameaças e falsas acusações, usurpação de identidade, furto de dados, danos a dados ou equipamentos, monitoramentos informáticos, solicitação de favores sexuais a menores ou qualquer outro tipo de agressão”.

A principal questão discutida na atualidade é a dificuldade das legislações de abarcarem as novas condutas possibilitadas pelo mundo digital. Se a lei for muito vaga, na tentativa de se adequar com maior facilidade ao avanço rápido da tecnologia, ela acaba se tornando muito maleável e, muitas vezes, desconsiderando que as condutas ilícitas praticadas na internet possuem a tendência de serem mais sutis, caracterizadas mais pela repetição do que por atitudes essencialmente ameaçadoras. Por outro lado, se a lei for demasiadamente específica, rapidamente ela se torna defasada, não conseguindo acompanhar o surgimento constante de novas tecnologias da comunicação.

Essas dificuldades a serem enfrentadas a depender do grau de especificidade da lei, entretanto, não superam os obstáculos que acabam tendo de ser enfrentados em razão da ausência de tipificação no Brasil em relação ao cyberstalking. Apesar de a conduta poder ser enquadrada em outras legislações – como a Lei Maria da Penha ou o crime de ameaça previsto no Código Penal –, a ausência de uma previsão legal que trate do tema de forma específica ocasiona problemas até mesmo no registro do boletim de ocorrência, podendo deixar a vítima desamparada e causando a sensação de impunidade.

Casos de grande repercussão
No Brasil, o caso de cyberstalking que gerou maior comoção nacional foi o vivenciado por Ana Hickmann. No início de 2016, a apresentadora, que possuía um fã que a perseguia insistentemente online, foi feita de refém pelo seu stalker. O caso resultou na trágica morte do agressor e demonstrou que, caso houvesse a previsão do cyberstalking como crime no Brasil, possivelmente esse final teria sido evitado.

Outro caso amplamente divulgado pela mídia – um dos primeiros, inclusive – ocorreu nos Estados Unidos, onde uma jovem de 13 anos, após sofrer humilhações nas redes sociais por um stalker que se passava por um menino de dezesseis anos, acabou tirando a própria vida.

Um caso recentemente processado nos Estados Unidos gerou discussão internacional ao condenar três pessoas pelo crime chamado na sentença de “cyberstalking resulting in death” (cyberstalking resultando em morte). A condenação se deu após um homem, juntamente a seus familiares, iniciar uma campanha de assédio e difamação contra a sua ex-esposa, divulgando a falsa informação de que ela abusava de suas filhas, até que culminou no assassinato da vítima por um familiar de seu ex-marido. Foi entendido que, apesar de não terem participado do assassinato em si, os condenados, por meio das ações de cyberstalking, contribuíram para o ocorrido.

 

Embora as autoridades policiais e judiciais ainda estejam
se adaptando aos novos crimes advindos do avanço das tecnologias
de comunicação, há um esforço coletivo para enquadrá-los
na legislação vigente e para tipificá-los formalmente

 

Quanto aos casos de cyberbullying, os mais recorrentes em âmbito nacional tratam de fotos íntimas vazadas e/ou agressões online. Muitos, inclusive, resultando no suicídio das vítimas, que geralmente são jovens adolescentes, pelo abalo psicológico sofrido.

Percebe-se, então, que as duas condutas – cyberbullying e cyberstalking – se aproximam principalmente no que tange aos resultados possivelmente catastróficos à saúde mental das vítimas. Ambas as condutas, ainda que distintas, se caracterizam pelo abalo emocional que provocam às suas vítimas.

No Brasil, a Lei Antibullying (Lei 13.185/2015) já prevê que a conduta pode ocorrer em ambiente online. O cyberstalking, entretanto, não possui previsão ainda, havendo projetos em trâmite no Congresso Nacional para tipificar essa conduta. Nesse sentido, o Brasil se encontra atrasado em relação aos demais países que possuem uma população com considerável acesso à internet.

Como enfrentar
Apesar da dificuldade para tratar de crimes cibernéticos por parte da polícia e do magistrado, principalmente pelo desconhecimento tecnológico e pela falta de convenções para efetivamente enquadrá-los na legislação vigente, recomenda-se que a vítima comunique imediatamente os crimes às autoridades e aos sítios de hospedagem e redes sociais envolvidos. Nesse sentido, é importante preservar as provas por meio de capturas de tela e atas notariais, de modo a fornecê-la às autoridades. Há, ainda, a possibilidade de requerer, por meio das ferramentas disponibilizadas nas próprias redes sociais, a retirada do conteúdo considerado ofensivo ou ameaçador.

Embora as autoridades policiais e judiciais ainda estejam se adaptando aos novos crimes advindos do avanço das tecnologias de comunicação, há um esforço coletivo para enquadrá-los na legislação vigente e para tipificá-los formalmente. Assim, diante de uma situação de intimidação sistêmica, é importante que a vítima se insurja contra os ilícitos e busque o apoio das autoridades.

 

Alexandre Atheniense, advogado especialista
em Direito Digital, coordenador da Pós-Graduação
em Direito e Tecnologia da Informação da Escola
Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados
do Brasil – Seção São Paulo (ESA-OABSP).

 

 

Bailarinas em perigo na selva digital

Alexandre Secco


Já se disse que os telefones celulares estão se transformando em extensões do nosso corpo. Um estudo recente divulgado pela Apple, a fabricante do IPhone, revelou que os donos do aparelho o destravam em média 80 vezes por dia para executar alguma tarefa, como checar mensagens, ler notícias, assistir a vídeos ou fazer compras. Oitenta vezes! Uma a cada 12 minutos. Parece loucura. Mas é só prestar atenção: sacamos o celular durante a refeição, ao entrar no elevador, no trabalho, vendo TV e até em situações perigosas, como ao volante de um carro. Pode até ser um pouco prematuro falar em uma extensão do corpo, mas sem nenhuma dúvida já é uma extensão das nossas vidas.

Falar de todas as vantagens de viver em um mundo conectado é chover no molhado. Ninguém mais precisa perder tempo em filas de bancos, os amigos estão sempre a apenas alguns cliques de distância e temos um mar aberto de oportunidades para aprender, pesquisar ou mostrar um talento para o mundo. Porém, como tudo nessa vida, grandes conquistas estão sempre acompanhadas de grandes desafios e, geralmente, também de grandes problemas. A escritora J.K. Rowling, criadora de Harry Potter, foi muito dura quando disse que a internet é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição, especialmente para os mais jovens.
Certamente, um dos recantos mais amaldiçoados da rede é o gueto onde vivem cyberbullies, haters, cyberstalkers e outros seres das sombras do mundo digital. Essas criaturas normalmente chamadas por seus nomes em inglês são da mesma espécie, mas de raças diferentes. Os haters disseminam ódio e atacam com virulência e os cyberstalkers perseguem suas vítimas implacavelmente, sem necessariamente fazer ameaças explícitas. Atrás deles, geralmente existem pessoas normais, um vizinho ou alguém que cumprimentamos na escola ou no metrô. Quando estão diante de um computador, quase sempre escondidos por uma identidade falsa, passam por uma metamorfose.

O cyberbullying é o mais comum dos ataques. Consiste em dirigir repetidas ameaças e agressões contra uma pessoa usando canais de comunicação eletrônicos como e-mail e redes sociais. Não há estudos precisos sobre o assunto, mas os pesquisadores admitem que cerca de 35% dos jovens já foram vítimas de algum tipo de ameaça digital. Os efeitos podem ser devastadores. Sabe-se que as agressões digitais estão associadas a casos de depressão, baixa autoestima, deficiência escolar e até mesmo ao suicídio. É tão grave que vários países criaram leis específicas para lidar com o assunto. É o caso do Brasil, que em 2015 criou o Programa de Combate à Intimidação Sistemática, para coibir e combater esses crimes.

Rotas de fuga
A prática infame de ameaçar e agredir pessoas usando seus pontos fracos, características físicas particulares, gênero, raça, ou qualquer outro pretexto, sempre existiu. Antes, porém, as vítimas podiam tentar se proteger saindo do raio de alcance de seus agressores e buscando o amparo dos amigos. Em último caso, existia a alternativa de mudar de escola, ou de emprego. Mas hoje, como se disse, os telefones são parte da nossa vida, quase extensões do nosso corpo. Dormem no criado mudo ao nosso lado e é a primeira pessoa para quem damos bom-dia. A vítima não tem para onde fugir e o agressor nem precisa estar na mesma escola. Pode viver bem longe, em outro país, e ainda assim estará sempre colado em sua vítima.

Em teoria, seria fácil resolver o problema desligando o telefone e mantendo distância dos computadores. Mas hoje dependemos de aplicativos para trabalhar, encontrar um endereço, para tanta coisa que isso simplesmente não seria viável. Internet não é luxo. Existe a alternativa de mudar de identidade digital, trocar de e-mail, sair das redes sociais, desaparecer! Também não é tão fácil, porque uma imagem íntima ou uma mentira podem se espalhar rapidamente pela rede, para nossos amigos, colegas de trabalho e para o mundo inteiro, causando dor e constrangimento.

Um dos grandes desafios enfrentados pelas vítimas e pelas autoridades é a facilidade que existe para criar perfis anônimos. Em 15 minutos qualquer pessoa pode ter uma conta de email, um blog e um perfil no Facebook com uma identidade falsa. Se a Justiça descobre e determina o bloqueio dessas contas, o agressor pode criar outras e mais outras.

Um caso em discussão na Justiça de São Paulo revela a história de um agressor que operou mais de 60 perfis falsos em redes sociais e criou quase três mil posts acusando sua vítima de roubo, assassinato e outros cinco crimes diferentes. O agressor chegou a ter uma fanpage no Facebook com mais de 250 mil fãs, que era usada com o propósito de distribuir documentos e imagens falsas sobre sua vítima. Depois de uma batalha de mais de dois anos, a Justiça condenou o agressor por diversos crimes e ordenou a remoção de vários de seus perfis sociais. Mas novos perfis fakes sempre reaparecem. É um verdadeiro filme de terror.

O que você publica?
Ninguém sabe quando um agressor vai aparecer. Mas há uma série de medidas que podem ser usadas para reduzir, e muito, os riscos. A primeira e mais importante de todas elas é ter a consciência de que tudo que cai na rede, todos os tuítes, posts, imagens e vídeos podem ser usados a nosso favor, para interagir com os amigos, ou contra nós. Algumas situações chegam a ser dramáticas: nos Estados Unidos, um plano de saúde chegou a negar tratamento a uma paciente alegando um caso de doença preexistente baseado em informações encontradas no Facebook. Aliás, desde a posse do presidente Donald Trump as embaixadas americanas foram orientadas a investigar as redes sociais de todas as pessoas que solicitam visto de entrada para o país.

Um ataque não precisa ir ao extremo para produzir efeitos graves. Uma aluna de 13 anos de uma escola no Rio de Janeiro foi levada ao desespero porque os colegas passaram a ridicularizá-la por causa de uma foto ingênua, de uma garota gordinha em roupa de bailarina. Os professores sabem que esse tipo de caso é muito mais comum do que se imagina. As crianças são iniciadas cada vez mais precocemente no mundo virtual, onde estão expostas a pedófilos, pornografia e tudo que as pessoas conseguem produzir de pior. É uma dessas contradições dos nossos tempos. No mundo real, ninguém deixaria seus filhos circular livremente por uma cidade infestada por criminosos. Na internet, alimentamos a crença equivocada de que só nos machuca o que pode nos tocar.

Antes, ninguém contava detalhes de sua vida privada em praça pública nem saía por aí pendurando fotos íntimas nos postes da cidade. Chega a ser curioso, mas muita gente faz exatamente isso na internet, sem se dar conta de que um post no Facebook é para o mundo inteiro ver. As famílias já sabem da importância de falar com os filhos sobre o perigo das drogas, do uso de álcool e da importância do sexo seguro. É hora de colocar na mesa uma conversa franca sobre o que pode e o que não pode na internet. Uma foto ingênua de uma garotinha vestida de bailarina pode ser a razão de um enorme sofrimento, não só grande em intensidade. Cartazes colados em postes podem ser removidos, mensagens postadas na internet geralmente são para sempre.

Muitas e muitas bailarinas estão correndo perigo.

Alexandre Secco é formado em Direito e Jornalismo, coordena o Comitê de Marketing Político Digital da Associação Brasileira de Agentes Digitais (Abradi) e realiza palestras sobre reputação e influência na era digital.

 

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