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Um jeito de amar chamado amigo

UM JEITO DE AMAR CHAMADO AMIGO

tenho alguns amigos, poucos

mas de grande valor

tenho amigos passarinhos

quando reconheço um, eu digo: voe!

alguns perdem o vínculo com a gravidade

e alçam rasantes de liberdade

eu poderia citar alguns

bem, melhor não!

estes são os que fazem das asas instrumento de trabalho

são da mesma espécie dos

amigos sonhadores

às vezes, os sonhadores são mais prudentes

oscilam do sonho ao voo

ora turbulência, ora calmaria

nunca se sabe quando um sonhador

voa ou está em terra firme

o sonhador tem uma velocidade inalcançável!

tenho amigos poetas

estes são passarinhos e sonhadores e belos

de uma beleza, algumas vezes, invisível!

mas que importa isso ao poeta

se ele extrai beleza do improvável?

o poeta é um artesão

com mãos hábeis e um olhar atento

encaixa uma palavra qualquer num poema

dando-lhe forma e relevo

com a perfeição de um esteta

somos capazes de sentir a forma

do poema

pegá-lo com as mãos

antes que ele inaugure suas asas e

alce o próprio voo

poemas assim têm o alcance

da atemporalidade

e nos comovem num para sempre

tenho amigos artistas

estes são passarinhos sonhadores

poetas e belos

porque a arte é a coisa mais

perto da vida

e não consigo imaginá-la sem

as asas da liberdade

os sonhos que eu persigo e os poemas

ah, também tenho amigos

que não são humanos

nem passarinhos nem sonhadores

nem poetas nem artistas

mas têm um jeito todo próprio de demonstrar ternuras

que alguns humanos não são capazes

ainda há outro jeito de definir amigos

tenho amigos que são amor

não é fácil entender essa travessia

mas não precisa mesmo entender, não

é só um jeito de amar com a sensação

de lugar seguro...

 

POEMA À BEIRA-MAR

amor é tema recorrente

absurdo e clarividente

está no óbvio e no inesperado

caminho pelas calçadas

olho os passarinhos

as lagartixas e os ratos

há amor no reino animal

respiro o ar à beira-mar

faz calor, o mar respinga

o crepúsculo me brinda

com um céu multicor

assim como a vida: multidiversa

ao amor é reincidente

os caminhantes seguem alheios, nem aí pra mim

não percebem que são poesia

que brinco de fazer versos

com seus semblantes e suas urgências

rio-me deles

há uma cratera no asfalto

o motorista buzina

mostro a faixa de pedestre

há um bebê e uma mãe solo

um carrinho e muitas sacolas

ofereço ajuda para atravessar a avenida

há amor ali

o amor é abundante

está na poesia de Baudelaire

e nos filmes de Scorsese

cada um com seu jeito todo próprio

de falar de amor ou desamor

assim como eu

tenho meu jeito de demonstrar ternuras

se não serve a um, a outro servirá

me apaixono por escritores, poetas e loucos

dos livros ou do dia a dia

do século passado ou deste século

não quero mais nenhuma normalidade

muito menos hipocrisia

apenas um vinho ao chegar em casa

não tenho saca-rolha, peço ao vizinho

não há comida, mas tem-se o iFood

escuto vozes, estou sozinha

tudo pode ser substituído ou reinventado

no terceiro milênio

até o amor

o amor é dissimulado

ou inventa-se o amor

ou assiste-se a um filme na Netflix

olho para a estante

há vozes ali

minha gata dorme sobre Bukowski

vejo um amor imponente

SE EU FOSSE POEMA

lá vem o poema rompendo a barra

de uma noite insone

esbarra em mim todo contente

desvia de ti

devia era ser pra ti

não te esquivas do meu poema

agarra-o

experimenta o verbo que ele te oferece

põe uma rosa atrás da orelha

olha-se no espelho vestido de poema

inventa a palavra

não desvia de mim

veste-se do sol de um setembro qualquer

deixa florescer, seja flor ou seja lá o que for

pode ser amor ou imaginação

sou noite que avança

e dança descalça na madrugada

guardiã de nosso segredo

dia que amanhece

poema que nasce e se despe

se veste e reveste

de ti e de mim

se eu fosse poema

seria pra ti

desculpe a pressa

não posso adiar o amor

para o próximo século

UMA CANÇÃO PRA MIM

quero a canção de amor

que imaginei ouvir

cantada num violão qualquer

feito poema do Leminski

na voz sussurrada do homem que sonhei

aquele que me ame

tal como sou

descabelada enlouquecida trágica

no meu universo interior

sob a luz de Fortaleza

Veneza ou Arpoador

quero um amor que não me cobre

nada que não posso dar

mais que me doar inteira

de qualquer maneira

me emprestar sem volta

sem fraturas na alma faturas ou contas a pagar

um amor do tipo imenso

que me faça gigante e não caiba por dentro

desavergonhado ensandecido intenso

e quando ecoar um grito

não seja de ira, o grito

seja um rito de passagem

para a plenitude que sonhei

quero uma canção que me faça chorar

pelo amor que dei

mas não recebi em troca

que me faça rir à toa

assim de boas

do amor que está em algum lugar

guardado pra mim

uma canção

que cante o feminino em versos

como uma canção do Chico

pelo avesso ou pelo inverso

sem rima pão ou circo

mas com o saber que pulsa

no coração de uma mulher

ainda há tempo, amor

meu coração ainda pulsa, pulsa

acelerado enlouquecido trágico

prestes a expirar o tempo de amar

corre, meu bem, corre

porque ele pode parar

em qualquer estação

este meu coração

magoado ensandecido intenso

tem a última chance de amar assim

corre, meu bem, corre

e traz uma canção pra mim

A CASA

havia uma casa

de paredes brancas

com retratos e afetos

cheiro de café coado e roupa lavada

lavanda de alfazema

um despertador às 6

havia livros discos souvenires e quadros

alguns azuis

natureza morta

havia cristais porcelanas cadernos

um diário e todo o resto

nasceram filhos na casa

cresceram os filhos

chegaram as gatas

houve sorrisos e festa e muita alegria

alguma tristeza, às vezes

muitas memórias a casa tinha

havia amor ali

um amor tamanho

desses que não cabem em fotografia

mas não foi cuidado, o amor

e envelheceu

a casa também

o amor definhou, definhou

um tantinho aqui e outro ali

por fim, o amor morreu

os habitantes continuaram vivos

com suas expectativas e planos

a casa não quis escolher com quem ficar

sofria, a casa

tinha a alma feminina

o reboco aparecia na parede

como veias expostas sangrando sangrando

a casa havia de sobreviver

tinha que sobreviver, a casa

havia um apego incomum

de difícil compreensão

mas a dona da casa, não

não havia apego nela

ela quis ver a casa feliz

desocupou os armários

arrumou as malas

bateu a porta e se foi

ela amava a casa

e, por amá-la, quis vê-la feliz

por amá-la, ela foi embora

levou consigo um diário de 20 anos

com as memórias da casa

da casa que é dela...
 

Íris Cavalcante é poeta, natural de Baturité (CE), autora de Palavras e Poesias (2003), O Caminho das Letras (2006) e O Sobrevivente (2011), obras editadas pela Expressão Gráfica Editora. Com a mais recente, Vento do 8º andar (Premius, 2017), foi finalista do Prêmio Jabuti de 2018 na categoria Poesia.

 

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