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Primavera

Amanhece. O inverno acabou, mas ainda faz frio.

Uma neblina tênue se espalha pela cidade e o vento e a chuva fina aumentam a friagem. Dois bêbados deitados num canto da Praça da Sé discutem acaloradamente. Agarrados a um velho cobertor cheio de furos, o primeiro bêbado encara o outro e diz, todo senhor de si:

– Sai pra lá, meu! Este cobertor é meu!

O segundo bêbado parte pra cima dele, agarra o cobertor furado e sai correndo. O primeiro bêbado o alcança e arranca o cobertor, mas o segundo bêbado consegue segurar uma das pontas. Enquanto os dois puxam o cobertor com toda a força, uma mulher passa por eles e diz:

– São bestas, mesmo! Não percebem que desse jeito vão perder a coberta?

Mas eles não ouvem. Continuam a puxar com toda a força aquele tecido velho, esgarçado e furado. O segundo bêbado, que é mais novo, ganha espaço e se apossa da maior parte da peça. Agora está meio a meio: metade do cobertor está com um homem, a outra metade com o outro.

Um velho se aproxima. Para e fica olhando para eles como se assistisse a uma cena da TV. Depois de um pouco, começa a torcer, o que dá novo alento à luta. Os bêbados se animam com a torcida do velho e se lançam com mais vigor ao objeto em disputa.

Ora o cobertor está mais para o lado do primeiro bêbado, ora para o lado do segundo bêbado. 

– Dá-lhe! Vamos lá! – grita o velho. – Quero ver logo o vencedor.

Os dois intensificam a força com que puxam o seu objeto de desejo.

– Oxe! – brada o velho. – Não tenho a noite toda pra passar aqui!

Os bêbados não aguenatavam mais. Ainda agarrados ao cobertor, tinham relaxado a força.

– Seus fracotes! Não vou perder mais o meu tempo com vocês! – exclama o velho, bufando. E sai andando pela praça vazia. 

A atitude do velho exacerbou os bêbados. Com o orgulho ferido, eles se lançam à coberta e puxam com o máximo de força que conseguem. E conseguem o que queriam: cada um fica com um pedaço do pano velho.

No mesmo instante, uma viatura estaciona no meio-fio.

Uma chuvinha leve deixa o cheiro de terra no ar.

É madrugada ainda, mas Irene já acordou. Passa um café fraco no coador de pano, come com o marido o pão amanhecido com margarina e saem para a roça.

“Eita chuvinha benfazeja!”, pensa Irene.

Vão caminhando em silêncio. Não há nada a dizer. Parece que nunca há nada a dizer. Cada um com seus pensamentos, mergulhado em si mesmo, lutando sozinho com a dúvida, a inveja e a raiva. Como se uma muralha envolvesse os seus sentimentos, não abrem o coração um para o outro. Não abrem o coração para ninguém. Não dá tempo? É o hábito? O modo como foram criados?

Nesta manhã interiorana, Irene demonstra estar mais contente. A expressão do seu rosto parece a de todos os dias, mas para um observador mais atento nota-se uma pontinha de alegria no canto dos seus olhos.

“A primavera chegou”, ela vai pensando pelo caminho. “A terra esperava essa chuvinha para dar seus brotos, fazer crescer as plantas e as flores nascerem. O meu corpo também tem sede de primavera. Que ela ajude a me fertilizar.”

Voltando para a capital, vinha ele pela rua afobado. A vizinha, que estava na janela, estranhou. O que teria acontecido? Voltar assim pra casa no começo do dia quem trabalhava tão longe, e ainda por cima antes da hora do almoço... Boa coisa não deveria ser.

Alfeu demorou a encontrar a chave de casa no bolso da calça; via-se que estava nervoso.

“Ainda bem que só a dona Dinorá está na janela”, pensou, um pouco aliviado. “As outras mulheres da vizinhança ou estão no trabalho ou estão preparando o almoço.” Mas ele sabia que isso não era consolo; num instante, dona Dinorá correria a vizinhança com a notícia. E, mais do que isso: logo mais bateria à porta dele pra saber se ele estava bem, se precisava de alguma coisa.

O rapaz afastou esses pensamentos e se concentrou no aspecto positivo da cena enquanto girava a chave na fechadura. Subiu de dois em dois os degraus para o quarto e pegou o banco para alcançar o alto do armário. Com dificuldade, puxou uma caixa escura, que estava escondida bem lá no fundo. Desceu do banco com ela e se jogou na cama, como se estivesse exausto pelo esforço feito. 

Tirou os tênis velhos e as meias furadas e se estendeu na cama de casal, abrindo braços e pernas, como se quisesse ocupar todo o colchão. Sua respiração estava rápida... parecia que tinha subido o morro correndo. Olhou para o teto com os olhos fixos, daquele tipo que o sujeito olha sem ver, enquanto o suor escorria de sua testa. Passou a mão pelos cabelos – estavam empapados de suor. Baixou os olhos do teto para a caixa a seu lado e os fechou em seguida.

Aos poucos, sua respiração foi retomando o ritmo normal. Estava quase cochilando quando ouviu batidas na porta.

“Essa não é a dona Dinorá”, pensou imediatamente. “Isso é mão de homem, ou melhor, arma de homem. Deve ter batido com um porrete ou uma barra.”

Alfeu não teve esses pensamentos deitado. Assim que ouviu as batidas saltou da cama em silêncio, abriu a caixa, pegou um pacote, pôs no bolso da calça de brim e correu de levinho para o banheiro. “Ainda bem que estou descalço”, pensou aliviado, como se a situação que vivia algum alívio tivesse.

 Subiu na privada, tirou umas telhas e pulou para o telhado. Enquanto isso, as porradas na porta haviam parado. A pessoa devia estar entrando pelo quintal, onde era fácil pular o muro e arrombar a porta da cozinha.

Lá do alto, olhou ao redor e rapidamente traçou um caminho pelas casas mais baixas. Já estava no telhado da dona Dinorá quando o elemento invadiu sua casa. Dava pra ouvir de longe o barulho que o cidadão fazia dentro da casa, derrubando e quebrando tudo pelo caminho, abrindo gavetas e virando tudo pra fora, jogando objetos e roupas dos armários no chão. Quando entrou no banheiro, viu as telhas mexidas e saltou depressa para o telhado.

Alfeu já estava longe. Apesar da chuva que começou fininha e foi engrossando, fazendo ele retardar o passo, já tinha atravessado o telhado de umas tantas casas. Quando chegou à casa do sr. Honório, sentou-se no telhado e foi baixando, agarrando-se a reentrâncias da parede e ao vão da janela até chegar ao chão. Correu para uma viela no meio do mato, pouco usada pelos moradores, e estava descendo o morro quando ouviu passos.

Sem parar de correr, coloca a mão no bolso e tira o pacote com a mão esquerda. Os passos vão se aproximando. Percebe que tem mais gente, não é apenas um, e o seu sinal de alerta se acende. Sai da pista e entra para o mato; sobe na primeira árvore que encontra, procurando se esconder entre seus galhos e folhagens. Do alto, vê duas crianças que descem o morro apostando corrida.

 

Silvana Salerno é autora de mais de 20 livros,

finalista do Prêmio Jabuti em 2015 pela tradução

e adaptação de Os Miseráveis, de Victor Hugo,

em 2014 pela editora Seguinte; recebeu o prêmio

O Melhor Reconto da Fundação Nacional do Livro Infantil e

Juvenil por Viagem pelo Brasil em 52 histórias (Companhia

das Letrinhas, 2006), o prêmio Altamente Recomendável

por Qual é o seu Norte? (Companhia das Letrinhas, 2012).

 

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