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Artigos exclusivos discutem o futuro da utopia


Lindberg Farias

Ainda existe utopia? Trata-se de um questionamento pertinente na atualidade e não pode ficar sem resposta.

Vale lembrar que o conceito mais comum de utopia está relacionado à representação de qualquer lugar ou situação de idéias onde vigorem normas e/ou instituições políticas altamente aperfeiçoadas (Holanda, 1994). E, historicamente, utopia está associada ao desejo e à luta por sociedade justa, igualitária, democrática e, após a vitória da revolução bolchevique em 1917, socialista.

A queda do muro de Berlim, a derrota do socialismo na ex-URSS e nos países do Leste Europeu, bem como as dificuldades enfrentadas pelos partidos da esquerda e dos movimentos populares no mundo, é apresentada pela mídia internacional e pelos ideólogos financiados pelo establishment como o fim da história, o presente perpétuo, e, conseqüentemente, o fim da utopia.

Para ajudar a afirmar o contrário, ou seja, que ainda existe utopia, a utopia do cidadão, reproduzo duas opiniões conceituais: a primeira afirmando que a utopia (política, social e tecnológica) não pretende destruir a realidade atual que aceita no que ela mostra de melhor; portanto, a sociedade que ela mostra é apenas sua projeção, na qual os aspectos positivos são "maximizados" (Bobbio, 1992). A segunda, tratando de cidadania, enfatiza que o simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se um ser no mundo é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, à chuva e às intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna (Santos, 1996).

Entre as malezas do capitalismo na atualidade é o desemprego crescente o que mais chama a atenção. O atual nível de desemprego supera o alcançado nos anos da grande depressão deflagrada em 1929 nos EUA. O desemprego e o subemprego, de acordo com OIT, atingem hoje 820 milhões de trabalhadores. Na União Européia, o número de desempregados beira os 20 milhões, enquanto nos países da OCDE (organização que reúne os 24 países mais desenvolvidos do mundo), o desemprego cresceu de 10 milhões em 1970 para mais de 35 milhões em 1995 (Projeto do PC do B, 1997). No Brasil, a situação não é diferente, medidos pelos números do IBGE, o desemprego aberto nas grandes regiões metropolitanas do país se elevou de 3,35%, em 1989, antes da recessão de 90-92, para 6,09%, em julho de 1997. Pesquisa do DIEESE - órgão do sindicato dos trabalhadores e da SEADE, instituto de pesquisa do governo do Estado de São Paulo, sobre o desemprego na região metropolitana paulista dá números quase duas vezes maiores que os do IBGE: o desemprego vai de 8,8%, em 98, para 17%, em junho de 97. (Abra o Olho, 1997)

Como nunca o sistema capitalista concentra as riquezas num pólo da sociedade e aumenta a pobreza no outro. A quinta parte da população do globo que vive nos países pobres tem 1,4% do rendimento mundial, enquanto a quinta parte que vive nos países ricos fica com 85% desse rendimento. Os 358 multimilionários mais ricos do mundo possuem uma fortuna que se iguala aos rendimentos anuais de 45% da população mundial (2 bilhões e 300 milhões de pessoas). Também nos países capitalistas mais desenvolvidos observa-se o alastramento da pobreza, nos países da OCDE mais de 100 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Na União Européia, atualmente, 55 milhões de pessoas são consideradas pobres (idem).

Trata-se de um parâmetro importante, mesmo considerando que a utopia e a cidadania não se limitam a questões mínimas, mas a crescente onda de exclusão social dominante no mundo atual coloca diante de todos da esquerda (hoje ser de esquerda é defender o homem contra a barbárie que a direita procura estabelecer para a maioria da humanidade) a necessidade de defender prerrogativas sociais inalienáveis, cada vez mais subtraídas e negadas pelo capitalismo.

Lindberg Farias é deputado federal pelo PC do B/RJ


José Genoino

As correntes políticas de esquerda, inegavelmente, sempre alimentaram visões utópicas da sociedade e do mundo. Muitos analistas vêem nisso um parentesco da esquerda com as religiões, que sustentam a existência de um paraíso perfeito após a morte. Utopia, em termos políticos, significa a idéia de uma sociedade ideal onde as principais contradições humanas estariam resolvidas. Há uma diferença evidente entre as sociedades ideais e as sociedades reais. As primeiras são fruto da imaginação, da projeção ou dos desejos de quem as pensa. As segundas são as sociedades contraditórias e problemáticas do mundo real.

O fracasso do socialismo e a crise das ideologias vividas neste final de século projetaram uma vasta sombra sobre a própria idéia de utopia. Os partidos, os Estados e os líderes políticos não são capazes de resolver os desafios e as dificuldades mais elementares das pessoas. A rigor, o mundo está cindido entre civilizações e bárbarie: de um lado, está uma minoria que desfruta de direitos, de cidadania, de segurança, de bem-estar, de riqueza, de saber, dos bens de consumo etc... De outro, estão os deserdados do bem-estar, os que ficam à margem da estrada do progresso, os sem-direitos, os sem-cidadania, os sem-emprego, os sem-capacidade de consumo, os sem-conhecimento etc.

Para os excluídos, o mundo luminoso dos incluídos talvez seja uma miragem, um sonho,para o qual gostariam de ter acesso. O mundo da inclusão, dos direitos e do consumo é a projeção utópica para a imensa maioria dos seres humanos. As necessidades dos excluídos, dos oprimidos e dos explorados parecem uma pista importante sobre a qual os partidos de esquerda deveriam concentrar suas ações. Não se trata tanto de lutar por uma longínqua sociedade perfeita, mas de tentar garantir os direitos e cidadania para os que não possuem esses bens fundamentais à vida humana, reformando e melhorando o mundo presente. Esta me parece ser uma utopia possível, que não só a esquerda, mas todas as que querem uma humanidade mais civilizada deveriam buscar.

Em contrapartida, o consumo cada vez mais intenso seja de objetos ou de lazer e os novos inventos tecnológicos parecem que se tornaram a grande "utopia" do mundo dos incluídos. Neste ambiente os valores humanos cederam lugar ao desfrute individual egoísta. Assim, as utopias assumem faces e conteúdos diferentes por conta dos pluralismos de valores, de concepções e dos diversos lugares sociais que as pessoas ocupam. Uma utopia universalista, unívoca, parece impossível neste final de milênio.

E por falar em milênio, todo final de século e de milênio se presta à proliferação de utopias religiosas e de seitas místicas. De qualquer forma, a esperança e o desespero parecem que se alimentam continuamente à imaginação de todos aqueles que querem buscar saídas para um mundo reconhecidamente conflitante no qual muitas pessoas encontram dificuldade em dar sentido à sua própria existência.

Do ponto de vista político acredito que, mesmo agindo com o realismo necessário na busca de soluções para os problemas do presente, não está afastada a necessidade de agir segundo valores. Os valores do humanismo, da liberdade, da solidariedade, da justiça, da igualdade e da civilização são as balizas mestras ou a estrela polar que deve nos guiar neste mar de incertezas que é o mundo do nosso tempo. Agir segundo valores é uma exigência fundamental para todos os que querem fazer política de maneira ética e responsável. Caso contrário, a ação política se destinaria apenas para realização de interesses pessoais ou para a busca do poder pelo poder. Quando se age sob orientação de valores, a ação e o poder se tornam instrumentos para a realização de fins mais elevados relacionados aos interesses e ao bem da sociedade. Neste sentido, a ação orientada por valores também tem uma dimensão utópica necessária, que confere um sentido moral à existência humana.

José Genoino é deputado federal PT/SP


Renato Borghi

Depois de receber o convite para escrever sobre este tema, imediatamente entrei em processo de auto-indagação, que estendi, posteriormente, a amigos de minha geração e a outros de gerações mais jovens. As perguntas foram sempre as mesmas: as Utopias faliram todas?

Minha geração (anos 60) foi essencialmente utópica e caminhou concretamente, por meio de atos e palavras, na direção dos ideais que postulava. Nos anos 60, acreditávamos em sociedades mais justas, com uma distribuição de renda menos perversa, cultura e educação ao alcance de todos, a mulher ocupando seu lugar na sociedade, o direito à saúde, higiene, moradia, direito à terra e à libertação e desmitificação de velhos credos moralistas.

O medo da proximidade dessas Utopias levou o exército brasileiro a dar um golpe mortal nesses movimentos que já começavam a tomar corpo e, com o apoio das marchadeiras batendo suas ridículas panelas, deu o golpe militar de 1964, trazendo consigo mais de 20 anos de ditadura, prisões, torturas, censura estúpida e violenta sobre a criação artística, principalmente a produzida nos teatros que chegaram, nos anos 60 e 70, a ser parte integrante dos movimentos de mutação social, indicadores de caminhos e pensadores do Brasil como um grande projeto para uma nova ordem.

Nesses 20 anos de ditadura, entretanto, um plano diabólico foi urdido para a contenção dos movimentos históricos que corriam em direção às primeiras e mais necessárias Utopias. A inquietação, o desejo de mudança, o espírito rebelde foram acalmados por campanhas publicitárias de um novo "brazilian way of life" mais relax, e chique; um Brasil de executivos bem-sucedidos, com seus ternões fartos e cara de tédio. Um modelo americano de competência pela capacidade de venda e sucesso meramente quantitativo foi colocado em pauta com a "Utopia da Modernidade". As novelas de TV triunfaram, substituindo os ideais utópicos, que exigiam revoluções, pelos mitos de Cinderela e Pigmaleão. O Gênio não é mais o criador de obras que representem os anseios fundamentais da humanidade, mas aquele que "bola" planos eficientes de venda.

Hoje estamos entrando no terceiro milênio com uma massa gigantesca de indigentes famintos, doentes, analfabetos, marginalizados por uma sociedade eternamente controlada por elites cada vez menores.

Atualmente essas elites se vangloriam de avanços tecnológicos em direção a uma sociedade onde as máquinas e robôs farão o trabalho de 20 homens. Lindo! Se essas máquinas aliviassem realmente a canseira da existência humana e trouxessem consigo uma era de lazer, conforto e direito aos bens culturais. No lugar disso o que vemos? Os arautos do terceiro milênio anunciam com suas caras frias e cinicamente conformadas que as novas descobertas, os novos avanços tecnológicos são irreversíveis, como também é irreversível o desemprego mundial causado pela substituição do homem pela máquina.

Se as rocas e os fusos fiassem sem tanto esforço do braço humano, que maravilha seria o mundo, pois o homem teria mais tempo e mais espaço para desenvolver seu espírito e sua criatividade, levando uma existência mais repousada e fértil de novas idéias. Isso é o que pensava Galileu Galilei. E o que vemos na realidade? Uma horda crescente de famintos e desempregados. As novas descobertas não visam aliviar o esforço excessivo do trabalho humano, mas simplesmente substituí-lo por máquinas, deixando a maioria do gênero humano desempregada, deprimida, um bloco de párias sem nenhuma utilidade para a nova ordem utópica da globalização do planeta. Mas vão globalizar o quê? Só o conforto, o luxo, o charme das Cosmo-Elites internacionais? Vão globalizar o Zaire? Os bolsões de miséria da África? A fome, a miséria, a violência e podridão das favelas brasileiras? Vão globalizar isso também? Duvido.

Sempre me reporto a Galileu de Bertolt Brecht: "Se os cientistas acham que basta amontoar saber por amor ao saber, a sua ciência se transformará num aleijão, e cada grito de alegria por uma nova descoberta corresponderá a um grito universal de horror! E o máximo que se poderá esperar de tais homens é uma dinastia de anões inventivos alugáveis para qualquer finalidade." No campo artístico, entre um grande elenco de homens e mulheres que se dizem atores, atrizes, diretores e dramaturgos, vamos reconhecendo, um por um, os anões inventivos que se alugam para qualquer finalidade, acreditando piamente que a função primordial do artista de hoje é se dar bem e ser aceito nas fileiras do mercado financeiro.

Um índio guerrilheiro tem nos enviado vários alertas via Internet, chamando a atenção com palavras muito claras para um possível Apocalipse. É mais ou menos isso o que diz o guerrilheiro mexicano: uma pequena elite, uma classe que não quer ser tocada, com jornalistas e comunicadores sentados à mão direita, ameaça destruir os valores e as conquistas mais preciosos da humanidade pela colaboração, em seus lugares, de valores frios e pragmáticos do mercado financeiro. Estamos no limiar de uma quarta guerra mundial, onde as bombas não serão mais a atômica ou a de neutrons, mas o jogo financeiro fará uma devastação muito maior. Todos os valores humanistas da civilização européia, por exemplo, correm grande perigo. A qualquer momento, podem destruir Proust, Joyce, porque não rendem dividendos tão expressivos. Esta Nova Ordem das Elites Mundiais deseja uma humanidade prostrada e envergonhada como uma imagem de Genet. Só depois de prostrados e envergonhados de nossa competência diante da magnitude do mercado financeiro, é que poderemos humildemente nos tornarmos soldadinhos de chumbo do regime regido por Deus Cifrão.

As Utopias acabaram realmente? NÃO! Hoje elas não são mais sonhos acalentados por universitários à sombra das Arcadas. Hoje elas são uma exigência concreta, tal como o preenchimento do estômago e a preservação da espécie. O que rende na Bolsa ou o que sai na TV não mata a fome da população mundial sempre crescente. A Utopia, agora, é uma necessidade, não mais um sonho, mas sim uma realidade. Se ela não se realizar, agora que o mundo está tecnologicamente preparado, vai haver um colapso da civilização e, quem sabe, o mundo acabe em meio à barbárie impiedosa dos soldados do Grande Mercado. A Utopia da Necessidade tem reagido e tomado a forma clássica dos protestos: as Marchas, a força do arcaico aqui e agora. Os sem-terra não querem mais promessas, querem ação efetiva. As invasões marcam o ponto de protesto dos estômagos sempre vazios. E ainda tem os sem-teto, os sem-nada, os sem-tudo.

Quanto a nós, artistas que acreditamos num trabalho mais genuíno, menos poluído pelas exigências mercadológicas, estamos apenas começando a reivindicar nosso direito à produção e à visibilidade. Acreditamos no que diz Zé Celso: "O teatro é um espaço de ressurreição." Como membro da geração 60, continuo utópico apesar de tudo e fecho com o professor Darcy Ribeiro: "Olhando meu povo e ouvindo-o falar, é fácil perceber que é, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia, mas melhor porque lavada em sangue índio e sangue negro."

A Utopia Máxima? Queremos dividir os lucros, queremos também para nós os dividendos até agora retidos nas mãos egoístas das Elites Internacionais.

Renato Borghi é ator


Nelson Ascher

Qualquer pergunta genérica, envolvendo um juízo de valor, acerca da situação do mundo ou da espécie humana, admite fundamentalmente três tipos de resposta, a saber: 1) a crise está sendo superada; 2) arrependei-vos que o dia do Juízo se aproxima e 3) leia tais ou quais autores e você constatará que tudo sempre foi a mesma m...

Essas respostas são chamadas respectivamente de otimista, pessimista e cética e, se bem que habitualmente denotam graus crescentes de inteligência - o otimista sempre quebra a cara; o pessimista, raramente (devido ao princípio segundo o qual é sempre mais prudente sair com um guarda-chuva, mesmo no Saara), porém perde muitas oportunidades; o cético tende a comparar os fatos mais equilibradamente ou a não perder tempo investindo emocionalmente neles, eles correspondem mais a estados de espírito ou predisposições temperamentais do que à realidade, seja lá o que for.

Se há uma coisa suficientemente líquida e segura é a de que as coisas são complexas, estão ficando cada vez mais complexas e - eu acrescentaria, entremostrando meu próprio ceticismo (devidamente enriquecido com as virtudes intelectuais descritas acima) - isso não é bom nem mau: é assim.

No que diz respeito às aspirações das pessoas no Brasil e, em especial, às suas aspirações mais elevadas ou a mais longo prazo, aquelas conhecidas como utópicas, há bons argumentos para reforçar qualquer um dos três tipos de resposta.

Indiscutivelmente, se eu comparar a minha geração (nascida na virada dos anos 50/60) com os adolescentes atuais, decresceram a crença na perfectibilidade palpável do mundo, a idéia de que cada indivíduo deveria se empenhar na criação de uma sociedade ideal e a aposta na militância política, enquanto a futilidade, o egocentrismo míope e o consumismo cresceram proporcionalmente.

Por outro, retrucaria o otimista, pode ser que causas irrealizáveis (que, diga-se de passagem, quando se realizavam só davam pepino) tenham sido abandonadas, mas outras, aparentemente mais estreitas - idiotas mesmo, diriam alguns -, como salvar as baleias, as tartarugas e a floresta tropical, enfim, coisas que não alteram em nada o que era visto como o problema central (a estrutura de classes ou de exploração do homem pelo homem ou o imperialismo internacional) vêm sendo dotadas e definidas por muita gente: veja-se, por exemplo, a multiplicação das ONGs e o ótimo uso que essas fazem de novos recursos tecnológicos como a Internet.

Em primeiro lugar, não duvido que os adolescentes de hoje sejam, em geral, mais idiotas do que eram na minha geração. Eles não estão tomando o partido das baleias por verem nisso uma batalha pequena e que pode ser vencida, mas sim porque perderam toda a noção de uma articulação mais ampla das coisas. Nós, que no final das contas não a tínhamos, acreditávamos na sua existência. Eles nem desconfiam dela.

Em suma, embora não chegássemos nem de longe a compreender a máquina do mundo, educamo-nos pelo menos numa atividade interessante e útil: o pensamento abstrato. Deixá-lo de lado é uma grande perda. Só que a folha corrida de serviços de meia-dúzia de ONGs já é, à essa altura, maior do que e de todos os grupelhos clandestino-conspiratoriais de esquerda que já houve. Talvez a maior realização desses últimos tenha sido a de não desencadearem sua revolução.

E, de resto, aqueles que chamaríamos, nos anos 70, de "alienados", ou seja, a turma dos shoppings, danceterias, a menina que só pensa em ser top-model e o menino cujo o sonho é ter sua própria banda de rock, eles são parte menos do problema do que da solução. Imagine-se o seguinte: é mais provável que o bom samaritano, ávido por ajudar a vítima de um desastre automobilístico, acabe lhe quebrando a espinha, pois nesses casos o certo é ficar de lado, não criar tumulto e esperar o socorro profissional. E quem não prejudica (ainda que com intenções maravilhosas) já pode ser considerado, nos dias complexos que correm, um sério candidato à canonização.

Nelson Ascher é articulista da Folha de S. Paulo, poeta, ensaísta.


Antonio Bivar

No século 15, época em que o mundo se mo-dernizava - com a Renascença, as grandes navegações, os descobrimentos, etc - a palavra utopia (de origem já antiga, grega, significando O LUGAR) ganhou um significado também renascentista. O poeta, humanista, estadista e escritor inglês Thomas Morus (1480 - 1535) a pôs no título de livro que escreveu cujo miolo tratava de um país imaginário onde tudo, no sistema político e social, era organizado de forma perfeita. O socialismo utópico se baseava na premissa de que se o capital fosse voluntariamente entregue ao Estado (os trabalhadores), desemprego e pobreza seriam naturalmente abolidos. Ou seja, o controle de tudo ficaria nas mãos da comunidade, e esta, consciente - por que tudo seria perfeito - agiria para que o resultado fosse o bem-estar de todos.

Se a idéia, marxista avant la lettre causou re-voluções, guerras e extermínios, quatro séculos depois, não é difícil imaginar o que poderá ter causado no tempo em que seu autor lançou. Mas não. Utopia, o livro, até que foi aceito. Chanceler no reinado de Henrique VIII, Thomas Morus foi julgado e decapitado por outro motivo. Foi contra o ato impulsivo do rei, de fazer com que a igreja católica da Inglaterra não mais prestasse contas ao Vaticano e sim pagasse seu tributo à coroa britânica, tornando-se desde então igreja anglicana (mas basicamente seguido os rituais católicos). Morus foi canonizado pelo Vaticano em 1935. Hoje é santo. E nem poderia deixar de sê-lo. Idealismo, esse idealismo de querer uma vida correta para todos, é uma forma de santidade. Por mais discutível, absurda ou abstrata, que sua manifestação possa parecer.

Hoje questiona-se o fim da utopia, ou, no plu-ral, utopias. Primeiro, por que para maioria a vida é uma correria estressante. Mal se dá conta do recado e se mal sobra tempo para uma aprofundação maior em pensamentos positivos, que dirá em praticar esses pensamentos. O progresso desenfreado lado a lado com a agonia do atraso, a má distribuição do capital, excesso aqui, precariedade ali, etc, fazem com que a balança, ainda que continue sendo a mesma balança, pende para desequilíbrios os mais abruptos. Mas o ser humano continua basicamente puro - como Adão e Eva o foram, num dado momento -, só que agora a humanidade é constantemente avalanchada por frutos de pecados os mais variados e apelativos. A começar por essa esquisita janela para o mundo - ou do mundo, diretamente para dentro da casa - que é a tela de TV. Mas ainda que aparentemente soterrados, muitos dos valores eternos continuam vivos. E vivos continuarão, já que eternos. Se hoje generalizando, as pessoas aparentam viver em egoísmo, cuidando de primeiro resolver suas necessidades individuais, exemplos não faltam, de que as coisas não são assim. O aparecimento recente de dois carismas de nossa época fez com que milhões de pessoas em todo o mundo de algum modo caíssem na real. Foi como uma redenção espiritual coletiva. A morte física de pessoas carismáticas como a Princesa Diana e a Madre Teresa de Calcutá teve a força impactante de uma redenção. O resultado desse impacto atingiu o nervo mais sensível do consciente coletivo. Ao menos naqueles dias do começo de setembro - e aqui a mídia serviu como grande catalisadora, principalmente a televisão - anjos do bem e seus dons alados de serviço de salvamento e transporte nos resgataram novamente a trilha do pensar utópico - porque imagens de flashes-back da vida das duas mulheres e seus exemplos de como fazer o bem próximo e ajudar a humanidade carente tornaram claríssimas as três virtudes básicas: Fé, Esperança e Caridade. Sentimos em nós próprios, vivas essas três virtudes, só faltando trabalhá-las com mais afinco. E ao ouvir dos lábios de Lilian Witte Fibe, no Jornal Nacional, que a Madre Teresa costumava dizer que "riqueza é pobreza", entendemos perfeitamente o que ela quis dizer com isso.

Não. A utopia não morreu. Apenas, com tantas outras virtudes, ela espera, sob escombros, a vez de voltar à tona e à luta. E nos damos conta de mais de uma vez ter chegado o tempo não só de pensar no próximo, mas, também, de algum modo, de dedicar parte do nosso tempo à prática dessa idéia.

Antonio Bivar é escritor


Domingos Barbosa da Rocha

Sempre fui obrigado a conviver com um difuso saudosismo de um passado que, na verdade, nem posso afirmar se tenho lembranças.

Certas falas povoam meu inconsciente e, com certeza, condicionam algumas das minhas ações hoje. São frases como "antigamente as estações do ano eram mais definidas", "os vizinhos eram mais amigos antes" ou "há 20 anos andava-se à noite com tranqüilidade em São Paulo" etc... etc...

Meias verdades, meias mentiras.

Quando olhamos o ontem, já o fazemos, felizmente, com outros critérios. Certamente somos mais coerentes ao fazer planos para o amanhã.

A questão das utopias, se existem ou deixaram de existi, peca por se contaminar pelo saudosismo com que tentamos nos olhar no passado, sem perceber o quanto nós e os meios onde agimos mudamos.

As utopias sempre apontaram situações sociais comparativamente melhores do que as que vivemos. É uma idealização de futuros para nós e nossos semelhantes.

Onde, então, a origem da preocupação com o fim das utopias?

As nossas utopias sempre nos fizeram pensar num sistema, nas relações entre o pensamento (ideologias e valores) e os meios, as formas de produção e distribuição dos bens.

Em decorrência, as nossas utopias se assemelhavam a conquistas heróicas que se fariam, de preferência, com sacrifícios de vidas, até mesmo para que não pudéssemos sequer usufruir a utopia idealizada.

De uns anos para cá, entretanto, as sociedades contrariaram tanto as nossas expectativas que modificaram nossas formas de idealizar nossas utopias.

Quem sonharia que um muro que dividia mais do que duas cidades, dividia dois conceitos estruturados e antagônicos de civilizações, fosse derrubado em meio a festividades de certa forma até adolescentes?

Não se trata também de ver o nosso momento pelo viés de um otimismo alienante. Sabemos o quanto se democratiza a indignidade pelo mundo.

Mas, os modelos de melhorias sociais já não são mais tão monolíticos para gerar utopias universais.

Cada um de nós não deseja mais um modelo de estrutura social, mas melhorar sua qualidade de vida e a de seu semelhante, definindo critérios mais claros.

As utopias hoje são mosaicos de aspirações, materializados em movimentos, causas e lutas.

Talvez essas utopias tão cotidianas não inspirem poemas, romances ou não estimulem atos heróicos, mas, nós sentimos a presença dela em cada conquista e, melhor ainda: quando idealizamos essas pequenas e cotidianas utopias, nós fazemos parte delas como beneficiários das ousadias.

Domingos Barbosa da Rocha é gerente do Sesc Ipiranga