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O futuro do federalismo

A solução é um país federalista

VAMIREH CHACON


Vamireh Chacon
Foto: Hilton de Souza

Vamireh Chacon, bacharel e doutor em direito, é professor emérito da Universidade de Brasília. Fez pós-doutoramento na Universidade de Chicago. Foi durante décadas professor titular de economia política na Faculdade de Direito do Recife, e de história política e ciência política na Universidade de Brasília. É com freqüência professor visitante em universidades da Alemanha, França, Portugal e Estados Unidos.
Entre outros livros, escreveu "Gilberto Freire – Uma Biografia Intelectual", "História dos Partidos Políticos Brasileiros" e, mais recentemente, "A História do Legislativo no Brasil".
Esta palestra de Vamireh Chacon, com o tema "O futuro do federalismo no Brasil", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac no dia 11 de setembro de 2008.

Falar sobre o presente é inevitavelmente falar sobre o passado. Um escritor, não propriamente cientista social, William Faulkner, disse muito bem: o passado não passou, porque se tivesse passado não se teria mais falado sobre ele. Se continuamos a falar dele, bem ou mal, é porque ainda não foi sepultado pelo esquecimento. Então, para entender o federalismo do Brasil, temos de recordar o que outra pessoa disse de maneira metodológica, bem mais exata. Fernand Braudel mostrava muito bem que a cultura é o fato de transformação social mais lenta, a começar pela língua. Lemos com tranqüilidade Camões ainda hoje, pouquíssimas palavras entraram em desuso. Isso se aplica também à política e ainda mais ao direito, sobretudo o direito escrito.

O federalismo brasileiro é recente, vem de 1891, ano da primeira Constituição republicana. Os governadores, então denominados presidentes de província, eram nomeados pelos ministros dos partidos vencedores na eleição. Só havia dois partidos, o Conservador e o Liberal, na realidade ambos eram conservadores e ambos liberais, mas a diferença é que um era liberal conservador e o outro conservador liberal. Parecia um jogo de palavras, mas não era, só uma questão de substantivo e adjetivo. Os conservadores eram substantivamente conservadores e adjetivamente liberais e o oposto acontecia no partido rival. Isso, repito, era de uma importância muito grande, porque estava feita a divisão muito mais profunda do que hoje em dia. Concretamente, o Partido Conservador no Brasil se opunha a todas as reformas, sem exceção. Por isso eram conservadores. Mas foi o partido que realizou as principais reformas no Império, porque quando elas se tornavam inevitáveis o Partido Conservador as endossava, tomando a bandeira das mãos liberais. Essa era a dialética do Império brasileiro, profundamente sábia.

O abolicionismo, que é o caso mais expressivo, desde o início foi reivindicação dos liberais, dentro e fora do Parlamento. Mas todas as reformas, a Lei do Ventre Livre, a dos Sexagenários e a Lei Áurea, e antes disso a proibição do tráfico em 1850, tudo foi feito pelos conservadores.

O Brasil podia fazer isso porque era um Estado unitário, desde o período colonial ou, para ser bem exato, desde a criação da capital do vice-reinado do Brasil, em 1549, em Salvador da Bahia. O Brasil surgiu de cima para baixo e não é pelo fato de estar na América. Os Estados Unidos obviamente surgiram de baixo para cima, ainda hoje é um país que não tem nome, porque são 13 colônias que nunca tiveram um governo geral. Elas dependiam diretamente de Londres e resolveram simplesmente se federar, é uma federação prototípica. Mas não é a primeira, porque a federação do mundo pioneira é a Suíça, desde a Idade Média, e no Renascimento houve a Holanda. Daí que o nome oficial não é e nunca foi Holanda, mas Províncias Unidas dos Países Baixos.

Pátria e linguagem

O Brasil, portanto, foi unitário durante 340 anos, de 1549 a 1889. Isso forma a mentalidade por um lado e a deforma por outro. Somos federalistas há 120 anos, de 1889 a 2009. Por que isso? Porque estamos falando português na sala de aula, nas conferências, na televisão, nos comícios e dentro de casa. Como disse muito bem Fernando Pessoa, a pátria é a língua. As aproximações tão íntimas entre o Reino Unido e os Estados Unidos historicamente e entre nós e o povo ibérico, através de Portugal, são conseqüência da língua. É ela que nos une e nos faz diferentes de nossos vizinhos. Herdamos uma tradição cultural unitária. Em Portugal tudo dependeu sempre de Lisboa, nunca existiu uma província chamada Alentejo ou Minho. São regiões geográficas e culturais, não administrativas. A comunicação é direta entre o município e a capital, não há mediação institucional organizativa de nenhum tipo. Isso Portugal transmitiu a todo o império, tudo era com Lisboa. Havia vice-reinados que reproduziam o modelo institucional originário, inclusive no Brasil. Todas as nossas demandas, solicitações e polêmicas eram feitas com o governo-geral, desde Tomé de Sousa, a partir de 1549. Tudo dependia de Salvador da Bahia, posteriormente do Rio de Janeiro e ultimamente de Brasília. No Brasil só conseguimos pensar duas coisas: o município em que se vive e a capital federal. O estado é uma coisa que está pelo meio, que ninguém sabe direito o que é, mesmo os estados mais ricos, como São Paulo e Minas Gerais.

Em última instância, o que existe é o município, o municipalismo. O brasileiro tem, portanto, essa reação instintiva: em primeiro lugar municipalista e em segundo lugar regionalista. O máximo que houve em termos de federalismo no Brasil foi estadualismo, assumido conscientemente por Campos Salles. Já no início da República, com a decepção diante da Constituição, que recebia muitas críticas, figurava essa de que o federalismo de Rui Barbosa, demasiado inspirado nos Estados Unidos, não correspondia a nossa realidade. Campos Salles não empregou o termo "estadualismo", mas usou explicitamente, inclusive em discursos presidenciais, "política dos governadores". Isso continua havendo. Se não há federalismo, há estadualismo, embora os governadores nem sempre contem com respaldo interno.

Os Estados Unidos têm uma tradição municipalista acoplada a uma tradição federalista desde o berço. Alguns municípios, como acontece em alguns cantões da Suíça, me parece que são os últimos lugares do mundo onde ainda hoje há eleição direta, o town meeting, em que não há voto secreto. Levanta-se a mão e elege-se o prefeito e a Câmara Municipal. Todas as colônias eram assim. À medida que a população foi crescendo, evidentemente isso se tornou impossível. Como seria fazer isso em São Paulo ou até mesmo numa cidade de 100 mil habitantes? Alguns otimistas imaginam uma democracia eletrônica no futuro, informatizada. Seríamos consultados via internet e poderíamos até legislar. A hipótese é tecnologicamente possível já hoje, mas do ponto de vista de consciência cidadã parece que ainda estamos um pouco longe disso, mesmo nos Estados Unidos e na Suíça.

O Brasil se antecipou a muitas mudanças no mundo. Dizia-se sempre que as câmaras municipais eram submissas ao poder central de Portugal. Isso não é verdade, elas foram insubmissas desde o começo. Isso é importante frisar, desde o começo. Quanto ao voto, o sufrágio universal é recente, tem pouco mais de cem anos. As mulheres ainda hoje são excluídas desse direito em vários países, inclusive ricos. Afirmar que isso só é assim porque acontece no Brasil não corresponde à verdade. Os portugueses, eu não diria naturalizados porque não existia ainda o Estado brasileiro, mas aculturados aqui, se rebelavam contra a metrópole. O exemplo mais chocante é o do Maranhão, em 1684. Os irmãos Beckman, de nome alemão mas ambos lisboetas, de pai e mãe portugueses (o avô era alemão), sublevaram a cidade de São Luís do Maranhão e proclamaram a independência do Brasil. Os maranhenses resolveram aceitar a proposta dos Beckman e o resultado foi que um terminou decapitado e o outro morreu no exílio, em Angola. Não foram de forma alguma submissos. Em Olinda, Bernardo Vieira de Melo também proclamou a independência, em 1710. Eles entendiam por Brasil uma coisa muito vaga. O brasileiro não sabia o que era ser brasileiro, mas se sentia diferente do português.

Quais são os entes federados no Brasil? Antigamente eram só os estados, hoje não. Está no artigo 1º da Constituição: os entes federados são os estados, os municípios e o Distrito Federal. Os municípios também se transformaram em entes federados, o que não eram anteriormente. O legislador constitucional foi sábio em incluí-los. Como conseqüência disso, em primeiro lugar, há a questão de impostos. No mundo inteiro o federalismo termina em uma discussão de orçamento. Sabemos da antipatia com que as capitais são vistas no mundo, como a maioria dos franceses detesta Paris, os britânicos Londres e os alemães, quase todos, Berlim. Na Espanha existem até diferenças lingüísticas entre a capital, Madri, e Barcelona, Santiago de Compostela e Bilbao. Nos Estados Unidos também se odeia Washington. Então a destinação das verbas é extremamente prolixa e existem as guerras fiscais, proibidas explicitamente pelo artigo 152 da Constituição. Aliás, é um dos artigos aos quais pouca importância se dá. É hora de o STF [Supremo Tribunal Federal] se pronunciar contra essas disputas fiscais, que são inegavelmente concorrência desleal. Mas uma vez que o federalismo tende a ser no mundo inteiro, não só no Brasil, cooperativo, distanciando-se cada vez mais do federalismo clássico, temos de descobrir formas compensatórias para os outros estados.

Novos estados

Não existe outra solução no Brasil senão ser federalista, por um motivo muito simples. Tanto quanto ou mais ainda do que a maioria dos países grandes do mundo, há vários Brasis. O Brasil é produto de nosso instinto, não de nossos interesses nem de nossa inteligência. Para a convivência mais ou menos pacífica desses Brasis não existe alternativa senão o federalismo. Pode-se até discutir se os estados devem ser subdivididos. Em princípio, do ponto de vista econômico a médio prazo, sim. Mas a curto prazo com certeza não, porque tudo se transformará imediatamente em uma quantidade descabida de empregos públicos estaduais, além dos poderes estaduais, tudo representando uma soma considerável. No entanto, é praticamente impossível evitar que surjam alguns novos estados.

Como vamos conciliar isso é mais uma vez a quadratura do círculo, mas vamos descobrir uma fórmula à medida que as circunstâncias surjam. Um exemplo mais recente é Tocantins, um estado que está conseguindo avançar sem Goiás. No fundo a intenção era manter a arrecadação estadual, que era 90% obtida no antigo território ao sul do Tocantins atual, transferindo o problema da região mais ao norte para o governo federal. Isso do ponto de vista do governo federal não é bom, porque são novas despesas, recursos a fundo perdido ou de rentabilidade longínqua.

Por tudo isso, não vejo outra solução a não ser o federalismo. Eu próprio sou federalista e acredito que é quase impossível encontrar adeptos do Estado unitário no Brasil.

O Estado unitário é pesado por definição. Vejam o caso da França nos dias atuais. Não há possibilidade de o país retomar o dinamismo econômico da maneira que está organizado. Desde a Revolução Francesa esse é um Estado unitário, antes não era. A Alemanha nunca foi, a não ser durante um período de tempo muito curto, entre 1933 e 1945. O país tem a tradição do Sacro Império Romano-Germânico, que, por mais críticas que recebesse, tinha sete grandes eleitores, os principados que realmente mandavam. Durante mil anos a Alemanha teve imperadores eletivos. Havia um parlamento, que funcionou inicialmente em Frankfurt. Napoleão Bonaparte acabou com isso tudo. Depois da batalha de Austerlitz, liquidou o Sacro Império e entregou os grandes eleitorados, com exceção de três apenas – Baviera, Áustria e Prússia–, a seus parentes. A experiência não deu certo, como se viu em Waterloo, e aí começou tudo de novo.

Segurança pública

A questão mais delicada e muito mais polêmica em tudo isso é a intervenção federal para segurança pública. Na Constituição Federal está escrito que a defesa da lei e da ordem é uma das exigências fundamentais. Na prática, o Rio de Janeiro e alguns outros estados estão pedindo verbalmente ao presidente da República a presença das Forças Armadas para garantir a segurança. Isso é rigorosamente ilegal e inconstitucional. A intervenção somente pode ocorrer por solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo impedido ou por requisição do STF. Quer dizer, ou o governador do Rio de Janeiro pede isso por escrito e não apenas verbalmente, ou a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro ou de qualquer outro estado do Brasil ou ainda o STF decreta. A criação dessa força de segurança nacional, da maneira como está colocada, é indefinível, ninguém sabe o que é isso. Estão recorrendo ao artifício de compô-la com forças estaduais. Mas não há nenhuma lei que institua essa força. Talvez tenhamos de constituir um outro corpo. Existem experiências, como na Argentina a Gendarmería, a Guardia Civil na Espanha e até mesmo a National Guard dos Estados Unidos. É preciso ver o que se pode fazer quanto a isso, porque do ponto de vista de exército, marinha e força aérea estamos proibidos, pela Constituição, de banalizar sua utilização. Compreendo que as realidades políticas muitas vezes atropelam as exigências jurídicas, mas não podemos continuar insistindo em agir de maneira antiinstitucional e ilegal.

Debate

NEY PRADO – Também penso que o Brasil não tem outra forma de organização senão o federalismo cooperativo. Mas há uma dialética que não fecha, porque temos, por força da necessidade desse federalismo, diferenças do ponto de vista econômico, cultural e político. Essa diversidade faz com que surja a necessidade de estabelecer critérios estaduais ou regionais. Porém, temos um entrave que é a Constituição, que castra o federalismo na medida em que chama todo o poder para si. Ela parte do pressuposto de que os legisladores futuros precisariam ser contidos por regras permanentes. Hoje as constituições estaduais e o regramento municipal não têm autonomia jurídica senão do ponto de vista formal, porque o referencial está na Carta. Então no fundo temos um centralismo jurídico que impede a autonomia do federalismo.
Na Comissão Afonso Arinos se elaborava um texto que não era voltado para o futuro, mas com o propósito de penalizar o passado. Queria-se, e com certa razão, impedir de alguma forma que voltássemos ao autoritarismo e assim as Forças Armadas foram cerceadas em seu poder tradicional, que é de manter a ordem, a lei e as instituições. Os ministros militares ficaram preocupados com esse texto e o almirante Mario Cesar Flores, como intérprete das Forças Armadas, argumentou que podem ocorrer movimentos contestatórios internos e, não havendo possibilidade de as polícias estaduais arcarem com a solução, as Forças Armadas precisariam intervir. Foi aí que surgiu a idéia de dar também a competência ao Legislativo e ao Judiciário, para que, em casos de subversão interna por provocação de qualquer um dos poderes, as Forças Armadas pudessem intervir.

VAMIREH – Desde 15 de novembro de 1889 as Forças Armadas assumiram, não só por vontade própria mas também por apelo dos civis, o papel de poder moderador, porque as funções que elas têm ainda hoje são as do imperador. Pode parecer piada, mas há um excelente livro de um diplomata britânico, Ernest Hambloch, escrito em 1934 com o título de Sua Majestade, o Presidente do Brasil. Só que o poder moderador foi diluído e, em último caso, a manutenção da lei e da ordem não é função nem da polícia municipal nem da estadual. É federal, das Forças Armadas, o que criou um impasse jurídico até agora insuperável.
Na Assembléia Nacional Constituinte, fui testemunha ocular, os ministros militares visitaram os gabinetes de todos os deputados e senadores constituintes, pedindo que não retirassem da bandeira brasileira as palavras "Ordem e Progresso", como era tendência inicial. Foram à paisana, dizendo que na Escola Superior de Guerra não é mais "Ordem e Progresso", mas "Segurança e Desenvolvimento", e isso seria atualizado. E como não podemos fazer essa substituição, mantenha-se pelo menos "Ordem e Progresso". Isso foi aprovado por unanimidade, inclusive por constituintes comunistas e petistas. Não se trata apenas de inconsciente coletivo, mas de consciente coletivo.

ROBERT APPY – Na França houve uma tentativa de formar uma federação, mas a idéia foi afastada por medo da ditadura. Penso também que infelizmente o federalismo custa muito caro, porque existe a Justiça Federal. Como economista gostaria de eliminar o federalismo. Não que seja uma boa solução, mas não há dúvida de que ele tem um peso muito grande e até atrapalha o rating do Brasil, quando se considera que nossa maior deficiência é a administração. Do ponto de vista econômico, os problemas não são estaduais, são regionais. Certamente haveria uma melhora se existissem regiões em vez de estados. Finalmente, não há dúvida de que o federalismo é um modo de deslocar dinheiro de um estado para outros. Ele tenta igualar a riqueza dos estados. Continuo pensando que economicamente não é a melhor solução para o Brasil.

LUIZ GORNSTEIN – A reeleição tem sido benéfica para o Brasil?

VAMIREH – No regime parlamentarista esse problema não existe. Em geral os primeiros-ministros demoram muito mais tempo no poder do que em nosso regime os presidentes. No caso do presidencialismo, há o exemplo máximo dos Estados Unidos. Lá o único presidente que teve quatro mandatos foi Franklin Delano Roosevelt, que morreu no começo do quarto mandato. A partir dele fez-se uma emenda alterando isso.
No caso brasileiro, por mais êxitos que um presidente obtenha, não deve ter mais de dois mandatos. Nunca acreditei que o presidente Lula deseje o terceiro mandato.

MARISA AMATO – Temos um território muito grande e todo esse regionalismo é normal, existe em todos os países, mas o nosso às vezes parece mais marcante porque tem extremos. Até a linguagem fica às vezes difícil de entender. O senhor vê ainda alguma possibilidade de o Brasil se dividir? Ou será que a globalização vai minimizar as diferenças regionais? Como o senhor vê o futuro nesse aspecto?

VAMIREH – Ninguém sabe como o Brasil e o mundo serão depois de oito ou dez anos a partir de hoje. Tudo o que se publica, inundam-se as livrarias, tudo é fantasia, é encomendado, tem uma importância muito pequena ou nenhuma. Em relação à política, pode-se calcular mais a longo prazo. É potencialmente perigoso a médio prazo – mais de dez anos – o separatismo no Brasil. Temos de materializar nosso instinto de nacionalidade através do federalismo e do cooperativismo, para que não surjam, do ponto de vista legal, outros Brasis, porque realmente já existem. E esse perigo pode ter influências internacionais. Não estou com mania de perseguição em relação à Amazônia, porque há muitas formas de dominação econômica mais importantes e mais profundas do que a política, mas esses distanciamentos têm de ser resolvidos através de articulações do regionalismo dentro do federalismo. Não subestimemos isso, porque há ressentimentos inclusive nas cidades.

MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Você considera o federalismo a melhor forma de governo para o país. Sou federalista, mas penso que o Brasil foi desenvolvido como um Estado unitário e as tentativas de federalismo aqui são sempre mancas. A maior parte dos recursos é dirigida ao governo central e municípios e estados ficam pendurados na distribuição de verbas federais. Tivemos tentativas de melhorar a federação no Brasil durante a Primeira República e depois do fim do governo de Getúlio Vargas, mas com os militares e com a Constituição de 1988 a questão piorou. Hoje somos muito mais unitários do que antigamente. Os governos estaduais de certa maneira se tornaram uma ficção.

VAMIREH – Considerando um juízo de valor, não gosto do separatismo nem do unitarismo. Mas do ponto de vista do juízo de realidade, não posso negar a tendência maior de um ou menor de outro. O separatismo menor tem sido mantido sob controle das Forças Armadas, com a ajuda das várias televisões. Estas têm dado uma contribuição enorme para uniformizar o Brasil, e nem sempre para o bem, com freqüência mais para o mal.

JOSUÉ MUSSALÉM – "Ordem e progresso" é uma expressão positivista, que remonta a Benjamin Constant, que era republicano, na Escola Militar. A pergunta é: com tanta tradição da República, como é que o exército vê hoje o Ministério da Defesa? Outra questão: a marinha tem uma posição, a aeronáutica outra, mas penso que o poder moderador principal tem sido o exército, até por ser a maior das forças.
Outro assunto: há um movimento pendular de esquerda na América Latina. Hernando de Soto, do Peru, numa entrevista no final do ano passado disse que era um movimento pendular mesmo e que vai terminar levando esses países para a direita através de golpes. Queria sua opinião sobre isso. Finalmente, Marisa levantou a questão do regionalismo e gostaria de lembrar uma coisa extremamente perigosa, que é a reserva Raposa Serra do Sol, cheia de ONGs religiosas, cujos membros são especialistas em biotecnologia, em minérios e em guerra na selva. Exército, marinha e aeronáutica estão monitorando 800 ONGs na Amazônia. Elas estão ensinando inglês aos índios, estão proibindo discos brasileiros e nunca vi tanto interesse na continuidade da reserva na faixa de fronteira. Queria ouvir sua opinião sobre isso.

VAMIREH – O Estado que não for capaz de se defender não é Estado. Esse foi o grande erro de Gorbatchov e o grande acerto de Deng Xiaoping. Quando este abriu econômica mas não politicamente a China, deu certo. Quando Gorbatchov abriu política e não economicamente, deu errado.
Imaginar que vamos enriquecer em termos de distribuição de renda no espaço de uma geração é um excessivo otimismo. O perigo de transformação de um país de jovens pobres em um país de idosos pobres já chegou.
Em relação a coisas aparentemente folclóricas sobre a proclamação da República lembro-me de Annibal Falcão, um pernambucano que escreveu um livro de memórias com um título péssimo, Fórmula da Civilização Brasileira. Ele relata o 15 de novembro como testemunha visual, afirmando que foi uma journée de dupes – expressão que pode ser traduzida como "jornada de otários". Quem proclamou a República foi um grupo muito pequeno de pessoas, inclusive ele próprio, que rapidamente se decepcionaram. Na realidade, no dia seguinte o poder já estava com o café-com-leite, os cafeicultores de São Paulo com os pecuaristas de Minas Gerais. Os republicanos históricos, civis e militares, eram todos da classe média urbana, gente que depois iria se incorporar à campanha civilista de Rui Barbosa, de Nilo Peçanha e finalmente à revolução de 1930.

JACOB KLINTOWITZ – Trago algumas impressões da área cultural para sua reflexão. Não sei se ter um Ministério da Cultura é benéfico para o país. Sempre me ocorre que se ele pertencesse ao Ministério da Educação teríamos uma visão mais holística da realidade. A centralização do processo cultural do ponto de vista de verbas, de organismos, tudo num ministério, foi um desastre para nós. A visão de processo cultural do próprio Celso Furtado, que era um homem de saber, era extremamente lamentável. Depois tivemos Aluísio Pimenta, que tinha uma proposta de incrementar as pequenas bandas das cidades rurais com um plano organizado por Ziraldo, na verdade um homem com projeto de cartunista. Então veio Francisco Weffort, um sociólogo paulista, e o advento escandaloso de Edmar Cid Ferreira. Nos últimos tempos tivemos Gilberto Gil, que, com uma visão colonial da cultura e uma espécie de delírio popular do barroco, transformou tudo num caos.
Todo o processo cultural hoje está ligado ao econômico e à liberação de verbas. Neste último período dependíamos da opinião de Gilberto Gil para decidir o que era e o que não era cultura. Tivemos em São Paulo cerca de 2 mil projetos parados, que não eram nem rejeitados nem aprovados, porque o ministério não tinha idéia do que se tratava.
Então a idéia de uma unidade – ainda que haja identidade lingüística mesmo com falares diferentes – é falsa. E o desenvolvimento cultural que possa apresentar diversidade, que é um valor de troca no mundo de hoje, é prejudicado porque é julgado e sustado por grupos diferentes que representam formas culturais diversas e às vezes retrógradas, como era o caso de Gil. Dentro dessa perspectiva, como esse centralismo do processo cultural, numa cidade como Brasília, com pessoas de origem e formação tão diferentes, pode ajudar ou prejudicar nosso país?

VAMIREH – Em nosso caso, com certeza o Ministério da Cultura é supérfluo, senão desnecessário. Ele não tem sentido nenhum, sobretudo num Estado que tem reincidências periódicas de unitarismo. A primeira vítima do federalismo é a cultura, com os resultados que se sabe. Pior que essas improvisações de ministros seria criar no Brasil uma burocracia da cultura que sobrevivesse aos ministros – aí realmente seria o fim da linha.

MÁRIO AMATO – Lendo os jornais e verificando o que está ocorrendo no país, vejo que os intelectuais se manifestam procurando as causas dos problemas. Mas o que está se fazendo para que se forme uma nova mentalidade? Não vejo nada e isso me preocupa.

VAMIREH – Na educação o Brasil optou pela quantidade, não pela qualidade, e o resultado, catastrófico, está aí nas provas do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e mais recentemente do Enade [Exame Nacional de Desempenho de Estudantes, cujo objetivo é aferir o rendimento dos alunos de graduação]. Para se ter uma idéia, pelo menos 35% das universidades e faculdades isoladas do Brasil deveriam ser fechadas.
Vejamos, no entanto, um dado otimista, para não ficar simplesmente olhando o lado negativo da vida e da educação. Em Brasília, entre outras idéias do governador José Roberto Arruda, interessantes e muito aplaudidas pela população, está a criação de centros olímpicos, incluindo piscinas, nos bairros mais pobres e mais miseráveis. É uma excelente idéia e por sinal está sendo apoiada por todos os partidos políticos e classes sociais.

LENINA POMERANZ – Enquanto não fizermos uma autocrítica séria a respeito de como ensinamos, metodologia e objeto de ensino, vamos ter jovens rebeldes, sim, porque a rebeldia é uma característica saudável da juventude, ainda que esteja sendo mal conduzida. Ela é levada para a pichação, para o quebra-quebra, para o armamento. Isso tem de ser visto pelos educadores e tem de ser pensado em outros moldes.

SAMUEL PFROMM NETTO – A seu ver, qual é o peso que tem sobre nosso federalismo a multidesigualdade, a extrema variação de extensão territorial e de riqueza entre os estados? Além disso, não haveria entre nós uma grande distância entre realidade e ficção em matéria de governo e de política, com esse nosso presidencialismo que herdamos dos militares, de Deodoro e Floriano até Castello e Geisel? Mais e mais, pelo que se observa, no imaginário popular ganha dimensões avassaladoras a concepção de que um presidente forte, autoritário e absoluto é o caminho para a solução de todos os problemas. Até que ponto o Brasil são Brasis tão diferenciados, e como isso complica o presidencialismo?

VAMIREH – Pessoalmente sou parlamentarista. Tenhamos, porém, autocrítica: a imensa população brasileira não entende o que é parlamentarismo e quando entende não gosta. O mecanismo é tão complicado que não compreendem como funciona na prática – dissolução, reconvocação para eleições dentro de seis meses, isso e mais aquilo, voto de confiança etc. A idéia que o povo achava mais simpática era a da monarquia. O ponto fraco é que esse monarca é constitucional. Aí já começava a encrencar de novo.

ADIB JATENE – Gostaria de ouvi-lo sobre o que acontece com o sistema público de saúde. Ele foi formulado como um sistema único, com comando único em cada esfera de governo, com descentralização em nível municipal, participação social e controle social. Ora, isso num país federativo, pluripartidário, com eleição a cada dois anos que cria conflitos e deixa seqüelas, é uma tarefa muito complicada. Quando se vai constituir um conselho municipal o prefeito quer o controle e quando se tem um órgão independente ele quer mandar no prefeito. Isso é a cultura autoritária de um país que não tem tradição democrática. Mas conseguimos uma estruturação em que foram criadas duas instituições – a Comissão Intergestores Bipartite em cada estado, da qual participam o secretário estadual e representantes dos secretários municipais, e a Comissão Intergestores Tripartite, que inclui o ministério, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais e o Conselho Nacional dos Secretários Municipais – que se reúnem a cada 15 dias em Brasília para negociar todas as decisões que vão ser implantadas. Isso tem permitido ao sistema funcionar minimamente dentro de uma diretriz unitária num país que é federativo. Gostaria de ouvi-lo sobre isso.

VAMIREH – Sinceramente, no caso específico da saúde, mais ainda do que em educação, acredito que a base tem de ser municipal. Se não for assim, nada feito. Por exemplo, o saneamento básico não pode começar pelo fim, pela parte mais dispendiosa, tem de se iniciar pela higiene pessoal, e isso precisa ser, antes de mais nada, municipal. O estado coordena e o governo federal dá os recursos. Esses programas todos funcionam quando acontecem na base. Um êxito formidável, nós sabemos, foi a erradicação da paralisia infantil, do sarampo. Isso se consegue, não há dúvida. Mas para doenças endêmicas sociais, sem base municipal, nada feito.

JATENE – O controle social que está havendo na saúde passa despercebido, porque temos uma Conferência Nacional de Saúde a cada quatro anos, precedida por 27 conferências estaduais, que por sua vez são antecedidas por mais de 3 mil conferências municipais, e os conselhos municipais estão pressionando fortemente as administrações.

VAMIREH – Vejamos algo também positivo, para não terminar só com preocupações. Em termos de ciência política, a definição de nosso regime, em síntese, é um presidencialismo plebiscitário e de coalizão. Isso corresponde a nossa mentalidade cultural. Precisamos eleger de quatro em quatro anos um imperador. Estava lá na Constituição de 1824, dom Pedro I era o defensor perpétuo da nação. O defensor é o tutor, em última instância. Cada eleição para presidente no Brasil é um plebiscito, julga-se tudo o que ele fez, tudo o que não fez, além do que não poderia ter feito. Entram nesse grande caldeirão o carisma, o messianismo, a Península Ibérica, a América Latina, tudo. Todos os esforços que foram feitos até hoje de reforma política têm sido em vão. Essa deveria ser a reforma número um.
O presidente Lula, justiça lhe faço, enviou outro pacote de reforma política, vamos ver se até o fim do mandato conseguimos algo das lideranças dos principais partidos. É quase certo que consigamos. Tiro até o "quase", é certo que consigamos, mas vai esbarrar nos nanicos e nas eleições de dois em dois anos. Então, se hoje as lideranças estão a favor da reforma política, no primeiro semestre de 2010 já não tenho mais certeza, porque há alianças municipais, estaduais e federais com os partidos nanicos e aí começa a escassear a presença deles nas reuniões, não se fala mais no assunto e começa tudo de novo. 

 

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