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Memória falida

Com dívidas e patrocínio reduzido, museus brasileiros enfrentam problemas

CEZAR MARTINS


O MuBE, em São Paulo / Foto: Divulgação

Com certidão de nascimento registrada pela pena do navegador português Pero Vaz de Caminha e um povo formado pela comunhão de imigrantes oriundos de todas as partes do mundo, o Brasil ainda não encontrou uma maneira de recontar seus quase 509 anos de história em museus eficientes. Embora tenha sido palco de incontáveis revoluções e movimentos artísticos e protagonista de importantes mudanças políticas e sociais na América do Sul, o país ainda tem grande parte de seu acervo histórico mal cuidada em prédios sem aparelhagem e segurança, por instituições endividadas e administradas de modo que beira o amadorismo. Para os especialistas, a solução depende de uma definição mais rápida de uma política específica por parte do Estado e da destinação de verbas maiores, mas também passa por uma melhoria na qualificação da governança e mão-de-obra hoje empregada nos centros culturais.

Sem dúvida existem exceções a esse quadro, mas dois casos emblemáticos dos últimos anos servem para comprovar a situação de penúria em que se encontra o setor museológico: os cortes no fornecimento de energia no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Em março deste ano, o MAM, que abriga hoje aproximadamente 11 mil obras de arte, ficou seis horas no escuro por não ter pago a conta de luz em dois meses. A situação só foi normalizada depois de um acordo com a Light, que incluiu a quitação de parte da dívida e a renegociação de antigos débitos. O Masp viveu situação parecida em 2006, quando ficou três dias sem energia da Eletropaulo por conta de uma dívida superior a R$ 3 milhões. O fornecimento só foi restabelecido depois que a direção do museu paulista, obrigado a usar gerador alugado para que os quadros não sofressem danos, apresentou à concessionária um programa para zerar os débitos em 48 meses, indicando a existência de fluxo de caixa em que uma parcela sempre seria destinada ao pagamento do acordo firmado.

Dono de um acervo com 7.688 peças, considerado o mais importante da América do Sul, o Masp foi o destino mais procurado por turistas que visitaram a capital paulista neste ano, segundo dados da São Paulo Turismo. Em 2007, quando completou 60 anos, contabilizou mais de 620 mil visitantes, a maior taxa dos últimos dez anos. Ainda assim, o museu criado pelo jornalista Assis Chateaubriand acumula dívidas que chegam a mais de R$ 20 milhões, de acordo com parecer emitido pelo Ministério Público do Estado de São Paulo após analisar os balanços da instituição.

Se para um dos principais museus do país a situação é difícil, para instituições menores – mas não menos importantes para se conhecer a história brasileira – o quadro é dramático. Em cidades do interior, documentos, fotografias e boa parte da identidade das comunidades locais vai se perdendo em meio ao pó e ao descuido, em prédios caindo aos pedaços. "Um museu não guarda passado, mas sim cria futuro. Um museu de arte é um repertório para futuros artistas, alguns talvez até capazes de criar tendências novas. Não deveria ser assim, mas essas instituições ainda são muito deficitárias", constata Mário Chagas, coordenador técnico do Departamento Nacional de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Um dos principais reflexos da falta de dinheiro dos museus é o elevado índice de furtos de obras de arte e objetos históricos em todo o país. No banco de dados de bens culturais procurados do Iphan existiam até setembro 1.037 cadastros, incluindo itens que pertencem tanto a museus pequenos quanto aos de maior porte. Recentemente, o Masp e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, mantida pelo governo estadual, tiveram obras valiosas de artistas como Portinari, Di Cavalcanti, Pablo Picasso e Lasar Segall levadas sem muita dificuldade por ladrões. Todas as telas foram recuperadas pela polícia, mas as cenas gravadas pelos circuitos de vigilância interna e exibidas pela tevê em horário nobre provocaram grande comoção. "Precisa haver por parte da sociedade civil um reconhecimento da importância dos museus para a cultura. E isso deve ser constante, não apenas quando ocorre o sumiço de uma obra famosa", declara Chagas.

Em outros casos, a falta de recursos e estrutura pode levar a prejuízos devastadores e incalculáveis, como a perda de quase todo o acervo do MAM do Rio de Janeiro por conta de um incêndio, em 1978. Embora o museu tenha se recuperado graças à solidariedade e doações em grande quantidade depois da tragédia, o fogo queimou na época toda a mostra Arte Agora II, com 205 quadros de pintores latino-americanos, além de telas de Picasso, Juan Miró e obras de artistas brasileiros colecionadas durante 20 anos e que faziam parte do acervo permanente do museu.

Responsabilidades

Diretores de museus, representantes do Ministério da Cultura e associações civis apontam três culpados para as dificuldades vividas pelas instituições que guardam a memória nacional: o governo, as empresas e também a sociedade. "Somos um povo sem cultura, um país em que a educação é deficiente. A crise dos museus se origina da do sistema educacional. O Estado em geral, sem citar partidos políticos específicos, tem dificuldade em separar o que é de interesse público do que é de interesse partidário", aponta José Roberto Teixeira Coelho, curador contratado pelo Masp há cerca de um ano e meio – antes da crise deflagrada com o furto dos quadros, não havia um responsável técnico. "A iniciativa privada gosta de patrocinar exposições, principalmente as que têm retorno de marketing garantido, não o museu em si. As associações de amigos de museus também não funcionam no Brasil. São grupos que se unem para pedir patrocínio a outras empresas. Na verdade, elas deveriam ajudar a financiar os museus. Nos Estados Unidos, as instituições são patrocinadas e as doações são muito grandes. No Brasil, quando alguém doa R$ 1 milhão é um caso de assombrar. Essa também é uma mentalidade que precisa mudar."

Na opinião de alguns especialistas, o governo deu o primeiro passo para conseguir reverter o déficit que existe na área museológica com a criação em 2003 da Política Nacional de Museus (PNM), proposta pelo Ministério da Cultura. A iniciativa conseguiu tornar reais algumas soluções para demandas antigas, como aumentar a destinação de verbas e criar mecanismos para promover uma maior interação entre as diversas instituições culturais existentes no país. O Sistema Brasileiro de Museus, cujo comitê gestor integra órgãos do governo, universidades e organizações civis, foi criado no final de 2004 com essa premissa. Os defensores da PNM se valem de números divulgados pelo Ministério da Cultura para justificá-la. Em 2001, por exemplo, os investimentos no setor giravam em torno de R$ 20 milhões, mas em 2007 chegaram a R$ 140 milhões. Para o ano de 2008, estava previsto o aporte de R$ 160 milhões, somando recursos advindos de leis de incentivo fiscal e programas de fomento à cultura. "A novidade da Política Nacional de Museus não foi o fato de haver um documento específico, como já ocorreu no passado. O que aconteceu de diferente dessa vez é que foram feitos investimentos e a política saiu do papel", avalia Chagas.

Contudo, outras ações ainda precisam ser concluídas para que o dinheiro comece a chegar mais rápido a quem precisa tanto pagar contas de luz como planejar a expansão e a restauração do acervo. Uma das medidas, por exemplo, diz respeito à criação do Instituto Brasileiro de Museus, um órgão independente do Iphan, para a gestão do setor. A proposta, prevista desde o lançamento da PNM, foi redigida e encaminhada quando Gilberto Gil ainda ocupava o cargo de ministro da Cultura, mas ainda não foi discutida pelo Executivo. Países da Europa e até alguns estados brasileiros, como Rio Grande do Sul e Minas Gerais, já possuem autarquias com função parecida, e os resultados têm sido satisfatórios.

Outra medida importante é a aprovação do Estatuto dos Museus, um projeto de lei que já passou pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado. O texto ainda é criticado por alguns conselheiros e administradores de museus privados, que enxergam na legislação uma manobra intervencionista por parte do Estado. Contudo, ele é visto também como um marco regulatório importante para aprimorar a relação das instituições. "Um número muito grande de museus não tem sequer personalidade jurídica. Isso os atrapalha quando precisam captar recursos por meio de edital público ou em empresas privadas. O que me pergunto é se as críticas que são feitas são contra um marco legal. Se for isso, as pessoas querem que tudo continue como está? Por outro lado, se elas tiverem a intenção de melhorar o marco que está em discussão, certamente serão muito bem-vindas", defende Chagas.

Profissionalização

Outro desafio a ser superado pelos centros de memória está ligado à capacitação de funcionários, administradores e membros do conselho. Muitos dos principais responsáveis pela direção dos museus desconhecem as reais necessidades das instituições e as ferramentas de gestão capazes de ajudar a equilibrar receitas e despesas. Com foco apenas no prestígio momentâneo que a abertura de um novo espaço cultural proporciona, políticos, empresários e representantes de organizações não-governamentais incentivam a criação de museus sem se preocupar com sua sustentabilidade financeira no futuro. "Inventar um museu sem responsabilidade é tão grave quanto a paternidade despreparada. Quem toma uma atitude dessas deveria ser punido", afirma Maria Olímpia Dutzmann, vice-presidente do Conselho Federal de Museologia.

Uma das maneiras de impedir o surgimento de instituições que tendem a enfraquecer o setor é incentivar o surgimento de novos cursos superiores que formem especialistas habilitados a gerenciar os diversos processos de aquisição, documentação, exposição e manutenção dos itens que compõem um acervo. Até o começo da década, existiam apenas duas opções de bacharelado em museologia, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Hoje, após uma participação mais efetiva do Ministério da Educação no processo, outros cinco cursos foram montados – dois no Rio Grande do Sul, um em Santa Catarina, um em Minas Gerais e outro na Bahia. Maria Olímpia informa ainda que outras sete faculdades estão em fase de implantação de suas cadeiras. "Acredito que nessa fase seja importante formar profissionais, ainda que a qualidade do ensino esteja abaixo da que encontramos em países europeus. Não são todos os museólogos que podem se especializar com cursos no exterior, então temos de criar mecanismos aqui no Brasil mesmo e depois aprimorá-los", opina ela.

Também especialista na área, Ana Silvia Bloise, que atua no Conselho Regional de Museologia, fez uma pesquisa em que avaliou 60 museus de cidades do interior do estado. Em seu estudo, a profissional observou, entre outras constatações, que a maioria dos profissionais não conhece técnicas básicas de empacotamento, transporte e preservação dos bens. As reservas técnicas (locais que deveriam ser climatizados e preparados para abrigar as peças que não estão em exposição) são mal cuidadas e estão em péssimo estado de conservação. "Um museu existe para preservar a memória de um grupo de pessoas, não precisa ser gigantesco e receber inúmeros visitantes. É importante apenas que ele retrate a história de um povo", comenta.

Inovação

A comparação entre os museus brasileiros e os americanos ou europeus pode parecer injusta num primeiro momento, levando em consideração como cada nação gerencia a educação e a área da cultura. Contudo, vale a pena observar o que tem sido feito no exterior, para aprender com quem vem sendo bem-sucedido. Nos Estados Unidos, por exemplo, os museus são uma das instituições de maior credibilidade, segundo pesquisas recentes. Isso ajuda a explicar a fundação de mais de 3 mil centros de exposição de arte por lá, a maioria a partir da segunda metade da década de 1980.

Visando aumentar a troca de experiências com instituições portuguesas e espanholas, o Brasil incentivou a criação do Ano Ibero-Americano de Museus, comemorado em 2008. Números recentes mostram que há exemplos inspiradores nesses países. O Museu do Prado, em Madri, passou por uma grande transformação a partir de 2003, que incluiu desde a mudança do estatuto até a ampliação e reforma de suas salas. No final de 2007, para comemorar o fim das obras, o maior museu da capital espanhola permitiu a entrada gratuita durante uma semana e montou uma exposição dedicada aos grandes mestres daquele país, conseguindo o número recorde de 2,6 milhões de visitantes em todo o ano. Em contrapartida, os brasileiros deixam escapar oportunidades de crescimento importantes em eventos dessa natureza. Na "Mostra Brasil 500 Anos", na qual foram gastos perto de US$ 40 milhões durante as comemorações realizadas no ano 2000, nenhuma obra de arte adicional foi incorporada ao acervo dos museus nacionais.

O desafio está ligado também a uma necessidade cada vez maior de atualização na gestão de instituições de cultura, avalia José Martins, um dos diretores da Fundação Iberê Camargo. "É preciso estabelecer governanças criativas. Se não tivermos uma inovação constante, as instituições de cultura terão problemas para atrair mais público e apoiadores para seus projetos. Quem patrocina uma exposição ou um museu quer agregar valor a sua marca, e isso precisa estar bem claro para os administradores dos centros culturais brasileiros", afirma.

Fundada no Rio Grande do Sul com o apoio da Gerdau, uma das maiores indústrias de aço da América do Sul, a Fundação Iberê Camargo preserva e expõe a obra do gaúcho que morreu em 1994 e foi um dos ícones da pintura no século 20. Com a saúde financeira em dia e contando com o patrocínio de outras grandes empresas brasileiras, a fundação concluiu em maio deste ano a construção de sua nova sede, um prédio projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza Vieira, premiado em 2002 na Bienal de Arquitetura de Veneza (Itália). O prédio de 8,8 mil metros quadrados custou R$ 41 milhões. "A filosofia da fundação é que não podemos fazer nada sozinhos, precisamos de parceiros para os projetos. Foi um trabalho de oito anos até a finalização do edifício, e a participação de outras grandes empresas foi muito importante", avalia Martins.

Contudo, nem todas as instituições independentes têm a mesma facilidade para colocar em prática iniciativas para buscar mais renda. Foi o caso do Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), que chegou a ser ameaçado pela prefeitura de São Paulo de perder o terreno que ocupa no bairro do Jardim Europa, uma das zonas mais nobres da cidade, por "ter se desviado de sua função pública". Uma das principais maneiras encontradas pelo MuBE para arrecadar dinheiro era alugar seu espaço para a realização de eventos publicitários e festas particulares. A idéia gerou muitas críticas e fez o museu mudar de rota para tentar sanar as dívidas. "Saímos do vermelho faz dois meses. Foi um trabalho muito difícil de adequação das receitas às nossas despesas, e esse equilíbrio ficou ainda mais complicado sem a cessão do espaço. Decidimos que, a partir de agora, só abriremos o MuBE para eventos que, de alguma maneira, estejam relacionados à arte", afirma Jorge Landmann, presidente da instituição. A prefeitura já desistiu das ações judiciais que moveu e, agora, com curadoria de Jacob Klintowitz, o MuBE aposta na montagem de exposições de peso sustentadas com patrocínio de empresas, como a mostra com esculturas de Michelangelo que acontece em outubro e novembro.

É impossível negar as dificuldades por que passam e não reconhecer que, de maneira geral, os museus e centros de memória e de cultura brasileiros têm se esforçado nos últimos anos para reverter a situação atual. Porém, levando em consideração os exemplos de países europeus e até mesmo de alguns vizinhos sul-americanos, como Chile e Argentina, pode-se pensar em caminhos que levem a uma solução definitiva do problema mais rapidamente. "O cenário brasileiro é muito propício. Temos artistas e uma produção cultural intensa em todas as regiões. Há empresas que podem investir e leis de incentivo já consolidadas. Acredito que temos boas perspectivas se soubermos trabalhar", afirma Martins. 

 

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