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Mestre Zimba, um mago do teatro

A história de Ziembinski, o polonês que queria ser médico
e se destacou nos palcos brasileiros

CECÍLIA PRADA


Ziembinski, na peça "Pega Fogo"
(1959)

O nome não podia ser mais estranho – Zbigniew Marian Ziembinski, nascido a 17 de março de 1908 na cidadezinha de Wieliczka, próxima à antiga capital da Polônia, Cracóvia. O homem, uma personalidade original, um artista do mais alto quilate, inteligentíssimo, aportado provisoriamente (pensava ele) em 6 de julho de 1941 no Rio de Janeiro, fugindo à 2ª Guerra Mundial. Mas que acabou por passar no Brasil os 37 anos que lhe restava viver, ancorado, atuante, contribuindo de maneira decisiva para o desenvolvimento da arte teatral como diretor e ator, até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro a 18 de outubro de 1978. Lembramos neste ano de 2008, portanto, o centenário de seu nascimento e o trigésimo ano de seu falecimento.

Quando menino, pensava ser médico, como o pai. Durante a guerra de 1914-18 costumava ajudá-lo em seu serviço no hospital militar da cidade de Cieszyn, e diria mais tarde que muitas vezes se guiava, em seu trabalho de diretor teatral, "por fatores fortemente medicinais, para não dizer biológicos". Quando o pai morreu, vitimado pelo tifo que contraíra de um paciente, Zbigniew estava com 11 para 12 anos e pela primeira vez foi matriculado em uma escola pública, onde a convivência com garotos de sua idade e o incentivo de um professor de desenho mudaram sua vida, fazendo-o interessar-se pelas artes plásticas e pelo teatro. Tendo participado de uma montagem teatral de fim de ano na escola, o garoto chegou em casa anunciando solenemente à mãe que seria ator. Nos anos seguintes fez sua formação em Cracóvia e em Varsóvia, e estreou como ator profissional em 1927, com 19 anos. Dois anos mais tarde habilita-se também para a função de diretor e faz sua estréia como tal em janeiro de 1930, antes de completar 22 anos. Durante o resto da vida acumularia a atuação teatral com a direção, mostrando-se excelente nas duas modalidades. O crítico polonês Jerzy Walden dizia: "O ator Ziembinski está convencido de que pode fazer qualquer papel. Toda vez que lhe cai nas mãos uma peça nova, descobre-se que o papel de maior efeito foi simplesmente criado para ele, trate-se de papel lírico ou cômico, de papel de ancião ou de jovem, de neurastênico ou de boxeador".

Segundo Yan Michalski, seu grande biógrafo (Ziembinski e o Teatro Brasileiro, Hucitec, 1995), em pouco mais de dez anos, de 1929 a 1939, ele realizou na Polônia, exclusivamente no campo teatral, cerca de cem trabalhos, 60 como ator e 40 como diretor – sem contar suas atividades também no cinema e no radioteatro. Poucos dias após a invasão da Polônia por Hitler, em 1º de setembro de 1939, foi obrigado a deixar o país, onde ficaram sua mulher, Maria Prozynska, com quem se casara em 1934, e o filho, Krzysztof, que se destacaria na mesma profissão do pai. Somente em 1963, a única ocasião em que visitou seu país de origem, Ziembinski voltaria a vê-lo.

O navio-fantasma

Refugiado em Bucareste logo após deixar a Polônia, Ziembinski retoma imediatamente suas atividades, dirige uma peça e acompanha o exército polonês exilado em excursões em território italiano e francês, durante 1940. Com a extensão do cenário da guerra e a invasão da França pelos alemães, vê-se obrigado a procurar exílio permanente fora da Europa. Engrossa, durante uns tempos, o contingente dos que queriam partir para qualquer lugar, nem que fosse para a China ou para a Nova Zelândia. Descreveria mais tarde as circunstâncias de Paris, naquela época, as filas de quase meio quilômetro nas ruas: "Tinha gente deitada no chão, na frente das embaixadas, pedindo, esperando, submetida aos maiores escárnios. As maiores torturas, os soldados franceses pegando ratos e enfiando no colo das mulheres, no peito, para espantar, uma coisa horrorosa".

Quando se espalha a notícia de que um país quase desconhecido, o Brasil, estava distribuindo vistos de entrada, Ziembinski não hesita, consegue um, pensando que seria um meio de atingir os Estados Unidos, onde o aguardava um contrato com um grupo teatral polonês. Em 1941, consegue embarcar em Marselha no navio Alsina, que deveria dirigir-se ao Rio de Janeiro – mas que na realidade transformou-se em mais um dos "navios-fantasmas" carregados de judeus e destinados a vagar sem rumo com eles durante um certo tempo, até que houvesse pleno acordo com os países que os acolheriam e condições de segurança para a travessia do Atlântico. O périplo do Alsina durou seis meses – de janeiro a junho de 1941. E foi descrito por outra exilada polonesa, Ilza Czapska (ver "A terra prometida", PB 348, novembro/dezembro de 2001): lotado com milhares de refugiados de várias nacionalidades e classes sociais, o navio foi obrigado a ficar vagando pelas costas africanas e ilhas adjacentes, aportando de vez em quando somente para abastecimento. Os passageiros suportavam mal o calor intenso, as doenças, o tédio, a angústia de se saber sem rumo e sem ter país que os acolhesse, e eram obrigados a comer na cozinha e a disputar o espaço interno da nave, apinhado e cortado pelos varais onde secavam as roupas. Mas procuravam manter o moral e chegavam até a promover festinhas e espetáculos. E Ilza conta como um brilhante ator polonês contribuía para distraí-los – o emigrante Zbigniew Ziembinski, que depois se consagraria como diretor, no Brasil. Somente em junho o comandante do Alsina obteve ordem para desembarcar seus passageiros em Casablanca – onde todos foram levados para um campo desativado da Legião Estrangeira Espanhola, no deserto do Saara. Enfrentando mil peripécias, o grupo conseguiu, no entanto, atingir o porto de Cádiz, para, enfim, seguir para o Brasil.

Desembarcando no Rio de Janeiro nos primeiros dias de julho de 1941, o diretor polonês logo veria o final do seu sonho de seguir para os Estados Unidos – para sorte do teatro brasileiro, na embaixada americana lhe dizem: "Volte daqui a três anos, que provavelmente o senhor viajará para lá". Ora, bem antes do término desse prazo, Ziembinski estaria completamente estabelecido no país e reconhecido como uma das mais importantes personalidades de teatro aparecidas por aqui. Na opinião unânime de historiadores e críticos teatrais, o dia 28 de dezembro de 1943 – data em que o grupo Os Comediantes estreou a peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com direção de Ziembinski, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro – é um divisor de águas, marcando o início do moderno teatro brasileiro. No dizer de Sábato Magaldi, esse acontecimento não só lançou "as bases de uma nova dramaturgia mas também de uma encenação em moldes antes desconhecidos".

Uma guerra particular

Criado em um meio sofisticado e por sua formação profissional conhecedor profundo da tradição teatral européia, Ziembinski tinha mais a ver com o realismo e com a convencional estilização cômica da primeira metade do século 20 do que com as novas tendências modernistas de sua época. No entanto, tinha conhecimento das realizações do expressionismo alemão, e no final de 1933 viajara em férias para a União Soviética e entrara em contato com as experimentações formais mais avançadas, iniciadas na década de 1920 por diretores como Meyerhold e Vakhtangov, entre outros – sem contar seu conhecimento do método básico para atuação estabelecido por Constantin Stanislavski. Yan Michalski desmente o mito de que o encenador polonês houvesse chegado ao Brasil como predestinado por suas realizações anteriores a promover grandes experiências expressionistas ou simbolistas. E diz que na realidade "teria desembarcado no Rio com muito mais Stanislavski nas costas do que Max Reinhardt ou Gordon Craig". E que o Brasil lhe teria "oferecido espaço e estímulo para um vôo muito mais alto de sua criatividade do que os de que ele dispunha na Polônia".

Mesmo que Ziembinski houvesse ensinado somente o método Stanislavski aos nossos atores, já seria um feito notável. Porque o panorama teatral brasileiro era dos mais pobres e primitivos – indigente, mesmo, culturalmente. Improvisava-se tudo, na base meramente imitativa do estilo empolado e artificial dos dramalhões provindos de Portugal ou da Itália, com atores que chegavam a entrar em cena sem conhecer bem o texto da peça e que nem sequer se preocupavam com as "marcas" – baseando sua atuação em duas figuras tradicionais que desapareceriam do teatro logo mais, o ponto e o contra-regra, que de uma "caixa" do proscênio ou dos bastidores iam-lhes ditando palavras e movimentos.

Sergio Britto, veterano ator e diretor, em palestra proferida em Blumenau em 2000 assim descrevia o teatro que se fazia no Brasil no início da década de 1940: "...um teatro de personalidades, não havia peça, nem repertório, nem personagem. Ziembinski mudou o repertório e tentou fazer o ator brasileiro – que era só personalidade (como Procópio Ferreira ou Dulcina de Morais) – fazer personagem". Nelson Rodrigues, saudando em uma crônica de 1963 o "Mestre Zimba" (carinhoso apelido do diretor polonês), diz: "Ninguém fez tanto quanto esse polonês pelo teatro brasileiro". E conta: "Quando ele chegou, não era como agora. Lembro-me de artistas que entravam em cena sem saber uma fala do personagem. E pior foi o que aconteceu com uma diva notável da nossa pré-história teatral. Ela fazia, na Dama das Camélias, o papel-título. Na altura do quinto ato, e já na hora de morrer, sussurra para o companheiro: ‘Que peça é essa?’"

As radicais transformações na atuação, na encenação, nos aspectos plásticos da cenografia e da iluminação que o talento de Ziembinski impôs ao nosso teatro não foram estabelecidas sem uma árdua e constante luta contra a mesmice e a mediocridade que prevaleciam na época. Na atuação, enquanto ia com toda a paciência moldando os atores novos que teria de usar em suas encenações – como Walmor Chagas, Cacilda Becker, Cleyde Yáconis, Fernanda Montenegro, Cecil Thiré, entre tantos outros –, lutava Ziembinski contra sua própria ingente dificuldade em aprender o português, indispensável para moldar os personagens que interpretava como ator. O seu sotaque carregado chegou a impregnar mesmo a atuação de um número de artistas formados por ele, já que exigia uma obediência cega às suas diretivas. Enquanto seus detratores o ridicularizavam, os atores, embora fascinados e interessados em seus métodos, revoltavam-se muitas vezes. Como Luiza Barreto Leite ou Labanca, que falariam de sua extrema "dureza" e da imposição quase ditatorial de seus próprios gestos e expressões – como se considerasse os atores meros marionetes a serviço do texto e da encenação. Sua absorção no trabalho era total. Podia passar dias inteiros a ensaiar, até sem comer. O jornalista Carlos Martins o descreveria assim: "Ziembinski parece possesso durante os ensaios, gritando, os olhos incandescentes, devorado por uma febre que o consome e alimenta. Enquanto o intérprete não atinge o máximo da sinceridade, ele não desiste, e há na tenacidade com que berra ‘outra vez!’ qualquer coisa de cruel, de sádico".

Conta-se mesmo que Maria della Costa, em um ensaio, não agüentava mais e dizia: "Ziembinski, eu vou desmaiar!", ao que ele retrucava: "Desmaie, depois que você desmaiar eu paro o ensaio. Antes disso não paro". Esse exagero do "ensaiador" (os diretores da época eram assim designados) justificou a opinião de que seu autoritarismo anulava a criatividade individual dos atores. Luiza Barreto Leite, em uma entrevista de 1985, queixava-se de que ele matara, no grupo inicial de seus atores, a iniciativa de fazer algo brasileiro: "Queríamos fazer um teatro de raízes nossas, e Ziembinski veio e nos arrancou as raízes".

Com o passar do tempo, porém, os métodos do jovem diretor (tinha 33 anos ao chegar ao Brasil) abrandaram-se, e numerosos atores e atrizes que passaram à história do teatro brasileiro confessam que devem a ele a carreira. "Ele fez de mim uma atriz", dizia sempre Cacilda Becker. E no entanto não poderia ser mais desestimulante o que o severo polonês lhe disse, ao conhecê-la: "Você não vai ser atriz". Outra aspirante poderia ter sido desencorajada. Mas não Cacilda, que humildemente aceitou a crítica, dizendo mais tarde: "Foi justamente esse homem que me ajudou a me tornar atriz; e talvez tenha sido esse um dos botões que ele apertou para me estimular". Vale lembrar que Pega Fogo, de Jules Renard, grande sucesso do repertório do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) a partir de sua estréia em dezembro de 1950, constituiu, na opinião dos grandes críticos da época, "a maior interpretação da vertiginosa carreira de Cacilda" – uma pequena peça, dirigida por Ziembinski, que fazia também o papel de pai do "garoto" encarnado à perfeição pela atriz, magérrima e de seios fortemente comprimidos por uma faixa. Diz Alfredo Mesquita, em artigo dedicado ao encenador após sua morte, que Ziembinski soube respeitar nessa peça – que raridade! – a opinião que a atriz tinha da personagem, e com a qual não concordava muito: "E tiveram ambos razão. Ele por não forçar a mão, ela por detectar a maneira correta de representar o papel. Acertaram em cheio".

O monstro sagrado

No final da década de 1950 e na de 60, com a radicalização política e a sintonização com novas formas teatrais vindas sobretudo dos Estados Unidos, uma prolífica, idealista e combativa nova geração de autores e diretores abriu caminho para a renovação de nosso cenário teatral – entre esses autores distinguiam-se Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, entre os diretores José Celso Martinez Corrêa, Flávio Rangel, Antunes Filho. O velho Zimba começou a sentir-se perseguido e desestimulado em seu trabalho, que sempre colocou os parâmetros artísticos acima das motivações ideológicas – politicamente, sempre se manteve de todo afastado até mesmo dos atos públicos realizados, com a plena participação da classe teatral, contra a violência oficializada, a repressão e as torturas, após o golpe militar de 1964.

Em 1972, no lançamento da peça Check-Up, de Paulo Pontes, na qual trabalhava apenas como ator, resolveu afastar-se solenemente do palco, dizendo, em longa entrevista a Alfredo Souto de Almeida, "o teatro já se despediu há bastante tempo de mim". Justificava plenamente o "novo teatro" que se transmutava em uma apresentação fluente, deixando o palco italiano, abrindo-se para o público e provocando sua participação ativa: "...esse espetáculo a meu ver é muito justo, muito vivo, muito racional, e a época de hoje necessita de um espetáculo desse tipo". Expressava, porém, sua revolta contra o amadorismo e a improvisação dos que, aproveitando o quadro da natural evolução formal, adotavam "certos tipos de total abandono do texto e a transformação do espetáculo teatral numa histérica presença de seres que às vezes nem atores são".

Optando então por uma carreira televisiva das mais importantes – como diretor e ator de novelas e na criação dos "Casos Especiais" – contribuiu decididamente para o aperfeiçoamento do núcleo de ficção da TV Globo. Mostrava-se entusiasmado com seu grande público nacional de 20 milhões de pessoas: "Eu não posso deixar de reconhecer que essa platéia merece o mais sincero e honesto tratamento, e que devemos levar a ela o espetáculo televisivo, que é o espetáculo do futuro, o melhor possível, com conceitos artísticos elevados, e isso se pode fazer apenas dedicando-se a ele totalmente..."

Em 1976 a própria Globo o faria voltar ao teatro, em um breve lampejo, patrocinando uma reencenação, 33 anos mais tarde, de Vestido de Noiva, na inauguração do Teatro do BNH no Rio de Janeiro. Ocasião para uma grande reavaliação, por parte de todos os críticos, do valor histórico da peça de Nelson Rodrigues e da grande criação cênica do mago polonês. Para Ziembinski, a montagem assumiria um valor simbólico, pois as duas datas, 1943 e 1976, emoldurariam coerentemente toda a carreira artística que desenvolvera no Brasil. Seu último trabalho seria, ainda em 1976, uma comemoração de seus 50 anos de teatro – a peça Quarteto, que pessoalmente encomendara a Antônio Bivar. Na mensagem de despedida escrita para o programa do espetáculo, descrevia, bem-humorado, as dificuldades de uma carreira teatral, perguntando: "Por que fazer teatro?" Por que fazer isso durante 10, 20, 50 anos, "tentando vender melhor a sua própria miséria e volúpia", a não ser, dizia, "por uma obstinação de louco, que vive em função de promover sua própria destruição?.... "
Mas concluía, decidido: "Porque fazer teatro é uma delícia".

 

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