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Ficção Inédita



Respeitem este Direito


por Marcelino Freire

Hoje o Velho faz 60 anos.
Finalmente.
60.
Embora já esteja Velho faz tempo. Hoje, no entanto, é o Velho velho. De fato. Ninguém mais poderá dizer que ele abusa. Que ele engana os guardas. Do metrô. Quando senta no assento privativo. Hoje ele é dele. Este direito.
Novo.
Por isso, resolveu.
Comemorar a data.
Pegou a bengala e entrou no trem. Iria além. Passaria o dia inteiro vagando no vagão. Só por satisfação. Por vingança. Da netinha. Que vive mandando ele sair do sofá. Quero ver só agora ela me mandar.
Nem que chamem o presidente. Pode vir quem quiser. Um cego. Um aleijado qualquer. Daqui eu não saio. Só passando por cima do meu osso. Serei grosso, mandarei pastar.
E a Velha?
Ela que não pense que é a dona da casa. Aqui não. Nao vê? A minha idade? Orgulhoso, olhava pelo vidro. A rapidez que era o trilho comprido. A tecnologia.
O microfone dizia, para quem quisesse ouvir: o assento de cor cinza é preferencial. Fez cara de mal. Contente. Nem que aconteça algo urgente. Um incêndio. Não sairia do seu canto. Como um homem que morre. Endurece as raízes.
Planta-se no chão mais subterrâneo.
Dentro do trem tinha até televisão. Viu? Pensou, mais uma vez, na netinha. Que não deixa o Velho ver o jogo. O Velho ver o Paulo Autran. Como o Velho gostava do Paulo Autran.
Grande ator!
Homem mais educado!
Ah! Já não se faz mais gente como antigamente...
Hoje, para sempre, amanhã. Nem que o mundo acabe. Quem o expulsaria do banco? Respeitem os meus cabelos brancos.
Minha cara de orangotango.
Veio a tarde, quase chegando a noitinha.
O Velho indo e vindo.
De quando em quando, um cochilo, um suspiro. Imediatamente, como um soldado, ao primeiro balanço, abria os olhos pesados. Só para avisar: você que não invente de me desabrigar. Uma grávida, por exemplo, apontou a vista para o seu assento. Ah, minha filha, vá procurar onde cair a sua barriga. Eu é que não tenho nada a ver com você. A vida é assim mesmo, querida: enquanto uns estão para nascer, outros renascem.
Nunca é tarde.
Longa.
Eterna será esta minha primeira viagem.
Viu jovens se aglomerarem, viu gravatas. Viu gente apressada. Correndo para onde? Essa onda de gente? A Velha deveria estar se perguntando: cadê o maldito? Juro que nem lembrou do meu aniversário. Nem um bolo, um bombocado.
Meu Cristo!
Como fui casar com uma mulher tão ruim? Bandida. Uma vida inteira de agonia, descaso. E os filhos, então? O Velho nem lembrou deles. Ali, no trem. Uns condenados. O tanto que se arrastou para criar, dar educação, ensinar aqueles trastes a respeitar o ser humano, o cidadão.
Não.
Sempre foi cada um por si.
E esse bebê ridículo, por que tanto olha para mim? Por que tanto ri? Daqui eu não saio. Eu não me levanto. E o bebê olhando.
Olhando, olhando, olhando...
Entendendo tudo.
Coitado!
A mãe deixando a baba do menino cair. Bem na minha calça. Ninguém dá um lugar a essa desnaturada? Ninguém salva essa criança desse perigo? Dessa falta de cuidado? Eu, repito, é que daqui não saio.
Ora, ora.
Estou com 60 anos, ouviram?
Gritou.
Hoje eu estou fazendo 60 anos.
Não entendeu por que falou alto. Como nunca havia falado. Bem alto, feito um microfone. Feito o barulho do vento no túnel. Desabafou, musculoso. O Velho idoso.
Parabéns, disse a mulher do lado.
O Velho assustou-se.
Hoje é o aniversário do senhor?, ela perguntou.
60 anos.
Não parece.
Hã?
O senhor não parece ter 60 anos.
Está pensando o quê? Que eu sou um velho mentiroso?
Ah! Agora mais essa. Não aguentaria mais levar desaforo para casa. Sua condenada. Subiu-lhe um ódio antigo, pegou da bengala.
Segura o Velho, segura o Velho, o povo berrou.
Segura o Velho.
Que se levantou.

Marcelino Freire é autor, entre outros, de Contos Negreiros (Editora Record)