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Bandeiras paulistanas

Imigrante italiano, Alfredo Volpi foi pintor de paredes e operário antes de se consagrar como um dos mais importantes artistas plásticos do Brasil


A rrajetória do pintor Alfredo Volpi, nascido em Lucca, na Itália, em 1896, confunde-se com a de milhares de imigrantes italianos que desembarcaram em São Paulo na virada do século 20. Antes de ser reconhecido como um dos mais importantes artistas plásticos da segunda geração do modernismo brasileiro, esse membro ilustre do bairro do Cambuci, na Zona Sul da capital, foi funcionário de uma gráfica e pintor de paredes. “Volpi era um operário de construção”, diz Nereide Schilaro Santa Rosa, autora da biografia Alfredo Volpi, da coleção Mestres das Artes no Brasil (Moderna, 2000). “Carregava baldes de tinta, andava de tamancos, podia-se sentir o cheiro e a textura das tintas em sua pele.” E por muitos anos foi assim: pintava paredes a trabalho. E suas telas, por prazer, nas horas que lhe sobravam.

Autodidata, o artista não se municiou de conhecimento formal para fazer seus trabalhos. Não cresceu em um ambiente onde se respirava cultura nem era um homem viajado, a exemplo de outros modernistas mais abonados. Segundo Nereide, o pintor seguia exclusivamente os sentidos. “Você põe a primeira cor. Olha. Aí põe a segunda. Se está errado, você percebe e apaga. E começa tudo de novo”, dizia o mestre, explicando seu processo criativo. Essa aparente simplicidade na composição, no entanto, não deve enganar. Para o historiador e crítico de arte João Spinelli, esse “mistura e olha” de Volpi não tem nada de fácil. “Ele dosa emoção e raciocínio. E isso não é simples”, diz.

Bastante lembrado pelas famosas bandeirinhas, constantes em suas obras a partir da década de 1950, Volpi escondia por trás delas algo de sui generis, segundo afirma Spinelli. “Ele chegou às bandeirinhas para criar composições. Por trás disso, há uma estrutura de pensamento requintada, que levava em conta o número de formas e o número de cores. Ninguém fez igual.” Para o especialista, o artista foi de coerência marcante. “A obra dele foi coerente com ele próprio, que sempre foi simples e despojado, com o tempo em que viveu, que ele soube acompanhar muito bem, e com o Brasil.”

Operário-pintor

Alfredo Volpi chegou ao Brasil com um ano e meio de idade. Era o terceiro dos cinco filhos de Giusepina e Ludovico, que viviam do dinheiro do comércio de queijos e vinhos e buscaram uma vida melhor no novo mundo. Tinha 12 anos quando arrumou emprego em uma gráfica e, com o primeiro salário, comprou uma caixa de aquarelas. Três anos depois, começou a trabalhar como pintor, fazendo faixas decorativas em paredes das casas de famílias endinheiradas. Esse foi o primeiro contato com a pintura, que se tornaria mais intenso por meio do amigo Orlando, que estudava artes em uma escola profissional do Brás, e com quem tinha conversas que o inquietavam cada vez mais. Até que, aos 18 anos, surge a primeira obra: uma paisagem, feita com tinta a óleo sobre a tampa de uma caixa de charutos. A exemplo do que aconteceu com muitos grandes nomes das artes brasileiras nas primeiras décadas do século 20, Volpi tinha diante de si um cenário de grandes mudanças. A própria São Paulo começava a adquirir os contornos da metrópole que se tornaria anos depois. Imigrantes de diversas partes do mundo desembarcavam no porto de Santos e subiam a serra trazendo consigo novas culturas, novas cores e formas.

Nas artes, os pioneiros do movimento modernista interessavam-se cada vez mais por essa mistura. Volpi capturou tudo isso em suas primeiras telas, ainda inspiradas nas pinturas dos impressionistas europeus do século 19.?O jovem artista começou a mostrar suas primeiras referências modernistas na tela Mulata, de 1927. De acordo com a biógrafa Nereide Schilaro Santa Rosa, a mulher retratada na pintura era uma garçonete chamada Benedita da Conceição, o grande amor do pintor, com quem ele se casou e teve sua única filha, Eugênia.

Em 1928, Volpi recebeu a medalha de ouro do Salão de Belas Artes, primeiro prêmio conseguido por sua pintura. A essa altura, por meio de mostras e da amizade com outros artistas, seus trabalhos tornaram-se mais conhecidos.

 

 

 

Bandeiras e consagração

Nos anos de 1940, Volpi inicia a transição da pintura predominantemente figurativa para a geométrica. “Ele começou com as fachadas e os casarios, mas foi eliminando as linhas, até chegar às bandeirinhas”, explica João Spinelli. Nessa época, também começou a pintar com têmpera, um tipo de tinta preparada por ele mesmo, misturando clara e gema de ovos, óleo de cravo e pigmentos coloridos. “Combinar cores tornou-se sua linguagem preferida”, afirma Nereide Schilaro Santa Rosa na biografia do pintor. “O equilíbrio em suas composições mostram sua segurança e tranquilidade como artista”, diz ela. ?Na década seguinte, Volpi já era consagrado, tendo participado das Bienais de Veneza e de São Paulo, onde, em 1953, dividiu com Di Cavalcanti o prêmio de Melhor Pintor Nacional. A essa altura, as formas geométricas nas telas do artista já tinham caído nas graças dos concretistas, chegando a participar de exposições de arte concreta em 1956 e 1957.

Sobre as bandeirinhas, Volpi dizia: “A gente se desliga e então passa a existir o problema da linha, forma e cor. (...) Minhas bandeirinhas não são bandeirinhas; são só os problemas das bandeirinhas.” Ele as pintou até o fim da vida, em 1988.

Volpi revisitado

Exposição no Sesc Interlagos reúne desenhos feitos pelas crianças do Projeto Curumim inspiradas na obra do pintor

Em cartaz no Sesc Interlagos desde 21 de janeiro (e ainda sem data para terminar, segundo a programação da unidade), a mostra Volpi-se In Vitro reúne trabalhos feitos por alunos do Projeto Curumim. A mostra é o resultado de uma oficina de uma semana, durante a qual os pequenos tomam contato com a obra do pintor ítalo-brasileiro. “Formávamos uma roda de conversa para aproximar o repertório das crianças, da história e da criação de Volpi”, diz Andréa Fonseca, técnica da unidade. O conjunto de oficinas recebeu ao todo 160 crianças. Dividida em seis núcleos – O Artista, As Histórias, Os Casarios, As Festas, As Formas Geométricas e o Campo de Futebol, a exposição traz 40 dessas pinturas. Para selecioná-las, uma comissão de técnicos da unidade levou vários fatores em consideração. Cores, formas, preenchimento da folha e, claro, a presença de elementos de Volpi foram alguns deles. “Mas um dos valores determinantes foi garantir a representatividade das turmas dos dois períodos (manhã e tarde) e das diversas faixas etárias, além do crédito para todos os inscritos no programa”, conta Andréa.

Para Nereide Schilaro Santa Rosa, autora da biografia de Alfredo Volpi, parte da coleção Mestres das Artes no Brasil (Moderna, 2000), a obra é, de fato, muito apreciada por crianças. “Os temas populares, como as famosas bandeiras, as ogivas, os casarios e os brinquedos, como os cata-ventos e outros, aproximam a sua arte do universo infantil”, diz. Segundo a especialista, ao apreciar uma obra de Volpi, a criança aprende um novo olhar para as formas geométricas. “[a criança] Compreende que a arte é a descoberta de um novo modo de se expressar.”

“Artistas-proletários”

Essa era uma das expressões cunhadas pelo escritor Mário de Andrade ao se referir
ao grupo de artistas imigrantes e operários que ampliaram a paleta de cores e formas da pintura brasileira

Uma importante passagem na carreira do pintor Alfredo Volpi foi sua participação no Grupo Santa Helena, a partir de 1935. Formado por artistas descendentes de italianos, como Francisco Rebolo, Mario Zanini, Bonadei, Clóvis Graciano e Fulvio Pennacchi, Manoel Martins e Alfredo Rizzotti, Humberto Rosa, entre outros, a turma se reunia no Palacete Santa Helena, antigo edifício localizado na Praça da Sé, região central da cidade, para pintar modelos vivos. “Os santahelenistas, uma confraria de artistas, traziam uma alternativa diferente para os rumos da pintura após a Semana de 22”, explica a professora de estética e história da arte Daisy Peccinini, da Universidade de São Paulo (USP), em texto publicado no site do Museu de Arte Contemporânea (MAC) – www.macvirtual.usp.br –, ligado à universidade. “De origem social modesta, imigrantes ou filhos de imigrantes italianos, em sua maioria, e pequena burguesia, tinham um segundo emprego para sobreviver”, escreve. A natureza desse “segundo emprego” ligado às artes variava de pintor para pintor. Rebolo, Volpi e Zanini, por exemplo, eram pintores decoradores.

Já Graciano era letrista, fazia a pintura de tabuletas e cartazes, e Pennacchi, dono de açougue, desdobrava-se também em decorador projetista e em professor de desenho do Colégio Dante Alighieri. Uma curiosidade: além da pintura, outras habilidades serviam para engrossar o orçamento. Alfredo Rizzotti dividia-se entre a profissão de alfaiate e a de torneiro, enquanto Bonadei também era costureiro e bordador, e Manoel Martins, vendedor, relojoeiro e guarda-livros. Como Pennacchi, Humberto Rosa também dava aulas, era professor de desenho geométrico em colégios particulares, como o Bandeirantes, Sion e o próprio Dante Alighieri.

Com exceção de Bonadei e Pennacchi, que estudaram belas-artes na Itália, a maioria era autodidata, como Volpi. “Ao debruçar-se na pintura como exercício de um ofício, os ‘artistas-artesãos’, como dizia Mário de Andrade, contribuem para um projeto moderno dedicado ao honesto, humilde”, analisa Daisy em seu texto. De acordo com a especialista, esses artistas trouxeram para a pintura temas populares, paisagens urbanas, suburbanas e rurais. “Mais que registro, essas pinturas, nas tonalidades marrons, cinza fosco, são a manifestação de uma sensibilidade nova que Mario de Andrade atribuía a um refinamento de espírito”, explica ela. Em 2002, algumas obras dos “artistas-artesãos” do grupo Santa Helena foram reunidas na mostra Operários na Paulista, no MAC, com curadoria da própria Daisy Peccinini e da também professora de história da arte Elza Ajzenberg, da USP.