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Entrevista




O filósofo e educador fala da qualidade do ensino do Brasil e de sua relação com o mercado de trabalho

O doutor em educação, filósofo e professor do departamento de teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Mario Sergio Cortella já foi Secretário Municipal da Educação de São Paulo, de 1991 a 1992, e é membro-conselheiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Com diversos livros publicados sobre educação – entre os mais recentes está A Escola e o Conhecimento (Cortez, 2008) –, o entrevistado desta edição tem vasta experiência em temas como educação libertadora, ética, multiculturalidade e antropologia filosófica.

Ex-orientando do professor Paulo Freire, Cortella bateu um papo exclusivo com a Revista E, no qual falou sobre a diferença entre educação e escola no Brasil, sobre a qualidade do nosso ensino, relacionando-o com o mercado de trabalho. Além disso, também esclareceu por que algumas empresas têm investido na educação continuada de seus funcionários. “Guimarães Rosa dizia que o sapo não pula por boniteza, pula por precisão”, afirmou durante a conversa. “As empresas não abriram estruturas de educação corporativa por acreditarem na educação em si. Mas sim porque (...) no momento em que na formação para o mundo do trabalho (...) ficou insuficiente aquilo que a escola oferecia, (...) a empresa teve que transformar os seus treinamentos em estrutura continuada.” A seguir trechos da entrevista.

Vamos ter de volta o ensino de filosofia e de antropologia no ensino médio. E o intuito é aguçar o espírito crítico dos alunos. Quais as suas considerações sobre isso, já que tínhamos essas disciplinas e elas foram retiradas, como uma das medidas do regime militar.

A primeira coisa é que na escola há uma distinção entre conteúdo curricular e componente curricular. Conteúdo curricular é o assunto que se trata na escola, qualquer assunto. Componente curricular é matéria, disciplina. O que o governo militar retirou foi o componente curricular de filosofia, ele não proibiu que o conteúdo continuasse a existir, mas a matéria desapareceu. Tanto que parte da rede privada manteve filosofia com outro nome. Várias vezes, durante a ditadura militar, manteve-se o nome “organização e métodos” ou “secretariado”, mas o conteúdo era de filosofia.

Por que essas matérias foram retiradas?

Toda ditadura quando se implanta tem o hábito de retirar tudo aquilo que possa ameaçar o status quo, que ofereça possibilidade de reflexão. No Brasil, a ditadura militar retirou filosofia, sociologia e psicologia, por supor que seriam disciplinas subversivas, seja pelo tipo de docente que a elas está ligado, seja porque o tipo de conteúdo usual é considerado mais crítico, portanto, em uma ditadura, considerado mais subversivo. O equívoco quando se pensa em filosofia é achar que ela é um pensamento crítico. Pode ser, mas não é sempre. Os nazistas tinham os seus filósofos. O fascismo tinha os seus filósofos. A ditadura brasileira teve os seus filósofos. O que significa que a filosofia, em si mesma, como componente ou como matéria, não representa um perigo contra ditadura, mas sim o tipo de assunto de que ela trata. Várias escolas mantiveram esse assunto, que foi diluído e espalhado por outros segmentos.

Você acredita que essas disciplinas vão ser positivas? Por quê?

Serão positivas se elas não forem tratadas como uma panaceia, e não forem secundarizadas como sendo uma atividade messiânica. É mais ou menos como o ensino de ética ou como o ensino religioso. Algumas escolas os colocam supondo que as crianças terão valores, ou então que os pensamentos solidários virão à tona. Isso é muito frouxo, muito frágil. A filosofia, a sociologia, a psicologia, no ensino médio, terão uma contribuição à formação do jovem, do adolescente, se elas puderem ser tratadas de forma sistemática, e como integrantes do conjunto do currículo, e não como um apêndice no qual o aluno vai tratar de perfumaria – como se a parte séria se desse nas outras disciplinas e a parte da perfumaria, a hora da loucura, fosse a hora da filosofia. O Luís Roberto Salinas Fortes, da USP [foi professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo], falecido, dizia que não dá para delirar para começar a filosofar. Filosofia não é um sinônimo de delírio. Filosofia é um pensamento sistemático, estruturado, organizado, só não comprovável, porque trabalha com indagações. Há pessoas que supõem que o delírio aproxima da filosofia. Não é verdade. Sem dúvida você tem alguns filósofos delirantes em vários momentos. Se você olha o pensamento de Kant [Immanuel Kant, filósofo alemão], vai imaginar uma situação delirante. Mas a filosofia não é um sinônimo de delírio.

O que você pensa do comentário do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre seu governo ter universalizado o ensino?

O que o governo dele conseguiu foi um avanço significativo, mas o que a gente teve no Brasil nos últimos 20 anos não foi uma universalização do ensino, e sim uma universalização da matrícula do ensino fundamental. Não se confunda matrícula com permanência. Nós chegamos a 98% de matrículas no ensino fundamental da população de 7 a 14 anos. Isso é verdade, mas isso, em primeiro lugar, não significa que ela permaneceu na escola, significa que ela se matriculou, e nós tivemos altas taxas de evasão. Segundo ponto: essa população tem uma escola que não tem uma qualidade social alta. No entanto, há, em educação, um princípio de que alguma escola é melhor do que nenhuma. Não é que qualquer escola é melhor que nenhuma, é que alguma escola é melhor que nenhuma, porque a escola não é só um lugar para o aprendizado científico, a escola é uma experiência sociocultural insubstituível. As crianças não vão para a escola só para aprender conteúdos científicos, elas vão lá e convivem, aprendem a brincar, aprendem noções de etiqueta com os outros colegas, elas têm vivência. Uma das grandes encrencas do ensino a distância é que impede a convivência.

Por outro lado, a escola também se configurou, no Brasil, nos últimos 40 anos, uma rede de proteção social. Parte das nossas crianças do proletariado, que, infelizmente, são maioria, não teria registro civil, não teria atenção à saúde, se não estivesse na escola. Daí o argumento de que nós precisamos pegar essa escola que aí está e torná-la uma escola de cidadania efetiva. Aquilo que chamo de escola com qualidade social. Em uma democracia não adianta ter qualidade para poucos. Qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio. Em uma democracia, qualidade social exige quantidade total. Enquanto eu não tiver todos os homens e mulheres deste país com possibilidade de escolarização, com sólida base científica, noções de cidadania e solidariedade social, não tenho qualidade. Há vagas para todas as crianças. Mas nem todas as crianças têm condições de ir à escola. Se eu colocasse todas as ?crianças desse lado e do outro lado todas as vagas, haveria possibilidade de colocar uma na outra. O mesmo não acontece com as vagas hospitalares. O mesmo não acontece com as vagas de saneamento e habitação.

Por que você acha que a educação atingiu esse estágio e a saúde não? Será que é porque, ainda que de uma maneira inconsciente, a sociedade viu que é pela educação que a gente vai chegar lá?

A educação como prioridade é discurso, ainda. Não é uma prática, não é uma consciência. É uma representação. Digo isso porque a saúde pública é mais estruturada do que a instrução pública, a saúde tem impacto na capacidade de trabalho das pessoas. As próprias elites ou o próprio empresariado deseja uma saúde que possa dar atendimento, a tal ponto de ter estruturado convênios – e isso foi feito porque trabalhador adoentado significa menos produção. Aquilo que em algum lugar é serviço social, em outro lugar é serviço de apoio para impedir o afastamento laboral. Não é o mesmo com a educação. Na área da educação, o fenômeno não é equivalente. No Brasil, nós ainda dependemos extensamente de uma mão-de-obra não qualificada, o trabalho informal ainda é dominante em várias estruturas e o letramento não se colocou como requisito mais forte – a não ser nos últimos 20 anos.

É preciso lembrar, inclusive, que o Brasil fez 508 anos, em 2008, e o Ministério da Educação foi fundado em 1930, com o nome de Ministério da Educação e Saúde. Ainda na década de 1930, o único órgão da gestão federal que tinha presença em todos os municípios era a escolinha de telégrafos.

O Brasil teve a sua primeira universidade em 1934. Um país que tem 508 anos passou 434 anos sem universidade. Havia faculdades em Recife, em Salvador, em Minas Gerais e no Paraná. Mas, universidade [entendendo-se universidade, aqui, como um conjunto de faculdades que forma uma instituição de educação superior, pesquisa e extensão], a primeira foi a USP. E, não por acaso, ela foi fundada por empresários, não pelo Estado. Não por acaso o campus [a Cidade Universitária] se chama Armando Sales de Oliveira [engenheiro e político]. Você tem toda uma organização do empresariado paulista, nos anos de 1930, para estruturar cursos técnicos.

Qual relação você vê entre o crescimento econômico, como o que o Brasil está experimentando agora, e a educação?

O sucesso econômico aumenta a demanda [para a educação]. Não é porque tenho mais gente na escola que vou ter emprego para todos. Cada vaga escolar não corresponde a um posto de trabalho. Posso citar os administradores [de empresas] desempregados, posso citar os fisioterapeutas. Posso citar o pessoal que foi trabalhar em turismo. O que quero dizer com isso? Não é a escolarização em si que faz com que a pessoa tenha acesso ao mercado.

É o mercado [que estimula a procura por educação], quando ele tem uma demanda em determinada área. Tanto é assim que, de fato, o pequeno crescimento econômico levou a uma procura maior por engenharia metalúrgica ou engenharia de produção, mas, cessada essa fase, a dispensa foi em alta escala. Isso significa que, exceto em economias planejadas, das quais não temos mais nenhuma, não existe uma correspondência direta entre banco escolar e posto de trabalho. Portanto, temos que formar pessoas que tenham a educação como um direito de cidadania. Por isso, na Constituição brasileira em vigor, a educação é um direito subjetivo, isto é, é aderente ao sujeito. Portanto, é inalienável. Desse ponto de vista, um dos pontos nos quais o país cresceu nos últimos 20 anos, no que toca a educação, foi avançar para tornar obrigatória a educação básica. E não só a educação fundamental, de 7 a 14 anos. Ou seja, torna-se obrigatória a educação para os indivíduos de 0 a 18, isso dá uma extensão muito grande.

Existe um descompasso entre as demandas do mercado e a educação em algumas vagas. De outro lado, ninguém precisa ter uma formação escolar somente pelo ponto de vista pragmático para trabalhar nisso ou naquilo. Não tenho que formar um especialista nem um generalista. Eu tenho que formar um multiespecialista. Isto é, alguém que seja capaz de ter autonomia, que vá fazer um curso de engenharia, um curso de hotelaria, um curso de filosofia; a formação que ele receberá precisa fazer dele um ente autônomo, que possa, portanto, ter empregabilidade. Isto é, que ele não seja refém da especialidade que carrega nem que ele fique numa megageneralidade de conhecimento.

Você acha que a gente está conseguindo isso?

Ainda não, mas a intenção disso já existe em várias estruturas. Houve um aumento do ensino técnico nos últimos anos no Brasil, e dos centros de formação técnica. Muita gente continua querendo ser professor. Vou fornecer um dado curioso: sou do conselho técnico consultivo de educação básica da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. A gente tem um dado interessante, mesmo com toda a crise que a educação carrega, os salários sendo muito baixos, em 2008, tem 500 mil pessoas nas escolas de formação de magistério, que é ainda de nível médio. São 500 mil pessoas, uma quase totalidade de mulheres, que querem ser professoras. Isso significa que a intenção da educação é sempre maior do que a efetividade que ela carrega.

Qual seria a causa dessa situação?

Algumas elites são predatórias e acabam dando à educação um papel meramente cínico, que fica só no discurso. Portanto, produzem falas e se esquecem de que ética não é cosmético, não pode ser uma coisa de fachada. Você tem uma parte do empresariado comprometido, de fato, nessa questão, e uma parcela que tem só uma fala. Isso, aliás, serve apenas enquanto o barco está navegando com tranquilidade, porque, quando há algum tipo de turbulência, as primeiras coisas que dançam são a responsabilidade social e a educação. A outra coisa, além das elites predatórias, é uma classe média acovardada que encontrou condição econômica, mas começou a perder força econômica, nos anos de 1980, e se envergonhou de colocar o filhinho em uma escola pública, supondo que isso seria perda de status. Isso vem acontecendo hoje em larga escala.

A escola pública, nos anos de 1960, era considerada uma escola de elite, como era de fato. Inclusive porque era frequentada apenas por 30% das crianças em idade escolar, dado que boa parte da população não vivia nas cidades. Agora só 20% das pessoas no Brasil não vivem nas cidades. Portanto, a gente tem um impacto explosivo na demanda por educação. Quando os anos de 1990 vieram com a sua crise econômica, uma parcela dos pais teve que tirar os filhos do ensino privado e colocar na escola pública, de forma envergonhada. Em vez de pensar no “um por todos e todos por um”, transformou-se no “cada um por si e Deus por todos”. E aí colheu o fruto, isto é, deixou de ter esse atendimento [de qualidade]. O rendimento educacional escolar público foi relevado a segundo plano, porque se supôs que era um problema do outro.

Nos últimos anos, dá para a gente observar uma série de coisas interessantes dentro dessa ideia de que educação entrou na agenda da sociedade brasileira como um bem necessário. Por exemplo: as empresas começaram a investir em educação, na formação do seu pessoal; a sociedade e as famílias começaram a querer que os filhos estudem. Você acha que isso é um modismo ou um movimento que vem para ficar?

Guimarães Rosa dizia que o sapo não pula por boniteza, pula por precisão. As empresas não abriram estruturas de educação corporativa por acreditarem na educação em si. Mas sim porque no momento em que desacreditaram da escolarização, e no momento em que a formação para o mundo do trabalho, da tecnologia, ficou insuficiente naquilo que a escola oferecia, seja em que nível fosse, a empresa teve que transformar os seus treinamentos em estrutura continuada. Nos Estados Unidos, nos anos de 1990, apareceu a chamada universidade corporativa. Começou com o McDonald’s, depois passou para outras estruturas. Em outras palavras: “Eu vou formar o meu pessoal e falo do meu jeito, do jeito que eu quiser”. Isso coincidiu também com uma demanda da estrutura do mercado. O mercado hoje não admite que a escolarização se encerre. Como a gente tem uma mudança veloz dos modos de fazer, de circular, de produzir, a formação anterior não basta mais. Portanto, a escola, que antes era suficiente – o resto se completava com a escola da vida –, passou a não bastar mais. Primeiro que a “escola da vida” não acompanhava mais a velocidade das mudanças.

O número de experiências que se adensam e se acumulam ultrapassa o seu tempo vital. É preciso turbinar a formação das pessoas. Esse turbinamento, no campo da empresa, se deu pela universidade corporativa. Em segundo lugar, várias das empresas entenderam que colocar a educação fundamental como requisito para contratar era uma coisa inteligente porque elevava padrões de escolaridade, elevava a condição de produção e a condição, inclusive, de criação. Os anos de 1990 trouxeram à tona a necessidade de a inteligência do conhecimento levar à criatividade e à inovação, o que não se fazia até os anos de 1980. Desde Henry Ford, com os carros, até os anos de 1980, a lógica era: “Nós inventamos e eles fazem”. A questão é que o conhecimento, a tecnologia e a inovação passaram a ter um valor agregado grande.

A participação da família auxilia na educação? Como isso deve se dar? Os pais devem participar da escola também?

A primeira coisa que um pai e uma mãe têm que fazer é observar se o filho está feliz na escola. Ser feliz não significa não ter tarefas, não significa poder brincar o dia todo. Ser feliz significa ir e voltar com alegria mesmo tendo atividades para fazer. Estudar cansa, mas não pode estressar, assim como jogar duas horas de futebol: cansa, mas não pode estressar. Assim como dançar a noite inteira: cansa, mas não pode estressar. O cansaço resulta de qualquer esforço intenso. O estresse resulta do esforço sem sentido. É quando você não percebe a razão do que está fazendo. Nesse ponto de vista, os pais precisam estar atentos se o filho está ficando cansado ou estressado na escola. O estresse pode vir do não-pertencimento ao local, da não-receptividade, ou até da dificuldade de compreensão. Esse é o primeiro passo. Então é: “Meu filho volta cansado ou estressado da escola?”.

E como os pais podem saber disso?

Precisam acompanhar as atividades cotidianas. Tem gente que acompanha a Bolsa diariamente, tem gente que usa meia hora do dia para acompanhar o seu time de futebol. Tem gente que usa meia hora diária para acompanhar o que está acontecendo no Afeganistão. Ótimo. Agora, além do Afeganistão, da Bolsa de Valores e da crise mundial, use também meia hora para acompanhar o seu filho na escola. Acompanhar não significa ir com ele, isso é outra coisa. Significa entrar naquele universo. E outra: a entrada nesse universo não pode ser de uma forma imperativa nem parecendo uma auditoria.

Por exemplo, quando uma criança chega da escola, muitos pais e mães dizem: “E aí, filho, o que você aprendeu hoje?”. Isso é auditoria. Ele se sente cobrado. Se você inverter a pergunta, você vai ter o mesmo efeito com um tipo de adesão maior. “E aí, filhão, o que você pode me ensinar hoje?” Ele vai dizer o que ele viu com uma perspectiva de mandatário, de autonomia e não de auditoria. Outra coisa: pais e mães precisam ir à escola pública e privada ver o que acontece. Precisam conversar, participar do conselho de escola se houver, ou das reuniões de pais. Dá trabalho, mas é o mesmo trabalho que dá quando seu chefe manda você participar de uma reunião às 10 horas da noite. É isso que tem que ser feito, disponibilidade para esse tipo de situação.