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Eterna descoberta

O fotógrafo e cineasta Walter Carvalho explica como arte, técnica e conhecimento se mesclam num aprendizado para toda a vida




Com mais de 50 prêmios recebidos no Brasil e no exterior – um dos mais recentes foi um Candango de melhor direção de fotografia por Cleópatra (2007), de Julio Bressane, no 40º Festival de Brasília –, o fotógrafo e cineasta paraibano Walter Carvalho, de 58 anos, é um dos mais consagrados nomes do cinema brasileiro. De fala mansa, mas apaixonada – sobretudo, quando o assunto é a mistura de arte e vida em seu trabalho –, o entrevistado da seção Depoimentos desta edição confessa-se um eterno aprendiz, sempre permeável às influências e às pessoas que ele vem “costurando” em sua imensa colcha de retalhos. “O tempo passa e você vai absorvendo alguns conhecimentos a cada filme, é sempre mais uma estrada a ser percorrida e descoberta, de invenções e encontros.” Ao longo do caminho, o fotógrafo tem sido o responsável pela imagem de alguns dos mais importantes filmes da atual produção nacional – entre eles o documentário Entreatos (2004), de João Moreira Salles, e os longas de ficção Amarelo Manga (2003) e Baixio das Bestas (2007), de Cláudio Assis, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, e Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho. Na conversa que teve por telefone com a Revista E, de sua casa no Rio de Janeiro, Walter Carvalho contou como seu irmão, o documentarista Vladimir Carvalho, lhe “aplicou o cinema”, quando ele era garoto, falou do primeiro filme do qual fez a fotografia e avisou que está previsto para abril o lançamento de mais um filme seu como diretor, Budapeste, adaptação de romance homônimo de Chico Buarque. A seguir, trechos.

Primeiras imagens

A origem mais remota do meu interesse por imagem vem de muito garoto, quando eu tinha uns 14, 15 anos, e comecei a estudar desenho e pintura. Depois comecei a gostar de fotografia – mas, mais que na fotografia em si, eu estava interessado na questão da imagem.
Quando adolescente, fui ajudar meu irmão, que é documentarista, o Vladimir Carvalho, nas filmagens dele, e aquilo me estimulou ainda mais. Então, eu costumo dizer que foi meu irmão que me “aplicou” o cinema, porque eu fui ajudá-lo, ser assistente, e cuidava de tudo, era assistente de tudo, na verdade. Em 1968, eu vim morar no Rio de Janeiro, prestei vestibular para desenho industrial e entrei na Esdi [Escola de Desenho Industrial, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Uerj], no ano seguinte, 1969. E umas das matérias do curso era fotografia. Eu, que já tinha sido “aplicado” pelo cinema com o Vladimir, conheci o Roberto Maia, um dos professores, que não me ensinou fotografia propriamente, mas me ensinou a coisa mais importante: gostar de fotografia. E aí eu comecei a desenvolver o meu trabalho de fotografia e comecei fotografar, junto com ele [Maia] também. Fui assistente dele num filme, ainda muito aprendiz. Então essa é a origem, que passa pela pintura, pelo desenho industrial e por essas duas pessoas que foram fundamentais na minha vida.

Estrada sem fim

Quando terminei o primeiro ano da Esdi, meu irmão me convidou para fotografar o que viria a ser meu primeiro filme, Incelência para um Trem de Ferro, de 1971. Ele me ligou e falou: “Vamos para o Nordeste, a gente aproveita e visita a nossa mãe” – ele morava em Brasília e eu no Rio – “e você fotografa o filme comigo”. Era um documentário, na verdade, sobre aquela maria-fumaça pequenininha, que trazia a cana-de-açúcar para a usina, puxando aqueles vagões e tal. Mas falei para ele que não sabia ainda como fazer, que estava tentando aprender ainda. Aí ele me disse a frase-chave: “Vamos lá fazer, você é meu irmão, se você errar eu não conto para ninguém”. Aí fomos, nos encontramos lá, e fotografei o filme. Na época, fui com dois fotômetros emprestados, um do meu professor, Roberto Maia – que me deu muita força para eu ir –, e o outro do José Carlos Avellar, crítico do Jornal do Brasil na época e amigo do Vladimir. E foi assim que eu fiz meu primeiro filme. Agora o interessante é que, desde aquele período até aqui, tudo é um aprendizado. Até hoje não aprendi, até hoje estou buscando, descobrindo, procurando, continuo estudando, porque o tempo passa e você vai absorvendo alguns conhecimentos a cada filme, é sempre mais uma estrada a ser percorrida e descoberta, de invenções e encontros.

Tecnologia de vida

Não acredito que a tecnologia seja definitiva para você desenvolver os trabalhos. Acho que antes da tecnologia vem a vida da pessoa, o contato com o ser humano, a descoberta da generosidade de alguém para você ou mesmo das injustiças que alguém comete com você, e você compreende aquilo de uma forma necessariamente generosa para não ser atingido. Ao mesmo tempo, isso se dá com espontaneidade, com poesia, com os conteúdos que chegam para você. É preciso apenas estar atento para reconhecer aquilo [as influências e experiências] como uma coisa a se dar as mãos. Para mim não tem o aprendizado ipsis literis, acho que o aprendizado é mais uma consequência de uma atividade – e cada uma delas tem uma tecnologia, uma mecânica, uma metodologia que você encontra nos livros e na prática. Mas o que você não encontra nos livros, e só pode encontrar na vida, é a linguagem que você trabalha. E ela é a própria vida, porque o barato é quando você apura a linguagem, aprofunda, estuda, vai muito fundo e vê que ela vira vida, ela deixa de ser linguagem e passa a ser vida. E isso é a sublimação, que você atinge pela experiência de vida, não porque você está trabalhando com essa ou com aquela tecnologia, mas porque você está trabalhando com o ser humano, está trabalhando com a subjetividade sua e a do outro. Você também tem de se propor a compreender a subjetividade do outro.

Gerações

O encontro [com os cineastas mais jovens] se dá porque você acredita na força modificadora do cinema. Se você acredita nisso, o encontro com uma pessoa da sua idade ou mais velha ou mais nova – e se há naquele encontro uma sublimação do ponto de vista de compreender a vida, se os pontos de vista coincidem no sentido de compreender a vida por meio da arte, do cinema, do documentário etc. – se dá naturalmente. Por exemplo, recentemente tive um encontro que foi muito determinante na minha vida: depois de conviver muito tempo com determinadas pessoas, fui fazer a fotografia de um documentário sobre o Francisco Brennand, e o meu encontro com ele, o que eu escutei dele, o que ele me escutou, o que nós refletimos sobre o que estávamos fazendo, nós dois, juntos, foi de uma importância tão grande, que aquilo se transformou dentro de mim numa energia, numa razão. E são muitos os encontros. Existe um poeta carioca, mais velho que eu um pouco, chamado Armando Freitas Filho, que a cada encontro que tenho com ele – estou inclusive filmando o Armando – é como se aquilo fosse uma injeção, uma aplicação subcutânea de uma substância que circula em você, colocando você a pensar, a viver, a observar, a andar, a respirar, a acordar, a caminhar, a escrever, a fotografar uma substância que te move, porque ao ouvir o Armando Freitas falar de sua poesia, ou de si próprio, aquilo emana, e se inocula em mim, e move, e impulsiona. Esse é um processo equivalente ao do cinema. De vez em quando você encontra uma pessoa que vai junto com você, você vai junto com ela, e o suporte de navegação no qual você se apoia, junto com seu companheiro, é o próprio filme.