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60 Anos de comunicação

Em 2010, a TV no Brasil completa 60 anos. As seis décadas dessa história marcaram definitivamente a vida de milhões de telespectadores, que se viram arrebatados pela narrativa veiculada na telinha como forma de informação e lazer. Foi e ainda é na TV que milhões de espectadores buscam os fatos reais e a porção diária de ficção – sobretudo nas telenovelas.

Analisam esse fenômeno de massa e a história desse meio de comunicação no país a professora livre docente de Teoria e História do Cinema e da Televisão na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Esther Hamburger, e a jornalista e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Rosa Maria Bueno Fischer.

Por uma TV Criativa

por Esther Hamburger

A TV chega aos 60 anos no Brasil menos importante do que foi nas últimas décadas do século 20. Sacudida pela diversificação tecnológica, política, artística e cultural, a TV contemporânea se distancia do formato centralizado da TV aberta que vigorou até os anos de 1990. Seu desafio é encampar novas formas, abrindo mão de vícios de programação de qualidade duvidosa. A TV do futuro deve potencializar os anseios de crescimento de um público que busca formas criativas de estar no mundo.

Nos anos de 1970 e 1980 não havia TV a cabo, internet, a penetração do vídeo era limitada a poucas residências com poder aquisitivo. Durante esse período, o país vivia sob uma ditadura militar que valorizou a televisão como meio de comunicação estratégico para o que o regime definiu como sua política de “integração nacional”. O investimento governamental em infraestrutura possibilitou que em 1969 a televisão realizasse pela primeira vez transmissões em rede nacional.

O Jornal Nacional foi o primeiro programa transmitido ao mesmo tempo ao vivo para todas as regiões então aptas a receber o sinal televisivo. Na época, o alcance da TV estava limitado às cidades grandes e suas proximidades. Nos anos de 1980, cerca de 30 anos depois da inauguração da TV, o sinal chegou a 99% do território brasileiro. Em um país de poucos leitores, a televisão se tornou um canal privilegiado de comunicação e imaginação nacional. A TV significava “modernização”.

Os horários da programação televisiva passaram a regular a vida cotidiana nos mais imprevistos recantos do país. Como os jornais no século 19 europeu, a televisão no Brasil do final do século 20 funcionou como um ritual compartilhado por cidadãos dos mais diversos lugares, idades, sexo e classe social. A televisão propiciou um repertório comum de programas e temas que suscitam divergências em torno de uma pauta comum.

A programação valorizou um mercado consumidor emergente, em que novos produtos eletrônicos e novos meios de comunicação e transporte simbolizavam o “desenvolvimento” da sociedade, que se queria “do futuro” e se opunha à “tradição”. No universo glamuroso da ficção e da notícia de TV não havia espaço para pobres, negros ou para paisagens populares. O divórcio ganhou legitimidade antes de se tornar lei. O telejornal desenvolveu linguagem baseada em frases curtas e diretas, notícias rápidas bastante editadas, com pouca opinião e muita cobertura de eventos oficiais. Já a novela se mostrou relativamente permeável à crítica social.

Em 1968, Beto Roquefeller, de Bráulio Pedroso, ousava apresentar na TV Tupi o folhetim eletrônico situado na temporalidade contemporânea e em locações conhecidas na cidade de São Paulo. Os diálogos coloquiais contribuíram para estabelecer convenções de representação naturalistas, diminuindo a distância entre o universo cotidiano dos espectadores e o universo diegético da narrativa. A Globo se inspirou na realização da Tupi para inaugurar uma série de novelas que afirmaram um mesmo estilo dramatúrgico.

Ao longo dos 20 anos seguintes as novelas ampliaram sucessivamente o escopo dessas convenções narrativas. Mobilizando as cores nacionais e emolduradas por vinhetas com referências a símbolos como Brasília ou a selva amazônica, novelas fizeram crônicas do cotidiano em tempos de abertura política. Em 1989, os últimos capítulos da novela Vale Tudo alcançaram expressivos índices de audiência, além de ganhar espaço nas mais diversas editorias de jornais da grande imprensa diária. A TV extrapolava os espaços a ela reservados.

Em 2010, o modelo que consolidou a TV no Brasil já não dá conta da diversidade de formas e meios. Nos últimos 15 anos a pobreza diminuiu, segmentos classificados como DE nas pesquisas de audiência passaram a ser incluídos nos índices. A TV concorre com o DVD, a internet, o cinema. O número de domicílios com acesso à internet aumenta vertiginosamente, em ritmo maior que o crescimento da televisão a cabo (um negócio introduzido tardiamente e em condições pouco favoráveis aos espectadores).

A televisão está em vias de se transformar radicalmente. A grade de programação, conceito central na TV que se estabeleceu como o meio de comunicação nacional e poderoso no Brasil centralizado do século 20, cede lugar à internet, meio no qual o espectador pesquisa, escolhe e baixa um leque maior de programas, em horários também variados. Diminui o número de pessoas assistindo aos mesmos programas simultaneamente.

Hoje a audiência da TV diminuiu, especialmente entre os jovens. Os que possuem acesso a computadores e com conexão de banda larga à rede mundial baixam programas de televisão ou filmes estrangeiros. Um desenho animado japonês ou um seriado americano podem ser assistidos em horários e ordem da preferência do internauta. O extenso repertório de programetes disponíveis para livre acesso no You Tube é também uma fonte popular de entretenimento e informação.

A televisão do século 21 deve ser interativa, incorporando os monitores de computador, forma de acesso ao conteúdo televisivo que tende a se tornar cada vez mais popular. Inclui também a TV no celular. Via telefonia móvel, os conteúdos televisivos podem acompanhar espectadores em seus deslocamentos nas metrópoles. Nessa televisão de acesso segmentado, às vezes até individualizado, qual o sentido da grade de programação?

Essa televisão ampliada continuará a oferecer um repertório comum? Qual será o potencial provocador da TV no século 21? Se não quiser ficar para trás a TV brasileira deve sintonizar o desejo de mudança de uma sociedade que se quer menos consumista, mais solidária e rica – em ideias.

Esther Hamburger é antropóloga, crítica e ensaísta. Professora livre docente de Teoria e História do Cinema e da Televisão na Escola de Comunicações e Artes da Universidade São Paulo (ECA-USP), é PhD pela Universidade de Chicago e pós-doutora pela Universidade do Texas e atualmente é diretora do Cinusp “Paulo Emílio”. É autora do livro O Brasil Antenado, a Sociedade da Novela (Zahar, 2005), além de inúmeros artigos em livros, revistas especializadas e na imprensa diária
 
“A TV brasileira deve sintonizar o desejo de mudança de uma ?sociedade que se quer menos consumista, mais solidária e rica – em ideias”


A TV como prática narrativa de nosso tempo
por Rosa Maria Bueno Fischer

Desde minhas primeiras pesquisas sobre televisão e educação, nos anos de 1980 (portanto, nos últimos 30 anos, metade do tempo de “vida” da TV brasileira), observo que esse meio de comunicação tornou-se parte fundamental do cotidiano deste país.

Meus estudos com crianças e jovens, de diferentes camadas sociais, mostram o quanto esses grupos encontram nas narrativas da TV uma fonte que lhes parece por vezes imprescindível – de informação e de lazer, propiciando que se sintam efetivamente parte da vida social brasileira. Muito recentemente, visitei uma pequena cidade mineira (Lavras Novas).

Cruzando ora com um burro, ora com uma vaquinha que tranquilamente andavam pela rua principal da cidade, encontrei grupos de jovens reunidos junto à enorme cruz diante da igrejinha local. Eles esquentavam o corpo ao sol, num dia frio, conversavam animadamente. E me disseram: “A gente tá aqui esperando a hora da novela Ti-ti-ti”. Já se haviam divertido com o pique-esconde e outras brincadeiras infantis, que seguem presentes na adolescência, e depois voltariam para casa, onde a TV e suas histórias os esperavam.

Não há dúvidas sobre a forte presença da TV em nossas vidas brasileiras. Se anos atrás ouvíamos que algo “realmente aconteceu”, porque “deu no jornal”, hoje dizemos que “saiu na TV”, “eu vi na TV”. Para o bem ou para o mal, é ali, na tela da TV, que encontramos tematizadas histórias fictícias ou fatos ditos “reais”, os quais pautam nossas conversas e inclusive nossas opiniões e juízos.

Obviamente, isso não é tudo. Para quem como eu já trabalhou numa emissora educativa, do Governo Federal, é evidente que há vários problemas na TV brasileira, a começar pela concentração e centralização das grandes emissoras, o que provoca uma enorme padronização de modos de vida, de consumo e de relação com o mundo.

Quando assistimos a programas alternativos, de emissoras locais ou de tevês educativas e culturais, podemos constatar a real possibilidade de novas linguagens, a abertura de espaços a vozes diversas, além de outros usos do tempo, em telejornais, documentários, reportagens e também programas de ficção; ao mesmo tempo, constatamos a força das grandes emissoras e seus modos de narrar a vida brasileira (e de outros pontos do planeta), no sentido de também padronizar a própria maneira de fazer televisão.

Gosto de insistir na afirmação de que esse espaço, das mídias, e particularmente da TV, não é algo “fora” de nós, da família, da escola e de outros espaços institucionais. Trata-se, na TV, de narrativas que nos mostram como passamos a compreender de outro modo a velocidade do tempo, das informações, da comunicação com o outro, das próprias relações interpessoais, dos modos de ler e escrever, e assim por diante.

E não é somente o tema da velocidade que ganha outros contornos e marca nossas vidas com a TV: profundas alterações podem ser observadas nas concepções que passamos a ter a respeito de ser criança, adolescente, jovem, adulto; na maneira como olhamos para o nosso corpo e para o corpo dos outros e como os julgamos; nas práticas de consumo, cotidianas, em que quase sempre o bem que desejamos ou que adquirimos existe para nós não só como objeto de uso, mas principalmente como uma imagem que nos fascina e que “faz algo” conosco. Tudo isso tem a ver com novas formas de construir narrativas e também subjetividades em nosso tempo.

In the future everybody will be world-famous for 15 minutes. A frase do artista pop norte-americano Andy Warhol, nos anos de 1960, prenunciava a possibilidade de um dia simples mortais terem seus breves minutos de fama: num telejornal, num programa de auditório, num debate, num comercial, num talk show. Os quinze minutos de Warhol, a meu ver, nos falam da espetacular transformação que experimentamos no que se refere à relação entre os espaços público e privado, especialmente com a presença da TV em nossas vidas.

Hoje, um dos modos privilegiados de estar no espaço público é estar na mídia, é estar na tela da TV, estar nas redes digitais, como se assim pudéssemos pertencer a uma ampla “comunidade”, que nos acolhe tal qual uma grande “mãe cultural”. Mas estamos de que modo nesse espaço “público” da mídia? Tudo indica que buscamos avidamente a exibição do que é mais pessoal, privado e cotidiano, como se pudéssemos colocar sob as luzes e diante das câmeras de TV a verdade mais íntima do ser humano, e nos olhar nela, insistentemente.

Os tais quinze minutos de fama chegaram, mas têm suas regras. Uma delas é a invasão da intimidade, o olho curioso das câmeras em direção ao que, até pouco tempo, permanecia ou deveria permanecer reservado a muito poucos, ou somente a cada um de nós, entre quatro paredes.

Penso que políticos, educadores, psicólogos – e tantos outros profissionais – se preocupam com a TV, justamente pelo fascínio das imagens, pela captura que suas narrativas fazem de nós, pessoas de todas as idades e níveis sociais. Por essa razão, imagino a necessidade de propostas muito concretas de como intervir em tal espaço, para além daquelas críticas que afastam ainda mais, especialmente a escola, desse lugar quase mítico das belas e intocáveis imagens, ou dos textos, rostos e figuras que, em circulação nas mídias, explicitamente excluem inúmeros grupos, milhares e milhões de rostos, cores, diferenças brasileiras.

Quando insistimos em estabelecer relações entre cultura, mídia e produção de sujeitos, na realidade estamos tratando de complexas lutas de poder, em nosso tempo. Em outras palavras: cada vez mais, hoje, estão em jogo na sociedade lutas simbólicas, lutas pela hegemonia de sentidos, lutas pela visibilidade de imagens, e que estão associadas a determinados grupos, a determinadas causas, a determinadas ações políticas.

Tudo isso tem a ver com relações de poder e com estratégias de resistência. Por exemplo: a mídia, especialmente a TV, tem insistido em “educar” os adolescentes, em dizer a eles o que fazer com seus corpos, com sua sexualidade, com sua vida política, e assim por diante. Há um imperativo, para as meninas, de que seus corpos sejam belos, de que seus cabelos sejam lisos, de que elas sempre estejam prontas a satisfazer o desejo do homem.

É preciso sublinhar que não é só a TV que produz esses discursos; eles circulam por diferentes lugares, e os meios de comunicação os transformam a seu jeito, produzindo outras enunciações, nas novelas, nos reality ?shows e telejornais.

É preciso não só fruir mas pensar a TV: ir além da TV, pensar sobre o que ela nos movimenta a ver e sentir, e ir adiante. Expor aos mais jovens outras possibilidades de encontro com bons materiais audiovisuais, oferecidos até pela própria TV; mostrar que há uma beleza de criação ali também; observar como um tipo de linguagem, que é do nosso tempo, fala de coisas tão importantes como a vida e a morte, os sonhos, os desejos mais profundos do humano; e como, por outro lado, muitas vezes isso não está presente nas narrativas da mídia, concentradas no superficial, no sensacionalismo, no espetáculo das vidas, muitas vezes vidas cheias de violência e pobreza.

“Viver é perigoso”, já nos dizia Guimarães Rosa. Eu penso que um dos perigos do nosso tempo é este: deixar sem discussão a presença da TV, como se fosse tudo muito natural. Ora, o desejo dos anunciantes e das grandes emissoras não é necessariamente o desejo dos diferentes grupos sociais. Precisamos criar mecanismos, na sociedade civil, para exigir uma TV melhor, mais criativa, mais respeitosa conosco, com as maiorias e as minorias deste país. Exigir qualidade (e pensar sobre o que nos é mostrado) não é exigir censura, é lutar por um direito legítimo.

Rosa Maria Bueno Fischer é jornalista, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Também autora dos livros O Mito na Sala de Jantar: Discurso Infanto  Juvenil sobre a TV (Editora Movimento, 1984) e Televisão & Educação: Fruir e Pensar a TV (Autêntica Editora, 2003).


“Quando insistimos em estabelecer relações entre cultura, ?mídia e produção de sujeitos, na realidade estamos tratando ?de complexas lutas de poder, em nosso tempo”