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Arte sobre foto de Ana Carolina Fernandes
Arte sobre foto de Ana Carolina Fernandes




O professor discorre sobre a posição da filosofia na sociedade contemporânea e sobre as relações do pensamento com a arte e a ciência


O professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Machado tem uma longa e profícua carreira no campo da filosofia. Bacharel pela Universidade Católica de Pernambuco, aprimorou a formação acadêmica cursando mestrado e doutorado na Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Na França, estagiou no Collège de France, onde foi orientado por Michel Foucault (1926-1984), entre os anos de 1973 e 1980.


Já no pós-doutorado, concluído na Universidade de Paris VIII, trabalhou com Gilles Deleuze (1925-1995), entre 1985 e 1986. A convivência com os mestres gerou impacto em sua produção acadêmica, originando as obras A Trajetória da Arqueologia de Foucault (Graal, 1982); Foucault, a Filosofia e a Literatura (Zahar, 2000); e Deleuze, a Arte e a Filosofia (Zahar, 2009). Livros que são desdobramentos temáticos de seus estudos, debruçados sobre o trágico e a racionalidade, passando pelas linhas da estética e história da filosofia, temas que permeiam a entrevista concedida pelo professor à Revista E.



Como a filosofia pode contribuir para a discussão de problemas contemporâneos fora da academia? Qual sua opinião a respeito da consultoria filosófica para organizações da sociedade civil?

Considero muito importante e saudável o interesse crescente pela filosofia que notamos em várias instituições não filosóficas e não acadêmicas. Acho que isso pode ser explicado pelo clima de incerteza e perplexidade em que vivemos. Estamos assistindo à ruína dos grandes princípios que fundamentavam as doutrinas e as sociedades.


Ora, do mesmo modo que as filosofias estabeleceram esses fundamentos, elas também estão na base de sua crítica e da tentativa de encontrar novas formas de pensamento e de ação que sirvam como alternativas às que estão sendo enterradas. Além disso, mesmo quando não queremos ou não sabemos, a filosofia impregna nossa vida nas formas das visões de mundo e comportamentos que assimilamos na família, na escola, na vida social etc. A maioria das pessoas não se dá conta disso e repete pensamentos dos outros como se fossem seus.


O estudo da filosofia, na Universidade, em leituras individuais, em pequenos grupos, em instituições, ou até mesmo em aulas na TV, ao aumentar a criticidade e a criatividade, contribui para a formação de um pensamento livre e ciente de suas implicações. E mais importante do que estudar determinados filósofos, isto é, ter erudição em filosofia, seguindo cursos para se ilustrar, é ousar pensar com determinados filósofos que nos dão instrumentos para pensarmos nossas próprias questões. Uma das maravilhas da filosofia é ela ter várias portas, abrindo espaço para todo mundo.



O que justifica a atualidade da obra de Nietzsche?

A filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) tem um objetivo relevante: a crítica da modernidade. É isso, inclusive, que o faz voltar ao passado, suspeitar da metafísica e do cristianismo e mostrar que a modernidade positivista, humanista, cientificista, mais do que uma ruptura, é apensas uma metamorfose.


Em pleno século 19 – época do nascimento da história concebida como processo teleológico, processo orientado para um fim –, situando sua análise no nível da força, da intensidade, da vontade de potência, Nietzsche teve o sentimento de que o homem de sua época não era melhor do que o homem do passado. Era apenas mais fraco, mais doente, mais ressentido e culpado.


Ele faz, então, uma genealogia dos valores em que a vida, considerada como vontade de potência, é tomada como critério de avaliação dos valores filosóficos, políticos, artísticos e éticos. E sua conclusão é clara: o homem moderno é um niilista. Seja porque é um metafísico, que pensa que a vida boa e verdadeira é a vida eterna e imutável, prometida como recompensa de uma vida virtuosa aqui na Terra, e projeta em um além-mundo sua vontade negativa de potência.


Seja porque é um humanista que, descrente no além e na recompensa em uma vida eterna, é um defensor do progresso e projeta no futuro a vida plena e verdadeira, como se só o futuro pudesse dar valor à vida presente. Seja porque é um niilista “passivo”, um pessimista – personagem cada vez mais comum no mundo globalizado –, caracterizado por um nada de vontade, alguém que não tem mais esperança em Deus, nem acredita mais em progresso humano. Simplesmente considera que o homem não deu certo.
Os que leem Nietzsche sabem o quanto sua crítica do niilismo do homem moderno e a busca de novas possibilidades de vida fazem dele um instrumento de análise poderoso. 


Pois, embora assistam à derrocada dos valores otimistas do humanismo, eles se sentem protegidos pelo caráter afirmativo de sua visão trágica contra o pessimismo desesperado dos que, tristes, lamentam que o homem não deu certo e deixam de pensar e agir com coragem e alegria. Nietzsche toca as pessoas pela possibilidade que oferece de uma crítica aos valores niilistas das sociedades contemporâneas, sem levar ao desespero ou à sensação de falta de saída, ao apresentar uma perspectiva trágica sobre a vida que é profundamente afirmativa, abrindo a possibilidade de experimentar novas formas de pensamento e de ação.



É possível dizer que vivemos, no Brasil, uma crise da filosofia, tendo em vista a inclinação dos nossos filósofos aos estudos de história da filosofia?


Se olharmos historicamente, verificaremos que não há crise da filosofia no Brasil. Quando comecei a lecionar, no início dos anos 1970, o que existia em regra geral na grande maioria dos cursos, era uma concepção doutrinária da filosofia que se utilizava do manual, que nada mais é do que uma exposição dogmática dos resultados do pensamento filosófico.


Essa perspectiva é muito pobre, pois a maneira de aprender a filosofar é se debruçar sobre os textos dos grandes filósofos, daqueles que representam um marco na história da filosofia por terem inaugurado uma problemática nova, produzido novos conceitos fundamentais.


Porém, se o conhecimento da história da filosofia é uma condição necessária, não é uma condição suficiente para que alguém se torne filósofo. E o que se começa a descobrir é que um bom curso de filosofia deve ter como objetivo formar o aluno para falar filosoficamente em seu próprio nome a partir de suas leituras, seus pensamentos, suas experiências; que um bom curso de filosofia deve ensinar a pensar livremente.


O que se começa a sentir na universidade é que, além de um estudo propriamente monográfico, o que se deve fazer é um estudo temático, problemático, que, além de dar conta do pensamento de um autor, confronte ou relacione autores sobre determinada questão colocada por um grande filósofo a partir de quem desejamos pensar, ou inspirada por nossa própria reflexão, se formos capazes. É esse o grande desafio que os cursos de filosofia estão vivendo na universidade. Mas vai ser preciso muita criatividade e muita coragem para libertar a filosofia da história da filosofia.



Qual o impacto do conceito de Deleuze de que o pensamento não é privilégio da filosofia, mas também é produzido pela arte e pela ciência?


Essa ideia é muito importante para a filosofia. Pois a ideia que tem grande penetração desde Immanuel Kant (1724-1804) é que a filosofia é um metadiscurso, uma metalinguagem que teria por objetivo formular ou explicitar critérios de legitimidade ou de justificação. Uma espécie de polícia discursiva, se eu quiser exagerar.


Já a filosofia de Gilles Deleuze (1925-1995) se caracteriza por não distinguir a filosofia das ciências e das artes por uma diferença de nível, isto é, ele não pensa que os outros saberes produziriam conhecimento e a filosofia seria uma reflexão sobre esses conhecimentos das ciências, das artes, da literatura. Para Deleuze, a filosofia é criadora e não reflexiva, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não. Assim, quando sua filosofia se relaciona com saberes de outros domínios, o objetivo não é legislar sobre eles, é estabelecer conexões ou ressonâncias de um domínio a outro, a partir da questão central que orienta suas investigações: “o que significa pensar?” ou, mais precisamente, “o que é pensar sem subordinar a diferença à identidade?”.


Essa ideia também me parece importante, porque isso não significa assimilar os diferentes domínios de saber, pois o poder criador da filosofia é específico. Deleuze dirá isso, em seu último livro, O Que é a Filosofia? (Editora 34, 2000), defendendo que o objetivo da ciência é criar funções, o objetivo das artes e da literatura é criar agregados sensíveis, o objetivo da filosofia é criar conceitos. Assim, há especificidade dos saberes, no sentido de que cada um responde às suas próprias questões ou procura resolver com seus próprios meios — conceitos, funções, sensações — problemas semelhantes aos levantados pelos outros saberes. Foi partindo dessa ideia que Deleuze criou os conceitos de sua filosofia da diferença.



O fato de Deleuze se debruçar sobre o cinema fez com que essa arte tivesse mais prestígio na academia?


O cinema já tem prestígio na academia, pois é estudado com rigor e profundidade em escolas de cinema, de comunicação, de audiovisuais, de belas-artes. O que Deleuze fez foi introduzir o cinema nos cursos de filosofia. Pode-se até dizer que ele foi efetivamente o primeiro filósofo a valorizar o cinema, integrando-o a seu pensamento. Além disso, se há bons livros sobre cinema produzidos no Brasil por acadêmicos, o de Deleuze é diferente.


Pois é um livro de filosofia que pensa a partir ou com o cinema. Quero dizer com isso que Deleuze pensa filosoficamente a partir de outros filósofos que ele privilegia como bons instrumentos para pensar a questão da diferença – que é a questão principal de sua filosofia –, principalmente Nietzsche, Baruch Espinoza (1632-1677) e Henry Bergson (1859-1941). Mas ele também articula a partir de outros tipos de pensamento, isto é, de um pensamento não conceitual que se encontra nas ciências, nas artes, na literatura. É isso o que acontece quando ele estuda o cinema.


Assim, partindo da ideia de que o cinema é uma forma de pensamento, de que os grandes cineastas são pensadores, embora não pensem conceitualmente, mas por imagens, a primeira grande tese de Deleuze, ao elaborar uma classificação das imagens cinematográficas, é que no cinema há imagens em que o movimento subordina o tempo, e imagens-tempo, em que o tempo se emancipa do movimento, as primeiras caracterizando o cinema clássico, as segundas o cinema moderno, que se inicia com o neorrealismo italiano.



Qual é a razão para a relativa marginalidade de Nietzsche, Foucault e Deleuze nos cursos de filosofia?


A marginalidade desses autores nos cursos de filosofia é cada vez menor. Basta pensar no número de teses que eu e outros professores universitários orientamos sobre eles, na grande tiragem de seus livros, no sucesso dos congressos sobre eles. É verdade que houve e ainda há algum tipo de resistência, mas isso é explicável. No caso de Foucault e Deleuze, ela provém, em parte, de se pensar que só é possível filosofar em alemão, o que leva a um menosprezo pelo que foi feito, por exemplo, na França, em matéria de filosofia. Também provém de eles terem sido bastante marcados pela literatura, a ponto de não considerarem incompatível o rigor conceitual com a beleza do estilo.



Sendo difíceis de ler, uns não fazem o esforço necessário para isso e outros os repetem sem entender profundamente o que estão dizendo. Além disso, essa resistência provém, ainda, de que esses pensadores não reduzem a filosofia à história da filosofia, pois articulam o discurso filosófico com a literatura, as artes, as ciências, a política, ousando pensar por si mesmos, criando novos conceitos. E talvez essa resistência provenha, antes de tudo, de que esses filósofos são profundamente marcados pela suspeita que Nietzsche ousou formular a respeito de temas importantes da modernidade, de uma radicalidade às vezes insuportável.



Qual o impacto da teoria dos micropoderes de Foucault nas ciências políticas e sociais?


Nos anos 1970, Foucault elaborou uma genealogia do poder com a qual procurou explicar o aparecimento dos saberes sobre o homem como elementos de um dispositivo de natureza política, como peças de relações de poder. As novidades principais dessa abordagem foram: primeiro, rejeitar a identificação entre poder e aparelho de Estado, dando importância aos micropoderes, isto é, à rede de poderes moleculares que se expande por toda a sociedade; segundo, caracterizar o poder não apenas como repressivo, mas também como disciplinar, normalizador; terceiro, analisar o saber como peça de um dispositivo político que o produz e é intensificado por ele; e quarto, defender a eficácia das resistências específicas aos variados dispositivos do poder como modo de se insurgir contra a dominação burguesa que os próprios saberes sobre o homem ajudaram a criar e a aperfeiçoar.




No que resultaram essas ideias?


O impacto dessas ideias foi muito grande no Brasil e no resto do mundo, instrumentalizando muitas pesquisas no campo das ciências humanas e sociais. Isso porque elas permitiram ver que, além do aparelho de Estado, há na sociedade uma série de poderes periféricos e moleculares, poderes locais, específicos, circunscritos, que devem ser analisados teoricamente como mecanismos políticos que realizam uma função disciplinar.



E as contribuições de Foucault?


Uma das grandes contribuições de Foucault foi mostrar que o poder tal como é exercido na modernidade precisa gerir a vida dos indivíduos e das populações para utilizá-los ao máximo, com um objetivo ao mesmo tempo econômico e político: torná-los úteis e dóceis, trabalhadores e obedientes. Outra contribuição foi mostrar que não basta o controle político ou a destruição do aparelho central do Estado para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede de micropoderes que impera nas sociedades modernas.


Não é tomando o poder central que se modifica necessariamente o fundamental na escola, no hospício, na prisão ou no hospital. Cada uma dessas instituições levanta questões específicas no que diz respeito a esses poderes que se articulam com o poder central, mas não são a simples extensão de seu raio de ação. Assim, a genealogia dos micropoderes realizada por Foucault serviu para mostrar que a luta política não se realiza apenas com relação ao Estado, mas no cotidiano dos órgãos técnicos, científicos, educacionais, e em todos os outros que vigoram em nossas sociedades e são essenciais para que elas funcionem.




“O que se começa a descobrir é que um bom curso de filosofia deve ter como objetivo formar o aluno para falar filosoficamente em seu próprio nome a partir de suas leituras, seus pensamentos, suas experiências; que um bom curso de filosofia deve ensinar a pensar livremente”


 
“Assim, do mesmo modo que Nietzsche durante muito tempo foi malvisto, mesmo filosofando em alemão,  com ainda mais razão, seus criativos discípulos franceses foram desconsiderados. Mas em grande parte isso já é coisa do passado”



“O cinema já tem prestígio na academia [...] O que Deleuze fez foi introduzir o cinema nos cursos de filosofia. Pode-se até dizer que ele foi efetivamente o primeiro filósofo a valorizar o cinema, integrando-o a seu pensamento”



“Uma das grandes contribuições de Foucault foi mostrar que o poder tal como é exercido na modernidade precisa gerir a vida dos indivíduos e das populações para utilizá-los ao máximo, com um objetivo ao mesmo tempo econômico e político: torná-los úteis e dóceis, trabalhadores e obedientes”


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