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Bárbara Heliodora - 91 anos, escritora e tradutora

Foto: Alexandre Nunis
Foto: Alexandre Nunis

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Rio de Janeiro, no Beco do Boticário, em uma bela casa construída por seu avô no Bairro do Cosme Velho - marcado pela memória de ilustres moradores - vive Bárbara Heliodora. Acolhedora, clara e objetiva em suas opiniões, firme aos 91 anos, Bárbara nos recebeu para falar da vida,de mudanças e de sua paixão por Shakespeare.

 

Mais 60: Bárbara, normalmente no início de nossas entrevistas, pedimos que nosso convidado fale sobre sua infância, família.

Bárbara Heliodora: Nasci aqui no Rio, na Rua Marquês Abrantes, 189, onde morei até casar.Toda minha infância passei em Botafogo. E olhe! Não nasci em hospital, nasci em casa. Meu pai fez Engenharia, mas não concluiu o curso, dizia ele, porque precisou trabalhar. A família de meu pai era mineira, várias gerações, de Paracatu. Ele chegou ao Rio com seis anos, quando sua família mudou-se para o Rio de Janeiro. Minha mãe era carioca e com cinco anos mudou-se para Minas.

Mais 60: E sua vida escolar, como foi?

Bárbara Heliodora: Cursei o Colégio Andrew e a faculdade de Filosofia. Vou contar uma história: naquele tempo, todo mundo fazia o exame de admissão para entrar no primeiro ano de ginásio, mas o mínimo era com 11 anos de idade. Acontece que eu fiz um teste de QI, no final do quarto ano primário e entrei no ginásio com dez anos. Fiz onze anos no final de agosto do primeiro ano do ginásio. Minha mãe sonhava que eu fosse advogada, não sei o porquê. Bem, entrei para a Faculdade de Filosofia. Quando estava no segundo ano, tirei uma bolsa de graduação para ir aos Estados Unidos, me formei e tirei meu bacharelado nos Estados Unidos.

Mais 60: Seu pai, Marcos Carneiro de Mendonça, jogou futebol no Fluminense e foi goleiro da seleção brasileira.

Bárbara Heliodora: Sim, mas naquele tempo eram todos amadores, jogavam futebol por esporte e prazer. Meu pai foi goleiro da Seleção Brasileira e tinha 19 anos quando a seleção jogou contra o Exeter City, em 21 de julho de 1914. No domingo passado, fui ao Fluminense para a comemoração dos cem anos desse que foi o primeiro jogo internacional da seleção brasileira contra um time da Inglaterra. Saiu um selo comemorativo, com a fotografia da seleção e meu pai está lá. Mas, quando meu pai casou, meu avô materno - que não tinha filhos - quis que ele fosse trabalhar com ele. Meu avô materno era engenheiro, sonhava que o Brasil tivesse uma siderurgia, já que o país era muito rico em minério de ferro. No interior de Minas estabeleceu uma siderúrgica a Usina Esperança que continua funcionando até hoje, mas há vinte anos não é mais de nossa família. Meu pai passou a vida trabalhando na parte administrativa da siderúrgica, mas seu hobby era História do Brasil. Seu primeiro livro publicado foi a biografia do Intendente Câmara (1), superintendente das minas de diamante no país, no tempo da colonização. Várias pessoas acharam que a obra seria o passaporte para que entrasse para o Instituto Histórico e Geográfico, mas o então presidente, não permitiu que ele se candidatasse por tê-lo visto uma vez, em um retrato de jornal, sem paletó ((risos)). Mas depois ele entrou para o Instituto e foi responsável pela criação de um centro de pesquisa (2). Estudou o período do Marquês de Pombal e do Lavradio no Brasil (3), seu último livro
foi publicado depois de sua morte, aos 93 anos.

Mais 60: E sua mãe?

Bárbara Heliodora: Minha mãe, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, era poetisa. Publicou seu primeiro livro de poesia aos 14 anos, era apaixonada por antiguidades. Fundou a Casa do Estudante do Brasil, na época em que o governo não fazia nada pelo estudante. A Casa teve o primeiro restaurante - o primeiro bandejão - para estudantes no Largo da Carioca.

Mais 60: E teatro também.

Bárbara Heliodora: Não, o teatro veio anos mais tarde. No início, na Casa do Estudante havia toda uma organização para apoio, inclusive acordos com empresas, para que os universitários pudessem, para se manter, ter empregos com horários condizentes às suas aulas ou que fossem liberados para as provas, tudo negociado. Mais tarde, conseguiram convênios para atendimento médico e odontológico aos estudantes, enfim, uma série de benefícios e lá nasceu o teatro de estudantes, mas isso foi depois.

Mais 60: As ações de sua mãe foram pioneiras.

Barbara Heliodora: Certamente, a Casa do Estudante foi fundada em 1929. É muito engraçado, havia uma coisa puramente fútil, de sociedade, que era a eleição da rainha dos estudantes e ela foi eleita. Bem, ela achou que ser rainha dos estudantes sem fazer nada era uma bobagem, então se interessou pela criação da Casa do Estudante do Brasil, que recebia estudantes de todo o país, principalmente do nordeste. Aqui no Rio de Janeiro estava a universidade, assim, a Casa ajudava, orientava, amparava o estudante desde início.

Mais 60: Dentro da sua família havia um forte apelo à intelectualidade.

Bárbara Heliodora: Claro, meus pais liam muito, discutiam muito, a conversa era gostosa. Conheci pessoas muito interessantes desde a infância. Meus pais, quando se casaram, moraram com minha avó. Ela era a matriarca, de maneira que morava a família toda junta, tanto que a minha lembrança era da mesa grande, a casa sempre cheia de gente.

Mais 60: Deixe-me aproveitar essa menção familiar. Patrícia, sua filha, fez um site para falar de sua trajetória profissional.

Bárbara Heliodora: Eu nunca olhei. ((risos))

Mais 60: Nunca? Então devia. Há uma bela apresentação sobre como o site foi criado para homenageá-la e, também, como uma forma de educar para o teatro. Isso é interessante, uma vez que em várias entrevistas você fala sobre a importância de educar para o teatro.

Bárbara Heliodora: Eu sempre gostei de teatro. Interessa-me o processo do teatro, da sua comunicação com a sociedade. Publiquei há dois anos Caminhos do teatro ocidental (4), ali faço uma história do teatro. Para mim, o teatro é o melhor documentário do ocidente, reflete sua época. O teatro só tem um veículo: o ser humano. Se a Maria Clara escreve que as árvores, no Chapeuzinho Vermelho, conversam, essas árvores estão se comportando como ser humano então, cuidado! Teatro não tem natureza morta, teatro não tem panorama, não! Teatro tem gente! E fala de gente. Isso me fascina! O teatro, quando é bom, esclarece os comportamentos humanos. Vamos ao teatro e aprendemos mais sobre o processo humano.

Mais 60: Fazer teatro, você considera que essa vivência permite o olhar para si?

Bárbara Heliodora: Cada espécie de teatro tem características próprias. Penso que o ator tem a chance fantástica de viver várias realidades, nos vários personagens. Porém, o diretor é responsável pelo milagre maior, que é transformar uma folha impressa num espetáculo vivo. Isso é fantástico! Claro que o ator participa disso intensamente - se não fosse o ator isso não seria possível - mas acho que essa ideia de pegar algo escrito e fazê-lo viver, é maravilhoso!

Mais 60: Você já disse que se não fosse crítica, gostaria de fazer direção. O que você acha que essas funções têm em comum?

Bárbara Heliodora: A crítica vai até certo ponto. A análise do texto, o diretor também tem que fazer e, depois, a partir disso, criar. Acho que, essencialmente, o diretor é um comunicador, tem que provocar o ator a compreender o que precisa ser feito, tem que fazê-lo entender a funcionalidade do seu personagem e estimulá-lo a criar a imagem certa para aquele personagem.

Mais 60: O ator deve ser apropriar do texto.

Bárbara Heliodora: Exato! Deve saber exatamente qual é sua parcela. Cada um tem que saber exatamente qual é a sua contribuição, como se integra no todo. Eu sempre digo “_Cuidado!” Hoje em dia no palco já está o cenário, não tem cortina, mas até o cortineiro se atuar errado atrapalha o texto. Entendo o teatro como uma grande escola de democracia, todo mundo é importante. Tudo é importante. Cada um tem sua contribuição e deve ser respeitado por ela. O ator principal não é menos obrigado a considerar os outros, do que qualquer personagem. Tudo no espetáculo exige colaboração de todos. Por isso, entendo que é democrático.

Mais 60: A vivência teatral é muito utilizada pelo Sesc nas ações voltadas aos cidadãos idosos. A forma como alguém se apropria de um papel, pode estimular sua autoestima. Ao viver uma personagem, tem a oportunidade de olhar para si, também.

Bárbara Heliodora: Pois é, tem que saber como faz. 

Mais 60:  O teatro é uma referência importante nessas ações e temos exemplos magníficos de idosos que se encontraram por meio do exercício teatral.

Bárbara Heliodora: De dramatizações. Veja, duas funções diferentes: a dramatização é um instrumento precioso para isso que você menciona, mas o teatro como arte, traz uma parcela de imaginação, para fora de si, que é diferente da simples dramatização. A dramatização pode ser usada para tudo, funciona muito bem. Como arte é preciso saber que deve ter o imponderável da imaginação, que é diferente da realidade.

Mais 60:  Você dizia sobre o ator perceber seu papel. Na contemporaneidade vivemos um tempo de celebridades. Muitas vezes, quando alguém diz que quer ser ator quer dizer, na verdade que quer participar da novela das oito.

Bárbara Heliodora: Isso reflete uma confusão que vivemos. O que se ensina hoje em dia nas escolas? Eu fico horrorizada vendo meus netos, o que eles aprendem de História? Nada. Português? Não aprendem. Sim, comunicação é importante, mas falar português certo, também! Eu tenho uma história que não é de agora, faz uns trinta anos. Uma amiga minha, mudou para São Paulo. Mãe dedicadíssima, preocupada com a educação dos filhos, escolheu o melhor colégio que encontrou. Um dia, os meninos chegam em casa com uma redação. Minha amiga, ao ler, percebeu dois, três erros de português por linha. Foi ao colégio e mostrou ao professor. Deram a seguinte explicação: “_ Ah, mas isso nós não corrigimos, porque é castrador”. Ora! Claro que a professora não quer ter esse trabalho, compreende? Castrador por quê? Bendita castração que deu um Machado de Assis. Ou um Suassuna. O professor não corrigiu porque não sabe, ou porque não quis ter trabalho de corrigir, mas inventar que corrigir é castrador? É realmente revoltante. E acho que a baderna, a falta de qualidade nas peças que aparecem, é porque estão refletindo o Brasil em que estamos vivendo.

Mais 60: Você acha que há uma crise de valores?

Bárbara Heliodora: Claro! Mas quando a gente diz isso, chamam você de conservadora, você é retrógada, você é reacionária, mas eu não vejo as pessoas mais felizes. Eu não vejo que tenhamos realmente mais liberdade. As pessoas se esquecem que, desde a Grécia, a sua liberdade acaba quando começa a do outro e isso está sendo esquecido.

Mais 60: Você acha que a convivência está mais difícil?

Bárbara Heliodora: Uma coisa muito engraçada, quando as pessoas dizem assim “_Ah, eu tenho 2500 amigos na net”. Será que sabem o que significa a palavra, amigo?

Mais 60: Mas, as referências são outras.

Bárbara Heliodora: Não! Amigo é outra coisa. Você sabe o nome de alguém que ligou uma vez. Ter um amigo é uma coisa completamente diferente.

Mais 60: Na verdade, as relações nas redes sociais exigem uma ressignificação de alguns termos.

Bárbara Heliodora: Não, é um consolo para a solidão e não acho que seja uma coisa maravilhosa. Há tal desagregação, cada um está tão angustiado por estar sozinho, que quer ter mil e quinhentos amigos. Acho que falta diálogo.

Mais 60: Você, durante muitos anos, foi professora. Lidou com jovens e também, até hoje, participa e recebe em sua casa, um grupo que estuda Shakespeare.

Bárbara Heliodora: Sim, nos reunimos uma vez por semana. Eles vêm aqui.

Mais 60: São pessoas mais jovens do que você?

Bárbara Heliodora: Sim, jovens atores, psicanalistas, engenheiros.

Mais 60: Então, é um grupo multidisciplinar e intergeracional, também. Como você percebe a relação entre as gerações? Muito se fala do velho ensinar aos jovens e dos jovens também ensinar aos velhos.

Bárbara Heliodora: Bem, eu não penso em termos de ensino, eu penso em termos de diálogo. Penso que cada um deve descobrir o outro. É claro, se um grupo muito jovem for fazer um passeio, não vão me convidar. Porque não tenho mais desempenho físico, não é só desempenho intelectual. Não vou passear com eles porque é bobagem. Agora, nada impede que quando nos encontramos conversemos e muito bem. Também, é claro que há jovens interessados em conversar e outros que não estão. As pessoas são muito variadas.

Mais 60: Depende não de geração mas de interesses?

Bárbara Heliodora: Isso mesmo, por exemplo, ao longo da minha vida profissional, sempre tive relações com antigas colegas de colégio. A maior parte casou, foi ter filhos e não fez mais nada, ficou em casa. Eu fiquei trabalhando o tempo todo. Difícil você ter diálogo com interesses completamente diferentes, tenho mais diálogo com uma pessoa de outra geração, que faz a mesma coisa que eu, ou, pelo menos, seja da mesma área. Com outra sobre o que vou conversar? Os interesses são outros. 

Mais 60: Em 1975, você defendeu sua tese de Doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e o título era Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare. O que você acha que o homem político de Shakespeare diria sobre o Brasil de hoje?

Bárbara Heliodora: Shakespeare não era partidário. Ele era a favor de uma grande responsabilidade, que, aliás, eu acho que era a visão da dinastia Tudor. Segundo essa visão, você poderia ter grandes privilégios, mas pagaria com grandes deveres. Quer privilégios? Tudo bem, mas você tem essas e essas responsabilidades. O grande interesse político de Shakespeare em toda sua obra é o bom governo em termos de responsabilidade, do governante pelo governado. Isso aparece em todas as peças. Se não há um bom governo não pode haver um final feliz. Nas peças as pessoas nunca estão boiando no nada, existem dentro de um sistema sociopolítico e veja, nas comédias, vivem em um lugar de governo primitivo. Agora, tome Romeu e Julieta, ao estudá-la digo sempre “_Cuidado, não é uma história de amor, é um sermão contra a guerra civil”. O soneto inicial começa assim: “Duas casas, iguais em seu valor, em Verona, que a nossa cena ostenta, brigam de novo, com velho rancor, pondo guerra civil em mão sangrenta”. Romeu e Julieta morreram por causa dessa guerra. Ou seja, a paz da cidade foi comprada ao preço da vida dos jovens. Os únicos a favor do amor - os dois e Mercúcio morrem, são sacrificados pelo mal. No fim, quando eles morrem e finalmente vem a paz, o príncipe diz uma coisa tão bonita: “Uma paz triste esta manhã traz consigo; o sol, de luto, nem quer levantar.” Aquele panorama terrível. O que Shakespeare quer dizer é que o governante deve ser responsável lutar por seu governado, ele existe para servir e não para ser servido Inclusive, isso é mostrado, principalmente, na segunda tetralogia: Carlos II, Henrique IV e Henrique V. A primeira: Henrique VI e o Ricardo III é a luta pelo poder, a segunda não! é a responsabilidade do governante pelo governado.

Mais 60: O que você chama de preparar a plateia para o teatro?

Bárbara Heliodora: A plateia precisa ter uma mínima ideia que é difícil fazer teatro.

Mas você mencionou, também, que é preciso informar, conhecer a história. Que tipo de projetos, e para quem você sugeriria que fosse implantado, para preparar a educação e formação de público de teatro. Se você tivesse a possibilidade de ter suas propostas concretizadas?

Bárbara Heliodora: Eu não acho que seria só o teatro, mas uma educação como todo. O teatro tem que estar dentro dessa educação. O que é preciso é educação como um todo. Como entender teatro sem saber português, sem saber geografia, sem saber ler um texto? Minha mãe tinha uma frase muito engraçada, ela dizia que o Brasil era um país de muito verbo e pouca verba. ((risos)). Mas como o Brasil está em 152º lugar em leitura, não precisa nem verba, bastaria que as professoras mandassem os alunos lerem alto. Porque quem lê baixo, pode fingir que está entendendo mas, se você lê alto, tem que ler certo. Ler alto, faz com que se leia com mais atenção.

Mais 60: Como você percebe a cultura do virtual, da internet, do texto fragmentado, como uma ampliação de possibilidades ou como um complicador?

Bárbara Heliodora: Para ampliar as possibilidades é preciso alguém que ajude a provocar o interesse. Eu, por exemplo, sou fascinada pelos documentários na televisão, os documentários da BBC. Estão na televisão aberta, sou fascinada pelos documentários sobre a terra, sobre os animais, sobre a história. Há tanta coisa que realmente podemos aprender utilizando os recursos tecnológicos, mas precisa empurrar um pouquinho para ver se provoca o interesse.

Mais 60: Você acha que é necessário um plano para isso?

Bárbara Heliodora: Sim. Há muitos e muitos anos, estava em Londres, e, de repente, vi uma professora com uma turma em um museu. Ela não dizia “_Agora, olhem aquele quadro”. Não, cada aluno tinha um bloquinho onde anotavam alguns detalhes das obras, que havia sido solicitado. Eles tinham que observar o quadro. Eram sempre perguntas que levavam a prestar atenção e descobrir algo. Tem uma história de um conhecido do Conselho Britânico que ficou espantado quando, em Londres, sua filha no primário passou a ter aula de raciocínio. Todo mundo diz que a matemática ensina o raciocínio, mas eles tinham outras propostas. Por exemplo, eles fizeram a seguinte questão para a turma: seria melhor, que os ônibus não tivessem assentos, para caber mais gente? E o que aconteceria com as mulheres grávidas, os idosos? Veja bem, era um exercício para a criança pensar e encontrar uma solução para um problema. Isso eu acho maravilhoso.

Mais 60: Educação para reflexão.

Bárbara Heliodora: Claro, tem que aprender a pensar, tem que aprender a raciocinar, isso é importante. Eu me lembro que estudei aqui até o segundo ano da faculdade de filosofia e foi uma vida toda de decoreba. Acabei o ginásio em 1935. Quando cheguei aos Estados Unidos, quase morri. O que tinha que ler para dar conta daquilo tudo, era um processo completamente diferente. Em compensação, para cada disciplina que eu ia frequentar, no momento da matrícula já marcava uma entrevista com o professor, que era um tutor. Uma das coisas mais divertidas de que me lembro, aconteceu na aula de Shakespeare. Estudei um ano Shakespeare. Estávamos estudando Júlio Cesar, então, a professora perguntou para a classe “_Qual a diferença entre o discurso do Brutus e do Marco Antônio, no enterro do Cesar?” Com 17 anos, todo mundo é intelectual ((risos)). Muitos conceitos políticos “_Brutus fez isso, por que o Marco Antônio fez aquilo” e ela nos diz “_ Não,eu quero saber qual a diferença básica entre os dois discursos? Depois de horas, todo mundo esgotado, a professora diz “_A diferença básica é que o discurso de Brutus é em prosa e do Marco Antônio é em verso”. ((risos)) Cada um tem um objetivo, mas um é em prosa e o outro em verso. Há uma razão para ser assim, mas a diferença básica é essa.

Mais 60: Foi nesse ano que se apaixonou por Shakespeare?

Bárbara Heliodora: Não, eu já gostava de Shakespeare. A meu pedido minha mãe traduziu Shakespeare, quando eu já era professora. Eu sentia falta de uma boa tradução, para mostrar para os garotos de teatro. Pedi e minha mãe traduziu para mim duas peças, Hamlet e o Ricardo III. São as duas que eu não traduzi.

Mais 60: Por quê?

Bárbara Heliodora: Porque já foram feitas e são traduções maravilhosas, para que vou me meter? Mas eu acho que aprendi a analisar por isso. Temos que prestar atenção a tudo. Por que ele fez assim? Porque fez assado? Isso serve para qualquer espetáculo.

Mais 60: É necessário um mergulho no texto. Mas você dizia que se apaixonou por Shakespeare antes da universidade.

Bárbara Heliodora: Sempre gostei de teatro. Ganhei meu primeiro livro de Shakespeare com doze anos, minha mãe me deu o que era dela. O meu inglês não era maravilhoso, mas eu tinha estudado desde o jardim de infância e já sabia alguma coisa e lia os pedacinhos. Quando fui para os Estados Unidos, fiz um ano de Shakespeare, que maravilha! Fiz teatro medieval, teatro europeu moderno, teatro moderno americano.

Mais 60: Li uma entrevista em que você fala sobre suas aposentadorias.

Bárbara Heliodora: Eu me aposentei em 85, antes da hora. Quando, agora, saí do (Jornal) O Globo tinha 28 anos de trabalho.

Mais 60: Foi no início deste ano, não é mesmo? Como você percebe esse tempo de aposentadoria: pode ser um tempo de liberdade, livre de obrigações ou um tempo vazio. Um momento que pode ser de criatividade. O que você acha?

Bárbara Heliodora: Eu me aposentei em 1985 da universidade. Tinha 63 anos. Logo que eu me aposentei, recebi um convite para fazer crítica na (Revista) Visão. Fiz cinco anos de crítica. Saí da Visão porque fui chamada pelo Globo, lá trabalhei 23 anos como crítica de teatro. Agora chegou a um ponto que estava ficando cansada demais para ir ao teatro, como estou um pouco surda ((risos)), às vezes, tinha certa dificuldade para entender o que estava em cena, mas, principalmente, porque fazia um esforço muito grande fisicamente, para ver 90% das vezes, uma porcaria. Então, foi me dando uma preguiça de continuar, eu disse “_Vou parar!” Parei. Participo desse grupo que estuda Shakespeare mas, desde então tenho feito traduções em quantidade, principalmente de elisabetanos. Vou começar outra agora, mas o texto que eu tenho é de grafia antiga, sem comentários, mandei vir da Inglaterra. Eu gosto muito de fazer tradução, em verso decassílabo, direitinho.

Mais 60: Então, essa sua aposentadoria é uma aposentadoria, digamos assim, ainda de trabalho, de prazer, de criação.

Bárbara Heliodora: De criação, mas eu acho que nunca tive um talento de criação muito grande.

Mais 60: Mas quem traduz também cria!

Bárbara Heliodora: Eu faço tradução, mas tradução é em cima de um texto. Crítica é em cima do texto. Eu trabalho em cima de um texto.

Mais 60: Você não acha que o tradutor tem um trabalho de criação?

Bárbara Heliodora: Não, eu não acho. Eu faço o mais fiel possível. Eu não quero que me vejam, eu quero que vejam Shakespeare, então, eu tento ficar o mais próximo dele. Eu respeito a forma, rima, onde não tem rima, não coloco rima, o mesmo número de sílabas, o mesmo número de versos. Mas isso exige um trabalho incrível, você vai buscar rimas em português de algo que Shakespeare, lá em mil quinhentos e tanto rimou em inglês. Isso é criação! Mas é um trabalho em cima de alguma coisa. As pessoas perguntam “_Por que você nunca escreveu uma peça?” Porque eu nunca tive vontade. Se eu não tive talento para isso, porque eu vou encher o teatro brasileiro de mais um texto horrível? Não tenho nenhum talento para isso, nunca tive vontade de escrever uma peça. Por quê? Só para dizer que escrevi? Eu nem sei imaginar sobre o quê. De maneira que eu faço tradução, porque gosto muito e já fiz toda espécie, inclusive de Agatha Christie. 

Mais 60: Então, sua aposentadoria é tempo para isso?

Bárbara Heliodora: Sim e para leituras. Leio muito livro policial e releio. Eu não leio, eu engulo. Dez anos depois eu torno a ler e digo “_Meu Deus, eu não sei de nada” ((risos)). Gosto de romances policiais, acho ótimo para me distrair. Gosto dos clássicos, Agatha Christie, Ellis Peters, mulheres maravilhosas! Ellis Peters foi uma descoberta tardia, mas é ótima. O detetive dela é um irmão beneditino, tudo se passa no século XII, uma delicia. Os livros são deliciosos. São muito bem feitos, porque ela entende muito de história. O enredo se passa em uma época que houve um monte de lutas pela coroa inglesa.

Mais 60: Quem sabe você não decide escrever um romance policial?

Bárbara Heliodora: Não, não tenho a menor vontade. Aliás, nos últimos dois meses, tenho lido, em pedaços, Machado de Assis, que não lia há muito tempo. Estou me divertindo. De repente, estou sentada, ali tem um livro, eu leio um pouco, pego um, pego outro.

Mais 60: Alguns projetos editorias pretendem recontar os clássicos, de forma a proporcionar uma leitura mais fácil. O que você acha disso?

Bárbara Heliodora: Acho muito importante. Existe isso com Shakespeare, publicações que contam as histórias. Fiz resumos, com citações de textos das minhas traduções. Isso é o que estou fazendo, mas eu acho que muita gente até hoje pensa que Romeu e Julieta se casaram e foram felizes. ((risos)), não conhecem nada, só ouviram falar.

Mais 60: Bárbara, para encerrar nossa conversa. Você completa 91 anos no próximo dia 29 de agosto, quais potencialidades e quais fragilidades você percebe em si?

Bárbara Heliodora: Bem, eu tenho enfisema e para andar fico sem fôlego, essa é minha limitação. Sentada, eu acho que posso tudo. Leio, escrevo, uso computador. Adoro as reuniões das terças-feiras com o grupo de Shakespeare. Algumas vezes escolho “_Isso eu quero ver” e vou ao teatro com amigos e, nessas raras ocasiões, mais raro ainda, jantamos depois. Não faço planos. Minha grande tristeza é não viajar mais, sinto pena. Gostaria de continuar a descobrir as coisas que já conheço e descobrir as coisas novas. Queria poder voltar a Londres. Eu adoro Londres.

Mais 60: Seu desejo é continuar organizando suas reuniões sobre Shakespeare.

Bárbara Heliodora: Isso eu acho ótimo. O grupo se reúne uma vez por semana, há muito tempo. Uns saem outros entram. Alguns ficam anos. É bom porque é sempre diferente, são pessoas diferentes. Comentam sobre as peças e, para mim, é uma ótima desculpa para ficar relendo Shakespeare. 

Mais 60: E dialogar.

Bárbara Heliodora: Pois é. São reuniões muito gostosas. 

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(1) O Intendente Câmara. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. 1933.
(2) Marcos Carneiro Mendonça foi fundador da CEPHAS - Comissão de Estudos e Pesquisas Históricas e também presidente da Sociedade Capistrano de Abreu e membro, dentre outros, do Conimbricensis Instituti, de Portugal, da Academia Portuguesa da História e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.
(3) A Amazônia na era pombalina (1962, 3 v.) e Raízes da formação administrativa do Brasil: séculos XVI - XVIII (1972, 2 v.).
(4) Caminhos do teatro ocidental. Editora Perspectiva, 2013