Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Fé que move montanhas

Produtos sacros e lembranças: o comércio de rua no caminho dos visitantes / Foto: José Paulo Borges
Produtos sacros e lembranças: o comércio de rua no caminho dos visitantes / Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

Na extensa planície do sertão baiano coberta pela vegetação rasteira e seca da caatinga, à margem direita do Rio São Francisco e a 800 quilômetros a oeste de Salvador, desponta o Morro da Lapa, um bloco maciço, quase negro, de granito e calcário apinhado de grutas profundas e fendas estreitas, com 90 metros de altura, 400 metros de largura e 1.800 metros de uma ponta à outra, aproximadamente. Segundo indicam pesquisas feitas por paleontologistas, há centenas de milhares de anos havia ali um mar interior cujas ondas, ao arrebentarem contra o morro, esculpiram as torres pontiagudas que pontificam no lugar. Fotos tiradas do alto, por satélite, mostram o morro feito à imagem e semelhança de um pé gigantesco. “É a pegada deixada por Deus em sua passagem pela Terra”, reza a crença popular em Bom Jesus da Lapa, cidade com população estimada em 68 mil habitantes, que se distribui ao redor do morro.

Rastro divino ou não, o Morro da Lapa abriga em seu interior o santuário natural mais venerado pela religiosidade popular católica brasileira: a gruta de Bom Jesus da Lapa – destino de peregrinos e romeiros, principalmente sertanejos, há mais de 300 anos. Atualmente, pelo menos 2 milhões de fiéis vão em romaria todos os anos ao santuário “de pedra e luz”, como dizem os mais devotos, para pagar promessas, fazer pedidos, agradecer pelas graças recebidas ou simplesmente orar aos pés de uma pequena imagem de Bom Jesus crucificado, exposta no altar-mor existente no fundo da gruta, ampla e iluminada, com cerca de 50 metros de comprimento, 11 de largura e 7 de altura.

“Os peregrinos de Bom Jesus da Lapa, em sua maioria, são pequenos lavradores, enfim gente da roça. Outros trabalham como empregados rurais. Há muitos pequenos comerciantes, donas de casa, caminhoneiros e aposentados, mas há também pessoas em melhor condição financeira”, relata o padre Roque Silva Alves, da ordem dos redentoristas, reitor do santuário. “A maior parte vem do estado da Bahia, e muitos outros são capixabas, goianos, mineiros e paulistas”, ele completa. São pessoas como o agricultor Valdemar Pereira da Silva, 84 anos, sua mulher Domingas, 74, a filha Izanir, 38, e o neto Lucas, de apenas 3 meses. A família veio de Barreiro Preto, uma comunidade rural distante cerca de duas horas, de ônibus.

Por causa da idade, Valdemar precisou ser amparado pela mulher e a filha para subir, com muito cuidado, os três degraus que levam ao altar onde fica a imagem de Bom Jesus. Vieram agradecer ao padroeiro pela recuperação de um acidente vascular cerebral (AVC) sofrido por Valdemar em setembro de 2013. “Eu estava trabalhando na roça, e, de repente, a vista escureceu e caí”, contou o agricultor. “Não foi, assim, de repente. Ele já estava com sintomas há três anos, mas nunca se cuidou”, interveio, Domingas. Bem-humorado, Valdemar retrucou: “É, mas não foi desta vez”.

O movimento em frente ao altar-mor, na gruta de Bom Jesus da Lapa, nunca para. Eram quase 4 horas da tarde, num dia de outubro de 2014, quando a reportagem esteve lá, e logo em seguida seria celebrada mais uma missa, em outra gruta, a de Nossa Senhora da Soledade, que fica ao lado. Um homem, bastante idoso, puxou em voz alta um “Pai Nosso” e, ao lado dele, uma mulher, também de idade avançada, chorou copiosamente com as mãos erguidas na direção da imagem do padroeiro. Uma senhora de meia idade, que havia pouco atravessara a gruta andando ajoelhada, depositou uma nota de R$ 20 num dos vários cofres espalhados no local e se prostrou ao chão.

Quartos separados

Entre os romeiros, naquela tarde, também estava Maria das Graças dos Santos, 60 anos, e os cerca de 40 fiéis que vieram com ela, num ônibus fretado, de Rio Pardo de Minas, cidade mineira distante 480 quilômetros de Bom Jesus da Lapa. Maria das Graças é “chefe de romaria”, a pessoa responsável pela organização de uma peregrinação religiosa em todos os seus detalhes. “Começamos a nos preparar em junho, para dar tempo para o pessoal juntar o dinheiro”, disse ela. A despesa de cada um, segundo Maria, ficou em R$ 85, por um dia inteiro de estadia na cidade. “Saímos de nossa cidade na madrugada de hoje e vamos retornar na madrugada de amanhã”, esclareceu. O básico para a alimentação – café, arroz, carne, feijão – trouxeram no ônibus, e em Bom Jesus ficaram “arranchados” numa casa alugada previamente, com direito a permanecerem no lugar pelo tempo que ficarem em Bom Jesus da Lapa.

Os “ranchos” são um tipo de hospedagem bastante comum utilizada por romeiros. O proprietário da casa oferece beliches, colchões, colchonetes, fogão e geladeira; mas raramente disponibiliza panelas e talheres aos inquilinos. Homens ficam em quartos separados aos ocupados por mulheres e crianças. As tarefas de limpeza e cozinha, claro, ficam por conta das mulheres. “Isso é bom, fortalece a amizade entre a gente”, sugere Maria das Graças.

“A igreja da Lapa é feita de pedra e luz, vamos todos visitar o Senhor Bom Jesus. Quando eu saí da Lapa avistei a Santa Cruz, da Lapa saí chorando com saudade do Bom Jesus”. É assim o tempo todo, o ano inteiro. São benditos, ladainhas, orações e versos, entoados nas romarias e filas de visita à imagem de Cristo Crucificado. A romaria ao Bom Jesus – padroeiro do município – é a maior de todas. No santuário e na cidade, o movimento intensifica-se a partir de 28 de julho, quando se inicia a novena na ampla esplanada, em frente à gruta, culminando no dia 6 de agosto com uma celebração solene. Neste dia, de manhã e à tarde, há procissão pelas principais ruas da cidade, onde se destaca o andor, todo enfeitado, com a imagem considerada milagrosa do Bom Jesus da Lapa. O evento está entre as maiores manifestações religiosas do Brasil, como a do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e das romarias de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida, interior de São Paulo, e do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, no Ceará.

A Polícia Militar calcula que, no dia da principal romaria, a cidade receba em torno de 300 mil pessoas. No meio da multidão, dá para distinguir quem vêm por simples turismo dos verdadeiros romeiros. Estes últimos se destacam pelos chapéus de palha revestidos de branco e enfeitados com uma fita, de preferência verde. São peregrinos do sul da Bahia, verdadeiros campeões na devoção a Bom Jesus. As romarias limitavam-se, antigamente, às festas de Bom Jesus e de Nossa Senhora da Soledade, e eram manifestações praticamente locais. Grandes ou pequenas, hoje em dia acontecem o ano inteiro, e entre elas estão a Romaria da Pastoral da Criança, Romaria dos Legionários, Romaria da Terra e das Águas, e Romaria dos Agentes de Saúde e Endemias. Uma das mais importantes é a Romaria da Terra e das Águas, movimento religioso de cunho social que se originou nos anos 1970, época em que muitas regiões da Bahia, dentre elas a Chapada Diamantina e o Médio São Francisco, viviam um momento conturbado, com ameaças de expulsões e mortes de agricultores por parte de grandes proprietários de terra. Isso porque alguns fazendeiros pretendiam ampliar seus territórios e colocar o gado nas roças dos lavradores. Foi nessa atmosfera de conflitos e problemas por posse de terra que, em 1978, realizou-se a “Missão da Terra”, o embrião da romaria atual.

Cópia da original

A Romaria da Terra e das Águas acontece todos os anos no primeiro final de semana do mês de julho. Participam acampados, agricultores, assentados, lavradores, meeiros, quilombolas, posseiros e religiosos, principalmente do sertão baiano. É uma peregrinação feita de barco, de caminhão “pau-de-arara”, em lombo de cavalo, de ônibus, e, em alguns casos, a pé. Cerca de 6 mil pessoas estiveram na 37ª Romaria da Terra e das Águas realizada em 2014 entre os dias 4 e 6 de julho, evento que teve como tema “Libertar a terra é defender a vida”.

A imagem exposta no altar-mor da gruta de Bom Jesus da Lapa, venerada pelos fiéis, é uma cópia. A original, trazida no final do século 17 por Francisco de Mendonça Mar, fundador do Santuário de Bom Jesus, não existe mais. Ela foi consumida num incêndio na madrugada do dia 2 de maio de 1903, provocado, talvez acidentalmente, por uma vela deixada acesa ao lado do altar-mor. Candelabros de prata, imagens, vasos sagrados, tudo ficou destruído. Até hoje a origem do incêndio é um mistério. Mas a tragédia trouxe benefícios. “O teto, que era baixo, ficou mais alto, e a gruta, que era escura, ficou mais clara, pois com a explosão provocada pelo incêndio abriu-se uma ‘janela’ ao lado do altar que permite a entrada de ar e de luz”, explica padre Roque.

Lâmpadas na tonalidade amarelada espalhadas por todos os lados permitem a visibilidade de detalhes e meandros da gruta. O ar circula graças a uma ampla abertura na pedra, à direita da entrada principal, de onde se avista, sob uma ponte de concreto, o rio São Francisco, conhecido por aqui como o “Velho Chico”, no seu embate com a seca. À esquerda, perto do altar-mor, um túnel estreito e baixo aberto à dinamite, conduz a outro local sagrado para os romeiros: a gruta de Nossa Senhora da Soledade. Ali não há aberturas para o mundo exterior e o ar tem de ser renovado constantemente. Esta área é bem mais ampla, tem aproximadamente 46 metros de comprimento por 30 de largura e pode receber até 3 mil fiéis durante as celebrações religiosas. Dezenas de estalactites (estruturas rochosas resultantes do gotejamento de água) brotam do teto em direção ao chão. Algumas delas não surgiram naturalmente: foram feitas artificialmente e servem para “enfeitar” a gruta. A maioria, porém, é natural, como a que existe em frente ao altar e se acha em contínuo crescimento.

Por diversos pontos e fendas existentes nas grutas, filetes de água vertem constantemente. “Essa água não possui qualidades milagrosas. É água de chuvas, depositada e canalizada em reservatórios naturais, que escoa mesmo nos meses de estiagem”, observa padre Roque. Aos fiéis que vão ao santuário essa explicação pouca importa. Para os romeiros a água que brota aqui e ali, como no corredor entre as grutas de Bom Jesus e de Soledade, é milagrosa. Nesses locais há sempre grupos de pessoas, contritas e silenciosas, passando água nos braços e no rosto, e molhando a cabeça dos filhos.

O local onde o romeiro demonstra toda sua devoção é a Sala dos Milagres, na gruta de Nossa Senhora da Soledade. Retratos, cartas e ex-votos (abreviação da expressão latina “voto realizado” – termo designando pinturas, estatuetas e outros objetos simbólicos oferecidos como forma de agradecimento por pedidos atendidos) estão expostos por toda a sala. Nas cartas os fiéis dirigem-se diretamente ao santo: “Peço ao Divino Espírito Santo, ao Divino Pai eterno, ao Senhor Bom Jesus da Lapa e a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que ‘mim’ ajude e abençoe que tudo dê certo sobre a plantação de capim e milho que plantei. Agradeço a Deus por tudo que o senhor tem feito por mim.” (Carta de um romeiro do município baiano de Santo Estêvão). A cada dia, a cada hora, chegam novos pedidos e novos testemunhos de “promessas” realizadas. Retratos e cartas vão para o lixo ou são queimados, e cadeiras de rodas e muletas são doadas a instituições de caridade.

Na Sala dos Milagres dois exemplos de graças recebidas chamam a atenção. O primeiro são os caixões funerários: decorados artesanalmente, com bilhetes e cartas, eles transmitem ao padroeiro o agradecimento de alguém que esteve à beira da morte e se salvou. Outro, de ex-votos são as maquetes representando casas, fazendas, ranchos e roças: produzidas em madeira, pintadas ou envernizadas, incluem detalhes como a cerca, o gado e o mato. Geralmente trazem bilhetes agradecendo pela conquista da casa ou do “pedaço de terra”.

“Gruta do Calvário”

Algum tempo atrás, acreditava-se que a gruta havia sido descoberta por acaso, por um vaqueiro ao perseguir um boi desgarrado. A versão aceita como verdadeira, porém, relata a saga do português Francisco de Mendonça Mar. Nascido em Lisboa em 1657, Mar aprendeu com o pai o ofício de ourives e lapidador de pedras preciosas; descobriu, também, a habilidade artística de pintor. Atraído pelas oportunidades que a colônia portuguesa oferecia, veio para o Brasil e, em 1679, instalou-se na Bahia, onde montou uma oficina de ourivesaria e pintura. Em 1688, com 31 anos de idade, foi contratado pelo governador-geral do Brasil, capitão-general Matias da Cunha, para pintar e fazer acabamentos artísticos no palácio, em Salvador. Com a ajuda de seus escravos, Mar se esmerou e trabalhou duro, investindo seu próprio dinheiro na obra. Mas, em vez de receber pelo trabalho realizado, foi levado à cadeia com seus escravos onde foram cruelmente espancados.

Mar chegou a escrever uma carta ao rei de Portugal queixando-se da injustiça. Mesmo tendo seus direitos reconhecidos pela coroa, decidiu-se por outros caminhos. Distribuiu seus bens, concedeu alforria aos escravos, vestiu uma roupa simples de peregrino e, com as imagens de Bom Jesus e de Mãe das Dores nas mãos, enveredou sertão adentro em busca da “Gruta do Calvário” – uma premonição que ele teve em sonho. Em 1691, depois de caminhar por 1.200 quilômetros, avistou um morro à beira de um grande rio e onde havia, meio escondida, uma gruta chamada pelos índios Tapuias de “Itaberaba”, que significa “pedra resplandecente”. Mar, então, decidiu encerrar sua peregrinação: colocou a imagem de Bom Jesus num nicho natural da gruta e passou a viver no local como eremita. Em 1702, foi chamado a Salvador, pelo arcebispo da Bahia, Dom Sebastião, e, em 1705, foi ordenado padre e enviado de volta a Lapa do Bom Jesus, onde continuou exercendo seu apostolado. Mar adotou o nome de padre Francisco da Soledade e fundou um hospital e um asilo ao lado do morro, onde acolhia a todos, mas era procurado principalmente pelos mais humildes.

Nesse período, ocorreram as descobertas das primeiras minas de ouro no território que se chamaria, mais tarde, Minas Gerais. Havia grande movimentação de homens livres, fugitivos da justiça e escravos na região, subindo o Rio São Francisco em busca das riquezas das minas de ouro recém-descobertas. A vida solitária e abnegada de padre Soledade, que ficou conhecido por “Monge da Gruta”, logo chamou a atenção desses aventureiros, e muitos passaram a peregrinar até o local. No início, caçadores de ouro, jagunços, cangaceiros, vaqueiros e pescadores eram os fiéis mais frequentes. Alguns foram ficando e um aglomerado urbano foi se formando, o povoado de Bom Jesus da Lapa. “Mar morreu aos 65 anos e, até hoje, não se sabe direito onde estão guardados seus restos mortais, mas a tradição aponta a Cova do Monge, à direita do altar-mor”, fala padre Roque.

“Imagine o que representa acolher 2 milhões de pessoas por ano” questiona padre Roque, preocupado com o futuro do evento. Segundo ele, “a romaria ou o turismo religioso também são objetos de compra e venda, envolvendo sentimentos e emoções que marcam a vida toda. Por isso, o serviço oferecido na cidade deve ser de qualidade, sem a má inclinação para o lucro fácil e a exploração dos visitantes”. O sacerdote entende que Bom Jesus precisa estar preparada para receber os visitantes, e que esse acolhimento está diretamente relacionado a questões como a coleta de lixo, a comodidade dos turistas, a desocupação dos espaços públicos, a segurança e a sinalização das vias públicas e das estradas. “Considerando a romaria secular de Bom Jesus da Lapa e o incremento do turismo religioso, esses são alguns dos desafios pertinentes ao presente e ao futuro da cidade”, destaca. “Tudo deve ser pensado a partir do olhar de quem nos visita”. Um olhar de encantamento, sem dúvida, como daquele romeiro que exclamou: “Olha, quem morre sem conhecer o Bom Jesus da Lapa, morre sem conhecer nada na vida. O Senhor Bom Jesus é tudo para mim, e não tem nada neste mundo que vá me impedir de visitar o Senhor Bom Jesus!”