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Arquitetura ou revolução?

Segunda casa de Vilanova Artigas em São Paulo (1949) / Foto: Reprodução
Segunda casa de Vilanova Artigas em São Paulo (1949) / Foto: Reprodução

Por: LUIS DOLHNIKOFF

João Batista Vilanova Artigas – Elementos para a Compreensão de um Caminho da Arquitetura Brasileira, 1938-1967, de Miguel Antonio Buzzar, recém-lançado pelas editoras Senac e Unesp (São Paulo, 2014, com 455 páginas), é um livro que surpreende, pois entrega mais do que promete. Na verdade, muito mais. A “promessa” é, obviamente, a do título, sugerindo tratar-se de um livro sobre a obra de Artigas (1915-1985). Mas ele vai muito além, tanto que metade dele versa sobre a história da arte e da arquitetura modernas, não brasileiras, mas mundiais. E não em uma abordagem técnico-estética, mas técnica, estética, política e ideológica: a análise da trajetória da obra de Artigas começa em Moscou, em outubro de 1917. O que torna o livro duplamente surpreendente para o leitor contemporâneo não especializado, desacostumado às discussões políticas sobre os significados ideológicos de tudo ou quase tudo: cinema, literatura, história, arquitetura.

O livro nos leva para outro tempo, não tanto por se tratar do recente século 20, mas porque esse foi um século profundamente ideologizado, cujo início, para citar o historiador Eric Hobsbawm, foi a Primeira Guerra Mundial (de onde emergiu a Revolução Russa) e cujo fim se deu com a queda do muro de Berlim e do projeto socialista, em 1989.

O livro resulta num tour de force que, de forma “clara e consistente”, como era um dos objetivos do autor, resolve importantes lacunas nas referências historiográficas à obra de Artigas (seu objetivo principal). E como “efeito colateral”, além de apresentar um painel da história da arte do século 20, traça sua história político-ideológica para, na segunda metade, ao abordar mais diretamente a obra e as ideias de Artigas, também traçar a história política do Brasil na segunda metade do século 20. Mas como não se trata de um livro de história ou de análise política, ele também comparece numa densa trama com a história da arte brasileira. Sem isso, seria impossível abordar de forma consistente a obra do arquiteto.

Vilanova Artigas foi um arquiteto modernista (apesar de suas relações problemáticas com as correntes dominantes do modernismo) e um militante do Partido Comunista Brasileiro. Portanto, para ele, a verdadeira solução de todas as questões colocadas para a arquitetura moderna brasileira no século 20 não eram arquitetônicas, estéticas ou técnicas, mas políticas. A revolução socialista criaria uma nova sociedade e, no bojo dela, emergiria a nova arquitetura, ao mesmo tempo adequada e necessária a ela. Mas enquanto a Revolução não vinha, era preciso tentar adequar a arquitetura moderna, ou modernista, ao atraso brasileiro.

Autonomia da arte

O modernismo, lato sensu, pode ser entendido como o processo geral de autonomização da arte. Segundo o próprio nome, uma arte autônoma (“com lei própria”, em grego), é uma arte que não está a serviço de nada além de seus próprios elementos constituintes (algo assim como a geometria: quadrados são o resultado necessário da articulação de seus elementos, linhas e ângulos retos). Desde Aristóteles que, na Poética, afirmava ser a função fundamental da poesia imitar a realidade (idealmente na poesia dramática, ou seja, no teatro), até o academismo do século 19, a arte esteve a serviço de representar algo, alguém (como nos retratos da nobreza e da alta burguesia) ou uma ideia (teológica, sociológica etc.). Foi somente no início do século 20 que o conceito de autonomia da arte ganhou expressão e forma, primeiramente no cubismo, ao implodir as leis da perspectiva renascentista, e depois no abstracionismo (com suas variações, como o suprematismo [ou “absolutismo”] de Maliévitch). A arte moderna, a arte de vanguarda, a arte “autônoma”, surgiu como resposta à modernidade técnica resultante da Revolução Industrial e do desenvolvimento da ciência. Havia agora meios mecânicos de “imitar a realidade”, como a fotografia. Isso não cabia mais, portanto, à arte. Além disso, o mundo da cidade industrial era um mundo novo, de aglomeração, ruído, velocidade e destruição criativa, e uma nova arte deveria, não mais “representá-lo” (para usar os termos de Buzzar), mas ajudar a “moldá-lo”.

O problema, para a discussão das questões enfrentadas por Artigas e tratadas no livro de maneira extensiva e detalhada, é que a arte moderna surgiu antes da Revolução Russa de 1917 (Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, obra fundadora do cubismo, é de 1907). Ela era, portanto, necessariamente “burguesa”, criada para adequar a produção artística aos novos estágios da produção e do consumo capitalistas. Mas se ela não era, então, adequada ao “país do socialismo” que se tornara a Rússia (isto é, a União Soviética), e se ainda não havia uma “arte proletária” ou “socialista”, qual deveria ou poderia ser a arte da “pátria do socialismo” (e, no caso de Artigas, seu equivalente no Brasil “pré-revolucionário”)? Conhecemos a resposta soviética: o “realismo socialista”, estética neoclassicista, antimodernista e contra a autonomia da arte, pois ela deveria, ao contrário, poder “representar” de modo “realista” o novo mundo proletário. Na própria União Soviética, isso resultou, naturalmente, no fim abrupto de suas robustas vanguardas, como o futurismo e o construtivismo, nos anos 1930 (de que o suicídio de Maiakovski é o símbolo mais dramático). Fora dela, isso acarretaria um debate internacional contrapondo os defensores da arte modernista e a grande influência que os comunistas tinham nos meios artístico e intelectual, incluindo o Brasil. No caso particular de Artigas, determinaria sua perene tentativa de “resolver uma dualidade”, ainda que “em favor da modernização”, como se verá adiante.

Revolução por etapas

A absorção da arquitetura modernista da vanguarda europeia, centrada na teoria e na obra de Le Corbusier, colocava ao ambiente brasileiro, no pós-Segunda Guerra Mundial, um problema particular, no contexto da Guerra Fria e da dicotomia entre “imperialismo” e “socialismo”, em que, para as correntes de esquerda dominantes no mundo artístico e intelectual, a “questão nacional” tomava o lugar da questão revolucionária.

A Revolução era a única solução real e geral, inclusive para os problemas arquitetônicos (pois tudo seria subsumido aos desígnios e meios da construção do socialismo). O Brasil, porém, com o atraso e a dependência como fatores impeditivos, não estava pronto. Era preciso trilhar a “revolução por etapas”, e a primeira etapa era a “libertação nacional” (do “imperialismo”): o país precisava, portanto, “afirmar-se como nação soberana”, além de moderna.

Se o caráter nacional não podia estar na burguesia “cosmopolita”, tinha de ser encontrado no “povo brasileiro”: a soberania nacional se embasaria na cultura popular (ou “nacional-popular”, como rezava a fórmula da época). Mas também, talvez, no passado nacional: ou seja, na arquitetura barroca colonial. A arquitetura moderna brasileira, em todo caso, não poderia ser apenas uma parte da arquitetura moderna internacional, produto de países desenvolvidos e “imperialistas”. De um lado, não havia o desenvolvimento técnico adequado. De outro, não se queria solucionar simplesmente a defasagem técnica, mas a partir disso criar uma arquitetura que, pelos ditames da afirmação-libertação nacional, deveria ser antiburguesa e anti-imperialista. Mas como sê-lo sem ser antimodernista e, portanto, atrasada?

Se o modernismo internacional não era uma solução, a arte popular e o barroco colonial tampouco o seriam. Talvez o fosse, então, um modernismo brasileiro amalgamado a elementos populares e coloniais, apesar do que estes tinham de antimodernistas (tudo isso para não falar das questões diretamente sociais, como as relativas ao urbanismo e ao déficit habitacional, também preocupações centrais de Artigas).

A solução de outro grande arquiteto modernista e comunista, Oscar Niemeyer, a essas demandas e a esses dilemas, ou a essa “dualidade”, teve vários vieses – resultando, eventualmente, no compromisso entre modernismo e antimodernismo. Artigas nunca se colocou em posição crítica a Niemeyer (em parte porque ambos eram companheiros de partido, em parte porque o próprio Artigas jamais encontrou sua própria solução clara ou definitiva para a “dualidade”). Mas o fez em relação a Lúcio Costa, sobre o qual carreou críticas que poderia, se quisesse, ter estendido a Niemeyer. De qualquer modo, suas soluções foram distintas. Inclusive na manutenção mais viva, mais áspera, mais “brutalista”, das contradições envolvidas, o que marcaria a “escola paulista” de Artigas em contraponto às soluções mais gerais, mais reprodutíveis e mais “suaves” (em vários sentidos) da “escola carioca” de Niemeyer.

Casa Elza Berquó

Um dos elementos principais do modernismo de Niemeyer foi a incorporação da curva como linha arquitetônica possibilitada pelo concreto armado, o que teria “suavizado”, “humanizado”, “tropicalizado” e “nacionalizado” (pois “abrasileirado”, inclusive pela evocação do barroco colonial) a fria linearidade racionalista da escola corbusiana. Um de seus resultados mais conhecidos está no elemento-símbolo da arquitetura de Brasília, as colunas do Palácio da Alvorada. Elas evocam velas de jangada e cortinas brancas amarradas de casas de fazenda, e, em sua brancura, certa mediterraneidade “latina”, “solar”. Artigas viu nelas, com argúcia e propriedade (mas sem qualquer crítica explícita), cariátides, ou seja, colunas com formas figurativas – portanto, decorativas. De fato, elas nada têm de estrutural: não correspondem a uma necessidade da estrutura. Ao serem decorativas, são no limite antimodernistas. A “dualidade” não está resolvida, mas “acomodada” e “encoberta” – nas palavras do próprio Artigas – “Oscar e eu temos as mesmas preocupações e encontramos os mesmos problemas, [...] mas enquanto ele sempre se esforça para resolver as contradições numa síntese harmoniosa, eu as exponho claramente. Em minha opinião, o papel do arquiteto não consiste numa acomodação; não se deve cobrir com uma máscara elegante as lutas existentes, é preciso revelá-las sem temor”.

Uma das obras mais representativas da “desacomodação” de Artigas é a Casa Elza Berquó (1967), em cuja análise o livro de Buzzar se encerra (daí centrar seu recorte analítico no período 1938-1967). Os sentidos e significados de sua obra não permitiram uma solução simples, um acordo “a frio”. De qualquer forma, é importante registrar que não tinha [...] a cisão como projeto, mesmo porque na arquitetura não pretendia tematizar uma dualidade sem solução, o entrelaçamento perene do moderno com o arcaico. Apesar do caminho trilhado por Artigas ressaltar os opostos [...], o que pretendeu [...] foi resolver a dualidade em favor da modernidade. Mas [na Casa Berquó] isso não ocorreu. Tanto o volume prismático [da ampliação feita em 1974] como a forma irregular da piscina, constituem com o bloco principal uma colagem [...]. Assim, continuava demonstrando a articulação ativa entre o moderno e o arcaico – a colagem preserva ambos – e não a solução da dualidade [grifo nosso].

Resta destacar a qualidade geral da edição, que ainda conta com importante material iconográfico, num total de 145 imagens da bela, áspera e desacomodada obra de Artigas, modernista comunista que, felizmente, jamais encontrou o caminho para solucionar, em sua obra, as contradições nascidas de uma ideologia que seria logo lançada na lata de lixo da história.