ROSTOS DA FOME | Encontros com o pesquisador Renato Maluf

31/07/2022

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Leia a edição de agosto/22 da Revista E na íntegra

PESQUISADOR RESPONSÁVEL PELO 2º INQUÉRITO NACIONAL SOBRE INSEGURANÇA ALIMENTAR NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 FALA SOBRE SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA NO BRASIL

Por Luna D’Alama

Quase dois anos e meio de pandemia se passaram e a crise econômica e a desigualdade social se agravaram, escancarando o problema da fome, cujas causas têm raízes profundas e diversas. É o que revela o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), em parceria com o Sesc São Paulo, a Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, plataforma FES Brasil, Instituto Ibirapitanga e Oxfam Brasil. A pesquisa, responsável por realizar 12.700 entrevistas com apoio do instituto Vox Populi, aponta que 33,1 milhões de brasileiros(as) convivem atualmente com a fome, um aumento de 73% em relação a 2020. É importante perceber que, por trás do resultado do levantamento, pequenas mudanças percentuais nas estatísticas significam milhões de famílias carentes de comida à mesa. Hoje, apenas quatro em cada dez domicílios no país conseguem manter o acesso pleno e adequado à alimentação. E a situação é pior nas regiões Norte e Nordeste, nas zonas rurais, em lares comandados por mulheres, pretos(as) ou pardos(as), pessoas com baixa escolaridade, desempregadas ou com emprego informal. Coordenador da Rede PENSANN, Renato Maluf, pesquisador e professor titular do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DDAS-UFRRJ), explica neste Encontros a piora desses indicadores, seus desdobramentos, contextos e possíveis soluções. “Nosso inquérito contribui para um tema que já estava em debate público, mas o que ele fez foi dar números e rostos para a fome”, destaca. Saiba mais sobre a pesquisa coordenada por Maluf em: olheparaafome.com.br

Foto: Divulgação

Insegurança alimentar

O resultado que mais chamou a atenção [na pesquisa], pela gravidade, foi o número de 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros que convivem com a fome. A medida usada foi a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que é uma medida de percepção dos entrevistados sobre a sua condição e a de sua família. É um indicador subjetivo, porém, como a gente sempre lembra, quando alguém diz que passou fome, isso não tem nada de subjetivo. Isso é muito objetivo. A insegurança alimentar, medida por essa escala, tem três graus: a leve, quando a família tem seu padrão habitual comprometido na qualidade, isto é, come pior; a moderada, quando o padrão habitual é comprometido na quantidade (não passa fome, mas come menos do que normalmente); e a grave, em que ao menos um membro da família passou fome em um período, por falta de alimento. Esse é um agravamento que vem desde 2016, mas que se acelerou muito no período recente. Nós fizemos o primeiro inquérito com dados de 2020 e chegamos a 19 milhões de pessoas em situação de fome. Agora, com dados entre novembro de 2021 e abril de 2022, esse número saltou para 33,1 milhões. Isso quer dizer que em pouco mais de um ano 14 milhões de pessoas ingressaram no contingente dos famintos. Isso é mais que a população da capital paulista e mais que o dobro do município do Rio de Janeiro – as duas maiores cidades brasileiras. Nosso inquérito contribui para um tema que já estava em debate público, mas o que ele fez foi dar números e rostos para a fome. É uma pesquisa feita com muito rigor, comparável com a aferição da EBIA [Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar] que o IBGE faz regularmente a cada quatro anos – a última foi em 2018. A gente buscou parceiros, que financiaram a pesquisa, cujo trabalho de campo foi feito pelo instituto Vox Populi. Nesse segundo inquérito, reunimos um grupo ainda maior de parceiros, entre eles o Sesc São Paulo, o que nos permitiu fazer uma pesquisa mais ampla. No primeiro, a gente fez 2.100 entrevistas. Neste, foram 12.700. Isso só foi possível porque conseguimos um apoio substantivo, o que nos permitirá, também, desagregar mais os dados. 

Gênero, raça e idade

No resultado nacional já deu para mostrar que a fome no Brasil tem gênero, raça, idade e moradia. Domicílios liderados por mulheres são mais vulneráveis do que a média, que já é elevada. Domicílios liderados por pessoas que se declaram de cor parda ou preta [também] são mais vulneráveis, assim como domicílios com crianças menores de 10 anos e aqueles localizados no meio rural. É uma situação grave, que já vinha se deteriorando há alguns anos e que se acelerou muito no período recente. Nós vínhamos numa tendência virtuosa até 2014, quando a fome não atingia nem 4% dos domicílios. A apuração seguinte foi em 2017/2018, quando já estávamos com apenas 60% dos domicílios em segurança alimentar, um indicador parecido com o de 2004, o que significa que, em quatro anos, a gente retrocedeu 14 anos. 

Divulgação

A FOME TEM CAUSAS
HUMANAS, ECONÔMICAS.
NÃO É UMA FATALIDADE

Somatório de fatores

A pesquisa não afere isso diretamente, mas é possível identificar que aí [em 2014] começa uma crise econômica importante no país, geradora de desemprego. Depois,  somou-se uma crise política, com a retração de políticas públicas. Além disso, houve a intensificação de um processo de precarização do trabalho. Mais de 40% da população brasileira ocupada passa a estar no que se chama de trabalho informal – precário, mal remunerado e incerto. Tivemos, ainda, um desmonte de programas públicos e a interrupção do processo de valorização do salário mínimo, o que teve efeito sobre um conjunto muito grande de remunerações, entre as quais a previdência e os benefícios de prestação continuada da seguridade social. Nossa pesquisa mostrou que a queda de renda é um fator fundamental [nesse cenário de aumento da fome] e que aqueles que têm trabalho formal estão em melhor condição. Os indicadores de insegurança alimentar são mais elevados naquelas famílias que têm menos de meio salário mínimo [R$ 606,00] per capita mensal. Famílias que têm acima de um salário mínimo [R$ 1.212,00] per capita mensal já estão em condição melhor de segurança alimentar. E, entre os fatores de vulnerabilidade [para a fome], está a escolaridade: famílias cujo responsável tem baixa escolaridade são mais vulneráveis.

Desigualdade e pandemia

Somos uma das sociedades mais desiguais do mundo, não podemos esquecer disso. As desigualdades sociais brasileiras se manifestam nesses momentos de forma bastante explícita. E o que a pandemia tem a ver com isso? Não se pode dizer que a pandemia causou, mas ela agravou um quadro que já vinha sendo construído. E ela não afeta igualmente a todos: a desigualdade aparece aí também. A pandemia afetou o mundo todo, mas atingiu ainda mais os países desiguais como o nosso. Esse agravamento afetou fortemente os setores mais vulnerabilizados. A fome, assim como a pobreza, é uma mazela social que tem múltiplas dimensões.

Inflação em alta 

Além de tudo, tem a inflação dos alimentos, desde o final de 2021. No inquérito, temos vários testemunhos das pessoas [sobre o tema]. A inflação não foi objeto de uma medida específica, mas a gente mediu, por exemplo, a mudança na composição da alimentação [dos brasileiros]: quais produtos deixaram de ser comprados. Ali, já se nota o reflexo dos preços. A inflação de alimentos é uma causa adicional de agravamento da situação, mas não podemos achar que é a causa, assim como a pandemia.

Ações solidárias

Atos de solidariedade são sempre meritórios e devem ser valorizados. Existe um lado bastante bom na sociedade brasileira, que não é pequeno. Entre outras manifestações, ele aparece na solidariedade. Não tiro o mérito dessas ações, até porque a fome degrada e mata, mas não aposto nelas [como solução definitiva]. Acho que devemos apoiá-las, eu mesmo participo, como indivíduo, mas essa não é a minha referência. Senão, vou achar que o encaminhamento da solução é a gente encontrar grandes doadores, grandes ações de benemerência. A sociedade civil brasileira se organiza e continua mobilizada, apesar de todos os contratempos que a gente enfrentou. [] Ações de solidariedade como distribuição de cestas, associações comunitárias, grupos de bairro, sindicatos. Seria muito importante se esse potencial se tornasse objeto de preocupação permanente. Se tem uma associação de moradores capaz de organizar doação de cestas básicas para pessoas vulneráveis – e há inúmeras, a gente viu matérias sobre isso nos jornais –, ela deve ser estimulada a continuar discutindo alimentação depois que não precisar mais de cesta. Aí nós vamos discutir alimentação saudável, vamos discutir as estruturas de abastecimento, se as famílias dos bairros periféricos têm acesso a equipamentos que oferecem alimentação adequada a um preço razoável. É preciso que os sindicatos coloquem os alimentos na sua pauta de mobilização. Essa é uma maneira de você aproveitar esse potencial de solidariedade e transformar os alimentos e a alimentação em temas permanentes da agenda. 

Referências à frente

Houve muita ação estadual e municipal durante a pandemia. Eu me lembro do Consórcio Nordeste, que [em 1979] criou a rede Josué de Castro de segurança alimentar, juntando colegas de universidades e organizações não governamentais. A politização da fome no Brasil, no sentido de colocá-la como prioridade política e buscar diagnosticar suas causas, foi uma conquista nossa, que começou com Josué de Castro [nutrólogo pernambucano, ativista no combate à fome e pioneiro ao defender a instituição do salário mínimo como garantia de segurança alimentar às famílias; 1908-1973]. A fome tem causas: humanas, econômicas. Não é uma fatalidade. No livro Geografia da fome, de 1946, nosso grande Josué de Castro disse que a fome continuava como um tabu na sociedade. Esse tabu foi rompido posteriormente, com muita dificuldade. Com o fim da ditadura e o início da redemocratização no país, nós tivemos o ressurgimento de uma mobilização que resultou na Ação da Cidadania [fundada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho]. A fome apareceu naquele momento como um tema público. Ao longo dos anos 1990, vimos o desenvolvimento no campo político da soberania, da segurança alimentar e do direito humano à alimentação.

Contribuição acadêmica e escolar

A partir de 2003, cresceu o número de grupos de pesquisa nas universidades dedicados ao tema da fome, acompanhando as políticas públicas. No último encontro da Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar), mesmo sendo remoto e com todas as dificuldades, nós tivemos mais de 300 trabalhos inscritos. No anterior, foram mais de 400. Há uma dedicação ao tema de forma crescente. Então, há uma resposta da academia na geração de conhecimento e, principalmente, na elaboração de propostas. Quando a academia gera conhecimento, ela tem que fazer isso dialogando com as organizações sociais. Ainda temos muito o que avançar no campo da educação alimentar e nutricional. Mas já fizemos muita coisa. Quando o Ministério da Saúde lançou o Guia Alimentar para a População Brasileira [que teve sua primeira edição em 2008 e a segunda, em 2014], recebemos elogios de várias partes do mundo. Então, há iniciativas muito valorosas nesse sentido. As escolas são o equipamento público mais difuso e capilar que nós temos, estão em todos os municípios, em quase todos os bairros. E já tem muita experiência no Brasil das escolas como espaços para se discutir alimentação. 

Caminhos e soluções

Além de sugerir caminhos [para combater a fome no Brasil], nós temos experiência. A gente sabe como faz e já fez. Numa época, achei que estávamos caminhando para uma condição em que iríamos parar de falar sobre isso para começar a discutir valores, direitos, civilização, convívio. Pensei: “Será que a sociedade brasileira vai subir para um outro patamar civilizatório?” Não, infelizmente ela retrocedeu. Mas ela esteve perto, portanto, é possível. A experiência brasileira [nesse sentido] foi muito reconhecida [internacionalmente]. Tem muita proposta, muito caminho [para combater a fome]. Começa por recompor as bases democráticas da sociedade, reabrir espaços de participação social. Que o país volte a debater abertamente seus conflitos, suas tensões, as diferenças de opinião. E aí, você constrói. 

MAIS DA METADE (58,7%) DA POPULAÇÃO BRASILEIRA ESTÁ EM SITUAÇÃO DE INSEGURANÇA ALIMENTAR (QUANDO UMA PESSOA NÃO TEM ACESSO REGULAR E PERMANENTE A ALIMENTOS)*

65% DOS LARES COMANDADOS POR PESSOAS PRETAS OU PARDAS CONVIVEM COM RESTRIÇÃO DE ALIMENTOS EM DIFERENTES NÍVEIS. EM 18,1% DELES, AS PESSOAS PASSAM FOME. JÁ NAS CASAS EM QUE O RESPONSÁVEL SE AUTODECLAROU BRANCO, A INSEGURANÇA ALIMENTAR É DE 46,8%*

* Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) em parceria com o Sesc São Paulo, a Ação da Cidadania, ActvtionAid Brasil, plataforma FES Brasil, Instituto Ibirapitanga e Oxfam Brasil. Saiba mais em: olheparaafome.com.br.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o convidado. A mediação do bate-papo é de Adriana Reis Paulics, jornalista e editora da Revista E.

RENATO MALUF esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 30 de junho de 2022.

A EDIÇÃO DE AGOSTO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, quando o mundo comemora o Dia Internacional da Juventude (12/08), o Sesc São Paulo promove mais uma edição da Juventudes: Arte e Território, ação que segue até dezembro discutindo e incentivando a potência das produções culturais das diferentes juventudes. Em reportagem desta edição, damos voz a iniciativas artísticas, em todo o estado de São Paulo, que provam que a arte, em suas diferentes linguagens, dá vazão à expressão e ao potencial criativos dos jovens, impactando os territórios que habitam.

Além dessa reportagem, a Revista E de agosto/22 traz outros conteúdos: um texto sobre os desafios e a importância da amamentação para a saúde dos bebês e o vínculo entre mães e filhos; uma entrevista em que a escritora portuguesa Isabel Lucas, que esteve presente na 26ª Bienal do Livro, defende a literatura como um mapa para se conhecer um país; um depoimento de Davi Kopenawa sobre a defesa da cultura indígena e a preservação da floresta; um passeio fotográfico pelos trabalhos de Eustáquio Neves, artista que reflete sobre o lugar histórico dos afrodescendentes e cuja obra será celebrada em exposição no Sesc Ipiranga, a partir de setembro; um perfil que mergulha no legado plural de Flávio de Carvalho (1899-1973), multiartista que protagoniza uma exposição no Sesc Pompeia, a partir do fim de agosto; um encontro com Renato Maluf, pesquisador que aponta os rostos da fome no Brasil; um roteiro por lugares, atividades e intervenções que espalham poesia pela cidade de São Paulo; um conto inédito da escritora Ieda Magri, intitulado “Vida e amores da senhorita X”; e dois artigos que relacionam língua, discursos e diversidade: Gabriel Nascimento escreve sobre racismo linguístico e Dri Azevedo, sobre linguagem neutra.

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