Saúde, poder e cultura

21/03/2024

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Por Nelson Filice de Barros

Muita coisa já foi escrita sobre saúde pelos cientistas. Já se disse que “saúde não é ausência de doença” e que mesmo com sinais e sintomas de adoecimento uma pessoa pode se sentir bem e saudável. Também já se disse que “saúde é o silencio dos órgãos”, quando cada um de nós vive os seus dias sem ter que conversar com o próprio corpo para tentar entender algum incômodo, dor ou mal-estar. Além disso, já se disse que ter saúde não é não adoecer ou se acidentar, mas ter a capacidade de sobreviver às doenças e aos desastres no nosso próprio corpo1

Diferente dos cientistas os curadores de distintos povos indígenas, chamados pajés ou xamãs, disseram que “saúde é estar em harmonia com a visão de mundo” e perceber que todos nós somos parte do universo. Para eles a saúde também “é comunicar-se com animais, plantas, estrelas, minerais” e entender que todas as coisas têm pertencimento e vários significados de acordo com o tempo e o espaço dos acontecimentos. Eles falaram ainda que a “saúde é conhecer a morte e a vida e não ver diferença entre elas”, porque mesmo na morte, no fim ou na ausência, continua existindo a presença na lembrança, na saudade e na história. Eles disseram, além disso, que a saúde é produzida na mistura entre ficar sozinho para se compreender e o companheirismo, que ajuda a entender como somos diferentes na forma de perceber, sentir, pensar e fazer as coisas. Eles falaram, inclusive, que a “saúde é expandir-se para experimentar os sussurros e vibrações do universo” e, por isso, celebramos e sentimos a felicidade nos encontros com aqueles que amamos2.  

Podemos entender que o que os cientistas e os curadores disseram são práticas de uma cultura de saúde. Eles falaram da prática de perceber que o corpo muda o jeito de funcionar com as diferentes fases da vida e que é possível sentir a saúde mesmo com essas novas formas do corpo trabalhar. Falaram da prática de entender que a saúde é produzida no tempo que cada pessoa passa consigo mesmo e no tempo que dividimos a vida com os outros. Falaram que a doença pode ser uma forma prática de saber como o corpo funciona na saúde. Falaram que existem muitas práticas que fortalecem o corpo biológico (respiração, alimentação, exercício físico etc.), o corpo psicológico (sono, alegria, lazer etc.), o corpo social (trabalho, descanso, encontros etc.) e o corpo espiritual (contato com a natureza, participação de comunidade religiosa, a presença do sagrado etc.). Falaram da importância daqueles que vieram antes de nós para a nossa saúde. 

É possível que você adote todas ou algumas das práticas dessa cultura de saúde. É possível também que você escolha outras práticas por perceber e sentir que elas produzem alegria e vontade de viver. Por isso, é possível afirmar que não existe uma única cultura de saúde, mas várias “culturas de saúdes”. 

Certamente, a saúde é a mistura do que os cientistas e os curadores falaram e é, também, o que mostraram as nossas próprias experiências. Não é uma coisa só, não é igual o tempo todo e é criada e mantida por um conjunto de práticas, ou ações, desenvolvidas no dia a dia. Quando bebemos alguma coisa que gostamos estamos fazendo uma escolha; quando caminhamos e prestamos atenção no ar que entra e que sai pelo nariz, também; quando acreditamos que uma oração, ou um medicamento, ou um pensamento pode melhorar nossas dores ou incômodos estamos fazendo uma escolha. São muitas as escolhas que fazemos o tempo todo e podemos falar que existe uma cultura de saúde quando escolhemos fazer ou não coisas que percebemos, sentimos, pensamos fazer bem para a nossa saúde.  

Então, ter saúde só depende das nossas escolhas? Sim e Não! Existem muitas coisas que podemos escolher e muitas outras que não podemos. Ter saúde depende das nossas escolhas e do conjunto das práticas que conhecemos, mas depende também de eu poder fazer as escolhas. A cultura da saúde está na liberdade de escolher o que eu faço para minha saúde, mesmo sabendo que eu não tenho o poder de fazer só o que eu quero fazer. Logo, poder escolher o que fazer para cuidar da minha saúde é ter uma cultura de saúde, que certamente não vai ser sempre igual e vai mudar conforme o tempo, o lugar e o contexto. 

Referências:
1 Canguilhem, Georges. O normal e o patológico. 6.ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2009. 
2 Achterberg, Jeanne. A imaginação na cura: xamanismo e medicina moderna. São Paulo: Summus, 1996. 


Nelson Filice de Barros é professor titular da área de ciências sociais aplicadas à saúde do Departamento de Saúde Coletiva, na Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Estadual de Campinas (DSC/FCM/Unicamp).  Coordenador do Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde (LAPACIS) e presidente do Research Committee 15 Sociology of Health/ International Sociological Association (2023-2027).  


Este conteúdo integra o projeto Inspira – Ações para uma Vida Saudável, que acontece de 10 a 21 de abril, com programações que estimulam reflexões sobre saúde e qualidade de vida. São mais de 170 atividades, a maioria gratuita e aberta a todas as pessoas, em 38 unidades do Sesc no estado de São Paulo. Consulta a programação em sescsp.org.br/inspira.

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