UM NOVO OLHAR PARA A EDUCAÇÃO | Entrevista com Fernando Almeida

30/06/2022

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Leia a edição de julho/22 da Revista E na íntegra

PROFESSOR, PESQUISADOR E EX-SECRETÁRIO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DA CIDADE DE SÃO PAULO, FERNANDO JOSÉ DE ALMEIDA PROPÕE UMA NOVA PERSPECTIVA DA GESTÃO EDUCACIONAL E DO ENSINO NA ERA DIGITAL

A educação enfrentou grandes desafios durante a pandemia da Covid-19, que ainda precisam ser analisados de maneira muito mais complexa do que aquela contabilizada por determinados medidores. A falta de acesso a tecnologias e à internet, por exemplo, foram destacadas como alguns dos principais entraves ao desenvolvimento da aprendizagem escolar nos últimos anos. No entanto, outros conhecimentos foram apreendidos por crianças, adolescentes e jovens de todo o país e eles também precisam entrar na ponta do lápis. “Quem sabe se a gente fizesse um levantamento no Nordeste, no Norte, no Sul, nas palafitas, nas favelas etc. para recriar um currículo escolar? Aí sim, uma Base Nacional Comum Curricular, partindo do que os garotos são, do que eles viveram, dessa situação completamente esdrúxula e desfavorável, mas de onde surgiram coisas lindíssimas. Só que as pessoas continuam olhando para: ‘70% dos alunos perderam 70% do que sabiam’. Não façam isso. Não desvalorizem as nossas crianças. Com tecnologia ou sem tecnologia, as pessoas aprendem”, defende Fernando José de Almeida, doutor em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona como professor titular no Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo.

Membro honorário da Academia Paulista de Educação e Secretário Municipal de Educação da Cidade de São Paulo entre 2001 e 2002, Almeida defende um outro olhar para a Educação, seu papel social e a forma como ela afeta e é afetada pelas novas tecnologias, como a inteligência artificial. “Nossa grande questão não é o que a tecnologia pode fazer pela educação, mas o que a educação pode fazer pela tecnologia”, enfatiza. Saiba mais nesta Entrevista.

Assista a trechos desta entrevista em vídeo

Existe um senso comum de que a educação é a chave da mudança, o caminho da transformação. Mas, o que podemos, de fato, atribuir à educação como um modo de construção de processos civilizatórios e emancipatórios, sem que esse discurso se torne inflado e extrapole o que, de fato, a educação pode fazer pela sociedade?

A educação é um conceito um pouco mais amplo. Ela é mais ampla do que o conhecimento, mas o que está na base da condição educacional é desenvolver métodos de aprendizagem que permitam àquela pessoa viver em sociedade e viver bem. Então, educação é a sistematização daquilo que tem de melhor no conhecimento para ser entregue às novas gerações, para que elas possam melhorar a própria educação. Eu não entrego, como educador, a inovação, eu entrego o que eu tenho e quem vai fazer a inovação é você. Querer fazer toda a inovação é tirar o protagonismo dos jovens.

A criança, o adolescente e o jovem é que vão inovar, eles são a perspectiva do futuro, mas à luz de tudo que eu tenho que lhe entregar como professor. Eles precisam do estímulo à criatividade e a educação tem um papel nessa área. Eu tenho que induzir esse processo e, ao mesmo tempo, tenho que entender que a continuação precisa ser feita por eles.

Há uma fala contemporânea muito usual dos chamados “nativos digitais”: “As crianças são nativos digitais. Então, vamos respeitá-las porque elas sabem mais do que nós que somos paquidérmicos digitais”. Isso é um equívoco antropológico. A criança não é nativa digital, ela nasceu numa época digital, mas ela, quando passa o dedo na tela (do computador ou do smartphone), não é porque ela é nativa, mas porque viu o pai ou a mãe fazer isso horas e horas por dia. Ela, então, imita. No entanto, há um processo de endeusamento daquele ato que não tem conteúdo, que é mero malabarismo e, dessa forma, despreza-se o que a gente tem a passar para eles, que é o significado do uso daquela tecnologia. E só assim poderão ser inovadores.  

Mas existe uma limitação daquilo que a educação pode fazer para alcançar essas transformações na construção de processos civilizatórios e emancipatórios? 

Há um equívoco grande pela universalização do sentido do que é a educação. A educação explica uma parte do funcionamento social, político e cultural, mas há coisas que a educação não consegue fazer e a gente atribui a ela a responsabilidade de fazer. Então, a educação tem uma autonomia relativa, não é absoluta, com relação à mudança social, à melhoria da qualidade de vida, à justiça social, à própria democracia, à compreensão de si mesmo e do significado ético – mas, sem ela é difícil haver qualquer mudança social. Em tudo isso a educação tem uma parte relevante, mas ela não é a que define tudo.

Porque a educação é um aparelho social como outro, como a saúde. Se eu não tenho saúde, não tenho como educar. O que vem primeiro? Na sociedade, tudo anda junto no sentido de partilha de responsabilidades complementares. Por exemplo, a saúde precisa estar articulada com a cultura, articulada com a qualidade de vida, com espaços de lazer, com a educação, com tudo que compõe uma cidade. Se quero prover uma alimentação boa para as crianças na escola, mesmo que a função da escola não seja essa, ela alimenta dentro de um projeto em que exista uma partilha coletiva.

Em São Paulo, são servidas dois milhões e meio de refeições por dia pelas escolas da prefeitura. Aí você tem que ver de onde vem aquela comida, quanto se paga, é uma comida cultivada na região periférica de São Paulo, isso estimula a produção de alimentos em hortas comunitárias ou núcleos familiares na orla da cidade? Então, para um plano de boa alimentação escolar precisa haver uma rede de compromissos da saúde, dos transportes, das preparações delicadas do sabor, da partilha, do cuidado com o desperdício.

Ou seja, a educação é uma articuladora dessas coisas, mas ela não é responsável por tudo. O Brasil tem que ter um projeto de organização social que perceba o papel da escola com essas alianças estratégicas que permitam que ela cumpra seu papel de ensinar a pensar, a ler, a escrever, a calcular, a ter o pensamento científico, a ficar encantado com uma obra de arte ou com uma música. Esse processo de encantamento com os delicados detalhes do real, a escola faz como ninguém, mas nem sempre consegue fazer por conta da falta de condições, mas ela é uma das responsáveis prioritárias por esse projeto que articula os demais entes sociais entre si e com cada cidadão.  

Professor e pesquisador Fernando José de Almeida é entrevistado pela Revista E. Foto: Adriana Vichi

“A EDUCAÇÃO TEM UMA AUTONOMIA RELATIVA, NÃO É ABSOLUTA, COM RELAÇÃO À MUDANÇA SOCIAL – MAS SEM ELA É DIFÍCIL HAVER QUALQUER MUDANÇA SOCIAL”

Fernando José de Almeida

Isso significa que, no Brasil, pela história de lutas sociais e do ponto de vista da gestão, todas essas questões que envolvem a assistência social estão incorporadas ao que a gente chama de educação? 

Sim. O que é um risco para a educação, porque ao mesmo tempo que é uma glória, terei eu competência para tocar tantos instrumentos que não são de minha total especialização? Como fazer a educação sexual, que é a educação do afeto, do ato de respeitar, e que contém, em si, a carga erótica da vida humana e da troca entre pessoas? A escola provavelmente não consegue fazer isso. O pai, a mãe, a família, o pequeno grupo social em volta desse jovem vai fazer, bem ou mal. Mas a escola? Não sei.

Por exemplo, sou professor de literatura: tenho a obrigação de discutir questões da educação sexual com crianças? Não sei. Agora, se estou com um grupo de alunos de 16 anos, sou professor de literatura, recomendo Guimarães Rosa e vamos ler Grande Sertão: Veredas, converso com eles, como professor, sobre a relação de Diadorim e Riobaldo, uma história de sexualidade, mas que tem uma leveza, e uma dignidade no modo de tratá-las irreparáveis. Posso refletir sobre essa relação com os alunos e perguntar como eles sentem a respeito e o que aquelas relações representavam no grande sertão.

O ser humano em suas várias dimensões de conhecimento e de convívio passa pela escola. Mas, nem tudo é atribuição da escola a não ser que passe por ela via conhecimento. A escola não tem essa obrigação, porém ela tem o poder de fazer isso se ela tiver condições. Para isso, tem que melhorar as condições físicas da escola e as questões de interdisciplinaridade: o professor de história tem que conversar com o de biologia, o de química tem que saber arte.

O problema da escola é que a vida é toda embolada e o conhecimento é o “desembolamento” dessa complexidade. Ou seja, para eu conhecer uma coisa, eu separo uma coisa da outra – exemplo: separo fígado, intestino, cérebro etc. e coloco na mesa, mas isso não explica o homem como um todo. Só que o ser humano tem essa ambiguidade: para conhecer as coisas, ele precisa cortar, passar o bisturi da razão, que cria novas entidades pela separação.

No entanto, a vida é a junção de tudo isso – ela é o adensamento das experiências, num todo inextricável às vezes. A escola vive com essa duplicidade: querer  entender as coisas, mas a vida não é totalmente inteligível nunca. E por isso, a escola tenta fazer isso trazendo uma série de áreas do conhecimento que chegam o mais próximo possível da vida. Mas o conhecimento não é a vida. O conhecimento não nos permite entender a complexidade do ser humano. Mas ele busca sempre. 

Como podemos diferenciar a educação formal da educação não formal? Existem distinções reais ou esta seria uma falsa dicotomia?

Elas não são a mesma coisa e fazer a distinção entre elas é algo muito bom. A educação formal e a não formal têm franjas de convívio que não dá para separar. A diferença essencial entre uma e outra é que a não formal é aquela que parte dos primeiros átomos da formalidade. Por exemplo, a tapeçaria ou o bordado. Você pode bordar um tapete, uma toalha, um enfeite religioso. Pode bordar com cores sofisticadas, tecidos finos, alguns até de ouro. À medida que o bordado vai ficando sofisticado, começa a passar de uma geração à outra e passa a ter finalidades diferentes, uma hora os agrupamentos humanos falam: “Vamos ensinar isso”. Pode ser um tapete persa, de extrema sofisticação e que envolve o trabalho manual de comunidade inteira, pode envolver arte, conceitos religiosos etc.

Quer dizer, à medida que as atividades humanas vão se tornando complexas, elas automaticamente se cobram um processo de educação. Esse processo de educação, que é coletivo, é no início bem informal. De dois alunos, ele passa para 15, então torna-se necessário um horário para chegar à aula, um ambiente de disciplina, a cobrança de resultados. Esse tipo de coisa leva ao aperfeiçoamento da tecelagem e da mistura de cores, da qualidade do pigmento da fibra, no caso do bordado.

Ou seja, um projeto informal vai se desenvolvendo e pode crescer até ser apropriado pela indústria e, então, ele precisa da formalização. Se de um lado a educação nasce com uma vocação de aproveitar as coisas mais originais e vivas numa sociedade, à medida que ela se torna importante e grande, ela tem que se formalizar. Agora, a gente tem feito uma separação entre educação formal e não formal como se fossem inimigas, ou uma melhor que a outra. Elas não são. A educação não formal quando bem feita tende a se formalizar, assim como a educação formal bem feita tem que ter seu olhar ligado às novas modalidades de educação que estão emergindo de maneira informal ainda. Uma precisa da outra para sobreviver enquanto educação. A formalidade precisa da informalidade para se tornar viva, plástica, volátil e criativa, assim como a educação não formal tende a se formalizar. 

Professor e pesquisador Fernando José de Almeida é entrevistado pela Revista E. Foto: Adriana Vichi.

“O SER HUMANO E SUAS VÁRIAS DIMENSÕES DE CONHECIMENTO E DE CONVÍVIO PASSAM PELA ESCOLA”

Fernando José de Almeida

Temos acompanhado o aumento de recursos tecnológicos destinados à educação, especialmente nas escolas. De que modo as novas tecnologias podem transformar a educação?

As tecnologias transformam e muito a educação porque nós somos “nós e nossas circunstâncias”. Quer dizer, não sou só eu, se eu não tiver essas condições de estudo, eu teria seguramente produções muito grandes, mas não essas (do século 21), que me levam a lugares diferentes. Por exemplo, esse mediador chamado livro mudou a humanidade. Mas ele pode mudar para pior. A mudança não necessariamente é para melhor. Para a mudança ser para melhor, deve ser resultado de uma luta política. Por exemplo, descoberta a aplicação da imprensa, houve uma apropriação religiosa do livro. Essa apropriação religiosa foi feita pelos protestantes, enquanto a Igreja Católica queria que os monges fizessem com as iluminuras, mas só para um grupo ali dentro. Quando Lutero usa o livro como instrumento de democracia e de acesso a Deus, porque seria possível ler a escritura numa folha de papel na língua vernácula e não mais em latim, algo muda. O que não quer dizer que todo livro tivesse essa finalidade pelos seus escritores, ou pelos seus usuários, como acontece agora.

Então, a tecnologia pode ser libertadora ou não. Agora, se pode ajudar a educação, eu não sei. Eu vou lutar para que ela ajude. Nesse sentido, nossa grande questão não é o que a tecnologia pode fazer pela educação, mas o que a educação pode fazer pela tecnologia. Quer dizer, se houvesse, de fato, um interesse num projeto de nação em que a educação fosse importante, seriam chamados educadores e tecnólogos e se diria o seguinte: “Ouve o educador e o que ele precisa para produzir coisas e conhecimentos que mudem a sociedade”.

Agora, acontece o contrário: apresenta-se uma plataforma já resolvida com interesses que não se sabe quais são e com a perspectiva de tirar o professor da jogada. A maioria das plataformas diz que o professor tem que ser um facilitador, alguém para estimular o aluno. Mas é a plataforma que vai dar as grandes aulas, acender a luz para o aluno que está indo bem ou para o que está indo mal? Como? É a plataforma que vai dizer isso baseada em quê? Ou as mediações humanas são feitas, articuladas e demandadas pelo humano?

O que acontece agora é uma inversão contínua. Por quê? Porque quem financia a produção de softwares, plataformas, redes e aplicativos educacionais não são educadores. “Ah, mas os educadores não sabem”. Eles não têm condições de dizer nada porque têm 40 alunos na sala, cinco salas por dia e ganham um salário baixo. Então, essa inversão econômica, conceitual e cultural é que faz com que a tecnologia não tenha o potencial que ela poderia ter para ser mais humanizadora e não meramente reprodutora de “uber educacional”. Esse é o equívoco estruturante da organização social. Se a gente não reverter isso, dificilmente a tecnologia vai ser o apoio que promete como potencialidade para a educação. 

A pandemia impactou de modo muito contundente a educação, no mundo inteiro, levando milhões de estudantes para o ensino remoto, a distância. Com a retomada das atividades escolares, o que já é possível perceber como consequência desse isolamento entre os alunos?

Por enquanto não percebemos nada. Pelo seguinte, a tecnologia que está sendo usada pelas políticas públicas nas redes de ensino – estou falando das redes de ensino públicas –, os aparatos tecnológicos montam uma estrutura de captura, de radares para dar resposta à pergunta das redes escolares buscando saber o que o aluno não sabe. Aí é fácil. E cada vez aumenta mais: “Regra de três? Não sei. Adjunto adnominal? Não sei”. O que aconteceu durante a pandemia? O que eles aprenderam durante a pandemia? O que eles trocaram entre si?

Devemos produzir instrumentos avaliativos capazes de detectar isto: o que viveram, o que aprenderam. Não individualmente, mas coletivamente. A gente teria que montar uma estrutura generosa de compreensão e diagnóstico do que os alunos e professores viveram, vamos reviver Paulo Freire e criar categorias de valores formativos, humanos, de aprendizagem, de convívio, de sonho, de utopia, de apoio social. Paraisópolis tem mais de 90 mil pessoas e sete escolas das quais todas se tornaram centro de abrigo a pessoas com Covid-19 ou suspeita de Covid-19. Esse tipo de coisa gerou nessa comunidade o conhecimento de si mesmo e do outro.

Por exemplo, um garoto aprendeu a erguer uma parede, para fazer um puxadinho na casa com o pai porque a avó veio morar junto depois que o avô morreu. Criou-se a figura do presidente de rua. Isso tudo é conhecimento. Como é que isso pode ser levantado como uma plataforma cognitiva a partir da qual eu reconstituo o currículo desta cidade, deste estado, deste país? Isso seria um projeto. Como estão todos seduzidos pelo olhar das grandes plataformas das big techs, que dizem: “O que ele precisa é o que eu acho que ele precisa”. Quem sabe se a gente fizesse um levantamento no Nordeste, no Norte, no Sul, nas palafitas, nas favelas etc. para recriar um currículo escolar?

Aí sim, uma Base Nacional Comum Curricular, partindo do que os garotos são, do que eles viveram, dessa situação completamente esdrúxula e desfavorável, mas de onde surgiram coisas lindíssimas. Só que as pessoas continuam olhando para: “70% dos alunos perderam 70% do que sabiam”. Não façam isso. Não desvalorizem as nossas crianças. Com tecnologia ou sem tecnologia, as pessoas aprendem. Por quê? Porque algumas escolas souberam olhar um tipo de conhecimento que era produzido e dali foram reconstruindo outras modalidades de conhecimento. Acho que estamos imbuídos de um pensamento pequeno burguês, ainda que a gente faça críticas. 

Professor e pesquisador Fernando José de Almeida é entrevistado pela Revista E. Foto: Adriana Vichi.

“A VIDA NÃO SE DARÁ NA REALIDADE VIRTUAL, LÁ SE DÃO SIMULACROS DA VIDA”

Fernando José de Almeida

O que a gente pode entender como o grande desafio da educação pública, principalmente pensando nessas últimas duas décadas, bem como o período em que você esteve à frente da Secretaria de Educação, entre 2001 e 2002, e hoje, como você tem olhado para esse desafio?

Para simplificar e colocar dentro de uma chave de entendimento, essa questão poderia ser equacionada pela ideia: o que faz uma boa educação é um bom projeto de nação. Precisa haver um projeto de nação e, mais ainda, um projeto de cooperação entre nações. Esse projeto de nação é o que orienta a escola na sua produtividade. A escola tem muita dificuldade em montar um projeto de nação para a nação. A política de criar uma escola adequada é a política que advém de um plano de nação que supõe a organização da economia, da coesão social, da cultura, do território e das relações internacionais.

Sem isso, teremos um homeschooling, ou seja, uma criança isolada para ser educada pelo pai e pela mãe. Só que isso vai até o capítulo 2. Esse projeto de nação começa a organizar todas as instâncias sociais que buscam na educação uma das manifestações da sua consolidação. A cultura é outra. Não há educação escolar sem cultura: a cultura antecede a educação escolar. E o que é cultura? Ela é a base a partir da qual a gente na escola recebe a garotada e é capaz de conversar sobre um símbolo, sobre uma música, sobre um feijão que é colocado num algodão molhado. E tudo isso volta para casa, vem da casa, sai da casa e vai para o bairro, vai para as famílias que moram em volta. Quer dizer, você só tem uma escola eficaz quando tem um projeto de nação que aponte para a necessidade da escola como eficaz. 

Qual o impacto dos algoritmos, da inteligência artificial e de tantos recursos da chamada realidade virtual nos processos educativos? Criam-se abismos entre aluno e professor? 

A inteligência artificial é fascinante, no entanto a análise feita pelo senso comum e as práticas cotidianas e sorrateiras que a gente vê decorrentes desse senso comum são muito perversas. Não sou contra ter que usar a tecnologia, mas vamos dar um recuo para entendê-la melhor. Você falou em realidade aumentada, quando eu falo disso, falo daquela ideia de que estará tudo no mundo virtual. Aliás, só existe lá. Ora, o virtual é o contrário do real. O mundo virtual é o caroço da laranja, não tem cheiro, não tem gosto, não tem a cor da laranja. O mundo virtual não é real, mas ele se chama de “real” segundo as afirmações do Vale do Silício, por exemplo “realidade virtual”! Então, o mundo do Vale cria um metaverso que vai entregar uma realidade aumentada: quanto mais você puser uns óculos que te tiram do real, mais você entra no virtual e chama aquilo com a maior “cara de pau” epistemológica de “realidade”. E, pior ainda, chama de “realidade aumentada”.

Virtualidade não é realidade. E agora, dizem, você pode fazer tudo o que quiser lá. Tem-se a ideia de que o mundo virtual absorveu o real e cria o novo real, o metaverso. Ou seja, Freud conseguiu descobrir uma coisa chamada inconsciente, que está sub-repticiamente tomando a vida, o prazer, a compreensão do ser humano, tudo isso está lá embaixo, naquele porão, no mundo inconsciente. Agora, abaixo disso que Freud falou está a realidade aumentada. Assim se chama e eu acredito, compro e valorizo aquilo como forma de o homem se conhecer melhor. Só que é uma mentira. Ele não vai se conhecer melhor, ele vai se conhecer de outra maneira.

Não tem mais isso de tropeçar e machucar o dedo. Não preciso mais chorar, basta colocar seu avatar para chorar – ou para tropeçar em meu lugar. Não precisa sofrer de amor, ter dor de cotovelo. Não precisa plantar arroz, não precisa comer. Não precisa esperar a hora do jantar com os outros. Come-se sozinho com seu avatar e esquece-se do resto que é o real, porque o real, afirmam eles, é enganador, é falso, dói, custa muito, não tem arroz para todo mundo, não tem água limpa para todo mundo. Essa é uma face da inteligência artificial que não aparece. Por quê? Por causa das traquitanas que operam a inteligência artificial nas práticas pedagógicas.

Então, não sou contra, mas acho que tem que entrar na educação com um diálogo entre o que podemos ser e o que somos, o que todos merecem ser e o que alguns só podem ser. Sem discutir isso, eu trato de uma inteligência artificial etérea e, portanto, vale qualquer coisa porque ela é abstrata. Assim, pode-se avançar para não se entender a força do que significa a vida. A vida não se dará na realidade virtual, lá se dão simulacros da vida.  

Ano passado, Paulo Freire faria cem anos e muitas celebrações e análises ainda são feitas sobre a herança deixada pelo educador. Por que Paulo Freire continua valendo como uma referência para o presente?

Paulo Freire continua valendo sim e é mais necessário do que antes por conta dos desafios que foram colocados pela economia volátil. Porque, quando ele morreu, em 1997, o chamado mundo global e a economia global estavam praticamente implantados, mas não havia essa viscosidade de hoje, isso que está presente em todas as coisas, na cultura, nas relações entre as pessoas, na alimentação: está tudo completamente reorganizado a partir do mundo web. Paulo Freire teria feito uma análise disso que nos ajudaria muito, mas eu não sei qual seria. Mas ele faria e, claro, se nós juntássemos um grupo de educadores, de cientistas sociais, de antropólogos, de tecnólogos para pensar essa questão, a gente teria uma saída freiriana, que passa pela discussão coletiva da busca da verdade. 

Assista a trechos da Entrevista com o professor Fernando José de Almeida:

A EDIÇÃO DE JULHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, quando o Sesc São Paulo promove mais uma edição do FestA! – Festival de Aprender, celebramos a ludicidade dos jogos analógicos e revelamos que, apesar do surgimento de novas tecnologias, eles atravessam gerações, atualizando-se em temas e formatos, incorporando narrativas inovadoras e estimulando o aprendizado. Nossa reportagem principal prova que o jogar, ato que perpassa todas as fases da vida, compõe uma importante parte da existência humana e contribui para o exercício da socialização e o amadurecimento de nossa criatividade.

Além dessa reportagem, a Revista E de julho traz outros conteúdos: um texto que convida o leitor a uma imersão na Trilha do Sentir, passeio sensorial e acessível em meio à restinga, na Reserva Natural Sesc Bertioga; uma entrevista com o professor e pesquisador Fernando José de Almeida sobre caminhos para a educação na era digital; um depoimento do diretor mineiro Gabriel Villela sobre dramaturgia, direção e seus 30 anos de casamento com o teatro; um passeio fotográfico pelas obras da exposição, em cartaz no Sesc Bom Retiro, que celebra as experimentações do artista Penna Prearo; um perfil de Yara Bernette (1920-2002), um dos grandes nomes brasileiros do piano no século XX; um encontro com Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital que defende não haver mais divisão entre vida on e offline; um roteiro por 5 passeios divertidos e educativos nas unidades do Sesc SP para fazer com a criançada no mês das férias; quatro poesias inéditas assinadas assinadas pelo artista Ricardo Aleixo; e dois artigos, assinados por Sueli Angelo Furlan e Thaise Costa Guzzatti, que refletem sobre o Turismo de Base Comunitária.

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